Amanda 28/07/2020
Fiz a resenha pela primeira vez e ficou uma sequência embolada e confusa de opiniões e pensamentos. Tentei de novo e ficou com cara de palestrinha. Comecei outra e empaquei no meio... E lá fui eu para mais um rascunho, acho que agora estou feliz com o resultado.
Se esse livro tivesse sido escrito hoje, aposto que ele teria bem mais páginas, senti que ele foi bem curtinho e não narrou tudo o que eu gostaria de ver e saber. São menos de 300 páginas para abordar um período de quase 20 anos de muitas reviravoltas, aprendizados e mudanças para os personagens. Ao longo da leitura perecebi dois pilares que caracterizam a narração e servem de base para o desenvolvimento da história, o papel da mulher e a crítica religiosa, e é isso que quero comentar na minha resenha, porque foi também o que mais me chamou atenção dentro do livro.
Pode ser complicado abordar e opinar sobre esses temas. Eu, pelo menos, passo longe de ser expert, sou uma pessoa em 2020 lendo um livro escrito em 1982 sobre uma história do século V, a gente perde um pouco de contexto e esbarra na distorção que a liberdade poética traz para a representação de uma sociedade 'real' dentro de uma história fictícia (fictícia?). Mas ler é uma via dupla, o livro vai ser interpretado diferente dependendo de quem ler e quando ler.
O grande trunfo de As Brumas de Avalon é recontar a já conhecida lenda arturiana do ponto de vista feminino. Poxa, que incrível né, dar voz às mulheres, colocá-las em destaque, fazer com que elas sejam as grandes protagonistas e propulsoras de todo o enredo, até que eu chego no capítulo de apresentação da autora e leio que Marion Bradley Zimmer "não se considera adepta do feminismo". Seja o que quiser, mas achei bem irônico ela se dar ao trabalho de enfatizar que não é feminista depois de criar uma história que se esbalda no feminismo.
Ainda mais que ela começou sua carreira tendo escrever com um pseudônimo masculino, se tivesse ficado quieta eu não teria me incomodado. Essa informação ficou martelando na minha mente durante toda a leitura, não sei se interferiu mais do que deveria na minha experiência.
"Não diga dessa água nunca bebereis, porque vai que bebereis"
Nesse primeiro livro, 'A Senhora da Magia', a história é contada pelo ponto de vista de três mulheres, Igraine, Viviane e Morgana.
Num olhar rápido a gente pode até pensar "mas essas mulheres não tem nada de feministas", só que precisamos lembrar do contexto histórico em que elas estão inseridas, uma sociedade patriarcal, cristã e com grande influência romana. Em vários momentos a mulher é relacionada com o mal, com o pecado e com o demônio, como era na época. Seria fácil repetir na narração esse recorte da realidade, mulheres fracas que são as culpadas pelas mazelas dos esposos e bruxas estereotipadas que desvirtuam os homens bons. Mas as protagonistas são maduras e muito bem construídas e são elas que fazem a roda da história girar. A autora aborda a lógica das linhagens hereditárias femininas em vez das masculinas, a liberdade que a mulher tem de escolher seus parceiros e os pais de seus filhos, a naturalidade em não se casar...
Igraine começa com muito mais presença do que quando termina. Ela representa bem o poder da escolha da mulher, mesmo que a gente não concorde com as escolhas dela e dê vontade de sacudir ela pelos ombros e gritar "o que você está fazendo com a sua vida, mulher?" Quando quis e precisou ela enfrentou o marido e não deixou que Gorlois fizesse menos dela, tá que foi por outro homem, tá que ela abriu mão de suas crenças por esse outro homem, tá que ela deixou os filhos de lado por esse outro homem, mas ela escolheu seu caminho e a Igraine do final do livro é resultado de suas próprias escolhas.
Viviene carrega muito mais simbolismos, ela não só é uma mulher com direito a escolhas como tem o poder de escolher pelos outros. Ela está num contexto social e político onde ela é o ápice da estrutura, ela comanda o país (Avalon), a magia e o destino de todos. Ela é a personificação da Deusa na terra, ela não se curva para outros reis e homens. Todas essas características dão um peso enorme para a figura da mulher e mesmo assim, fora de Avalon ou longe das pessoas que partilham as mesmas crenças, ela é olhada com desconfiança e como alguém comum sem méritos dentro da sociedade 'civilizada'.
E por fim, Morgana que parece ser um meio termo entre as duas, talvez com o equilíbrio venha a perfeição. Morgana foi forte o bastante para obedecer aos comandos da tia e mais forte ainda ao desafiá-la. Embora seja uma filha de Avalon, ela parece ser o elo entre os dois mundos, é uma sacerdotisa, mas escolheu fugir de lá, além de ter um vínculo forte com o irmão.
"pois eu lhe mostrarei que uma filha da Ilha Sagrada não é escrava nem serva de homem algum!" (curioso que quem disse essa frase foi a Igraine, e olha como ela acabou)
Sobre a abordagem religiosa, eu achei de uma precisão incrível as metáforas, comparações e descrições que a autora usou ao longo do livro, afinal não é sendo cristã, evangélica, ateísta, druida que vai me dar argumento sobre o que eu acho que está certo ou errado na abordagem do tema, é a História. E o que a História mostra é que o cristianismo foi avassalor e sanguinário com crenças diferentes.
"Os cristãos procuraram acabar com toda a sabedoria que não fosse a sua"
Por diversas vezes a narração cria momentos que ressaltam a hipocrisia de padres e fiéis e usa afirmações que te fazem pensar e relembrar vários fatos históricos que possam corroborar com as passagens do texto e te fazem perceber como alguns conceitos permanecem presentes em nossas vidas até hoje.
"É assim que pensam. E o mundo é a projeção daquilo em que os homens acreditam. Portanto os mundos que antes eram um só estão se separando."
O saldo da leitura foi super positivo, como disse no começo da resenha, o livro foi curtinho, queria ter lido sobre os estudos da Morgana, mas acho que aqueles ensinamentos são um dos mistérios que não estão disponíveis para olhos mortais. Mas espero que o conjunto dos 4 livros venha para agregar mais o que só começamos a descobrir.
OBS: Descobri, quando já estava no meio do livro 2, que a autora dessa saga está envolvida em sérias acusações de estupro e pedofilia (feitas pela própria filha). Ainda estou pensando sobre o tópico de separar ou não a obra do autor, mas enquanto não chego à conclusão alguma, fica o alerta para futuros leitores. Acho que se eu soubesse disso antes, teria repensado a escolha desse livro para ler e não sei quanto isso influenciou minha percepção sobre a obra.