spoiler visualizarNina 31/10/2021
The Mists of Avalon | Marion Zimmer Bradley
O livro publicado no Brasil sob o título de As Brumas de Avalon, diferente da maioria, conta a história do rei Arthur do ponto de vista das mulheres que fizeram a diferença em sua vida. Seja através de Viviane, a Senhora de Avalon, de Igraine, de Guinevere ou de Morgana, acompanhamos a história do rei desde seu nascimento até depois de sua queda em uma história que me remeteu em muitos momentos a Game of Thrones com uma trama envolvente e pesada pelos momentos de traição, sexo, conspiração e violência, que tiveram papel fundamental para a construção dos personagens e para que suas tomadas de decisão pudessem ser compreendidas.
Marion Zimmer Bradley por vários momentos me deixou apegada aos personagens, principalmente Morgana, a protagonista de fato da história. Mas no início da leitura nos afeiçoamos à Igraine, mãe de Morgana e Arthur, que passa por um momento em que precisa escolher entre fazer aquilo que quer e aquilo que a Senhora ordena, pela segunda vez. Morgana à essa altura, apenas uma criança por volta dos seus três anos, não é muito desenvolvida.
É com a chegada da Senhora do Lago, irmã de Igraine, que Morgana começa a surgir como protagonista. Ela é enviada como aprendiz a fim de se tornar sacerdotisa e é a partir desse acontecimento que toda a história se desenrola. Durante todos os quatro volumes, a minha leitura se acostumou aos personagens de forma que em alguns momentos esquecia que havia todo o grande Mistério por trás dos jogos de poder, tanto os Mistérios católicos quanto os de Avalon, e me deixei levar apenas pelos romances e pela humanidade de cada personagem.
O que temos ao final da saga são seres buscando descobrir os porquês da existência. Todos eles embasam suas escolhas com base em suas convicções, éticas e religiosas sejam quais forem, e isso torna tudo mais cinza. Não é fácil decidir de qual lado se posicionar, tampouco quem é ?mocinho? e quem é ?vilão? já que a autora resolveu colocar todas as cartas na mesa e mostrar qualidades e defeitos, sem em nenhum momento passar a mão na cabeça, mas dando voz à todas que normalmente são silenciadas.
Também não é fácil encontrar argumentos para ir contra as escolhas individuais de cada personagem, por estarmos sempre imersos em seus pensamentos e acabar por entendê-los de forma íntima. Marion realmente nos faz engatar em um relacionamento com cada uma de suas invenções.
Sem dar margem a muitos spoilers, a ideia que mais ficou marcada dAs Brumas de Avalon foi a de todos os deuses serem faces de um único deus. Em muitos momentos a autora repete de forma diferente esse que parece ser um dos grandes Mistérios de Avalon, e só ao final do livro, a própria Morgana, filha fervorosa da Deusa, parece entender isso. Mais do que uma guerra entre homens e religiões, o livro trata de uma guerra interna, marcada por convicções e desejos e cheia de ironias que vão sendo desconstruídas ao longo da narrativa.
Além dessa ideia central, para olhos mais atentos é possível perceber que Bradley se utilizou de arquétipos, isso é, de descrições do masculino e do feminino frequentemente aceitas como padrões de comportamento humano e que existem no inconsciente coletivo desde o início dos tempos. Como já dizia a própria Marion
?[?] a fantasia força o leitor a se confrontar com seus arquétipos, com as imagens que se movimentam no subconsciente, mesmo sem o ?futuro imaginado? ligando-nos ao nosso próprio mundo. Aqui nos movimentamos entre nossos arquétipos, as necessidades interiores de nossa mente e espírito.?
Na versão construída por Malory em ?A morte de Arthur?, Morgana representa o arquétipo da ?megera?. É má, demoníaca e invejosa porque é monstruosa, e, assim sendo, tem que agir dessa forma, com ou sem motivos que a justifiquem. Marion traz outra faceta, transformando Morgana na ?Grande Mãe?, é a jovem, mãe e velha, aspecto tríplice do divino feminino, mas, é também, a quarta e obscura face, a morte. Quando Morgana encontra Artur em seus últimos suspiros, na parte final da obra, ela ouve vozes que dizem ?Veja?veja lá, a balsa com as quatro fadas-rainhas ao alvorecer, a balsa mágica de Avalon?, ainda reforçando o entendimento de que Bradley se apoiou nesse arquétipo para a construção da personagem há outra passagem
?Morgana, a Donzela, que levava Artur à caça ao veado e ao desafio ao Gamo-Rei, Morgana, a Mãe, que se partira em pedaços quando Gwydion nasceu, e a rainha de Gales do Norte, exortando o eclipse para incitar Acolon enfurecido contra Artur [?]?
Mas além desse arquétipo, Morgana também dá vida ao ?feminino selvagem? e à ?amante?, uma mulher ligada à Natureza, de alma livre, harmonizada com seu próprio ciclo e com a sabedoria natural do planeta, tentando algumas vezes conectar-se aos outros através da sensualidade e tendo medo de ser rejeitada. Viviane aparece como ?maga?, buscando dominar as leis que regem o universo e sendo conectada com o sagrado. Guinevere encarna o arquétipo de ?mulher anjo?, com sua beleza perfeita e sua essência de amante, mas apresenta traços da ?megera?; e por fim e não menos importante, Igraine, representando a ?inocente?, ao tentar construir um paraíso particular ao longo de sua vida.
Os personagens masculinos principais também são facilmente identificados. Arthur é o ?governante?, está no comando sempre, é extremamente responsável e toma decisões importantes. Lancelote é, dos fios de cabelo loiros ao pé, o estereótipo do ?herói?, disciplinado e orgulhoso, foca seu esforços em ser o melhor e se destaca por escolhas difíceis principalmente ao final da saga. Apesar de haver dito que é difícil escolher mocinhos e vilões, Gwydion, personagem que prefiro não denunciar a origem, atua como o ?fora da lei?, sempre fiel a seus valores, mas carente ? e por isso tem necessidade de chamar atenção, mesmo que para isso seja preciso humilhar ? utiliza ao longo de toda a sua participação na história comportamento sarcástico e cínico, e sua missão é obter poder.
Após essa breve introdução ao livro mais conhecido de Marion Zimmer, e à teoria de Jung, espero ter atraído atenção suficiente para a obra que provavelmente será a minha favorita por um bom tempo. Espero que estejam preparados para essa leitura.
?Avalon estará sempre ali para todos os que puderem buscar o caminho, por todos os séculos e além dos séculos. Se não puderem encontrar o caminho de Avalon, isso talvez seja um sinal de que não está pronto pra isso.?