Jow 31/08/2012Um Céu para quem fica."Sometimes we find things we're not looking for
and we lose the sense of reason
Sometimes we lose what we are caring for
and then face the day without them"
Tonight I Dance Alone - Sonata Arctica
O que confere autenticidade a uma vida? E o que se busca com a atividade do colecionismo? Duas perguntas que permeiam uma obra de singela narrativa, mas de gigante capacidade questionadora sobre o sofrimento de quem não conseguiu viver e abriu mão da própria vida, multiplicado pela dor de quem ficou e não consegue entender o porquê de um ato tão extremo.
Em “O céu dos suicidas”, a desestabilização dos fatos que parecem levianos demonstra a capacidade de Ricardo Lísias em exprimir o sentimentalismo cru e exposto. Não há tempo para leviandade na sua escrita! O desespero também é uma peça fundamental do jogo, que favorece mais a indefinição do que as saídas complacentes ou redentoras: assim é a ficção, talvez, porque assim é o mundo, e Lísias não rejeita a identificação pouco mimética, mas muito profunda, complexa.
Depois do suicídio de André (personagem que recebe de Lísias o nome de um amigo que se matou em 2008), o narrador passa a sofrer de ansiedade, insônia, “saudades de tudo” e uma quase síndrome de Tourette: ninguém escapa ileso aos seus impropérios. Ele é intolerante, infantil e narcisista; não possui senso de humor, paciência, sustentabilidade emocional; de tão descompensado e rabugento, chega a ser divertido. O personagem “Ricardo Lísias” é uma hipérbole, imagem distorcida pelo espelho da auto representação, como o Malkovich visitante do próprio cérebro no filme “Quero ser John Malkovich”. Mas a auto ficção, no livro, não é apenas um dispositivo de modelagem do eu, “escrita de si”. O que está em jogo é um verdadeiro autoensaio, catalisador de epifanias: para “Ricardo Lísias”, o gesto afetivo que torna possível a expiação de sua culpa pela morte do amigo; para Ricardo Lísias, a escrita como experiência de catarse, que pode ajudá-lo a ultrapassar seus impasses, seja lá qual for.
Não há no livro, desenvolvimento psíquico ou amadurecimento do protagonista. “O céu dos suicidas” não é um romance convencional, mas uma narrativa que busca a domesticação do personagem que narra. A ancoragem provisória, possível, de alguém que dificilmente deixará de estranhar o mundo, e as pessoas que nele habitam. É um livro que aborda a indiferença, a impessoalidade e a coisificação dos seres humanos.
Os momentos mais belos de O céu dos suicidas são aqueles em que Ricardo busca saber para onde a alma de André poderá ter ido. Como se sabe, as religiões são implacáveis com os suicidas, praticamente todas elas os condenam veementemente. Nos templos, igrejas, sinagogas ou qualquer outra espécie de casa de Deus, não há consolo, afago, clemência e nem piedade com aqueles que optam por tirar suas próprias vidas. Nem com estes e nem com os que ficam. A dor e, principalmente, a raiva do protagonista após cada acolhimento frustrado são latentes. Ao procurar o psiquiatra, que também em nada lhe ajuda, o narrador se abre: “Um dos nossos amigos, um cara muito espiritual, acho que a palavra é essa, espiritual, disse que em todas as religiões, ou praticamente em todas, os suicidas sofrem muito e na maior parte das vezes não vão para o céu”.
Ninguém lhe diz a única coisa que precisa ouvir, que seu amigo “vai para o céu” mesmo sendo um suicida. E é pensando nisso que Lísias descortina todas as mazelas coisificadas do ser humano. O livro aborda o desejo de consolo de quem sofre a perda por não entender como uma pessoa tão boa não pode entrar no céu graças a uma atitude extrema. O paradoxo se instala quando Ricardo se pergunta o porquê da tão falada misericórdia de Deus não alcançar os suicidas.
Por fim, o livro expõe a necessidade do ser em se sentir acolhido; e é apenas isto o que busca o personagem, sem conseguir, em cada um dos pequenos capítulos: a delicadeza desinteressada, capaz de restituir sua dignidade.