Decamerão

Decamerão Boccaccio




Resenhas - Decamerão


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Luigi.Schinzari 21/12/2020

Sobre Decamerão de Boccaccio:
Tratar da importância de uma obra como Decamerão (Decameron) de Giovanni Boccaccio (1313-1375) é tarefa hercúlea. Delimitar seu alcance na fundação do romance moderno europeu, sua deliciosa ironia preenchida em cada uma das cem histórias breves sobre o cotidiano medieval e o retrato de sua época -- escrito, dizem os historiadores, entre 1348 e 1353, auge da peste negra na Florença em que o autor vivia -- e seu pioneirismo, junto a Dante e Petrarca, na sedimentação da língua toscana que viria a se tornar o italiano que conhecemos -- são fatos que necessitam de comedimento em sua análise; já sua leitura, a atenção e dedicação do leitor.

A obra Decamerão tem uma estrutura simples: dez jovens -- sete mulheres e três homens -- florentinos se refugiam da peste negra na igreja de Santa Maria Novella, onde resolvem partir para um exílio em uma terra idílica por alguns dias; lá, nomearão um rei ou rainha por dia para determinar como será a rotina e, principalmente, guiará seus súditos na narração por cada um de uma história baseada em algum tema decidido pelo líder, repetindo-se o rito durante dez dias (quinze, contando os dias tirados para o descanso e para fins religiosos); dez dias, dez novelas -- Decameron: deca, dez; hemeron, jornadas. Dentre os temas escolhidos pelos reis, passamos por histórias com forte teor irônico e erótico, mas, diferentemente do que o leitor menos perspicaz ou apressado possa pensar, não há uma só novela dentre as cem apresentadas por Boccaccio que caia numa narrativa vulgar.

Conhecido popularmente, creio eu, por seu conteúdo mais picante, Decamerão está recheado com histórias sobre adultério (talvez o tema mais repetido nas histórias), promiscuidade e paixão sensual. Mas engana-se o leitor que acredita ser esse o recheio da obra de Boccaccio: é apenas um tempero que aromatiza junto ao humor refinado do autor e sua escrita incansável e criativa, sendo importante lembrar sempre do período em que a obra foi escrita, com um terreno escasso para a prosa sacramentada no futuro pelos grandes nomes que reverenciamos atualmente. Mas, além de seu teor erótico, Decamerão retrata algumas das passagens mais belas já narradas na literatura sobre hombridade e amizade; narra dos sentimentos mais perversos do homem às façanhas mais humanas e honradas em meio ao caos de uma guerra e a depravação; conta dos atos mais perversos dentro da igreja enquanto conta episódios em que a salvação só depende de Deus e da fé em Cristo. É errado, aliás, pensar Decamerão como uma obra profana (como foi feita em sua época e segue sendo até hoje por alguns): é obra que eleva a figura divina e prioriza a verdadeira fé, enquanto a imácula afastando-a daqueles que usam do nome de Deus para cometer atos pecaminosos e terríveis.

Fica claro ao leitor quando denota os recursos utilizados por Boccaccio para ligar uma novela a outra, uma jornada (ou dia) ao seguinte e ao passado, e as personagens narradoras (Pampinéia, Filomena, Neifile, Filóstrato, Fiammeta, Elisa, Dionéio, Laurinha, Emília e Pânfilo, na ordem de suas respectivas coroações), a qualidade no texto e as sutilezas passadas em poucas páginas -- fica claro ao leitor conhecedor da importância de Decamerão e do seu pioneirismo em tantas questões já citadas no primeiro parágrafo deste texto mas, principalmente, neste caso específico, na narrativa em prosa e no formato do romance moderno. Era Idade Média, e Boccaccio refinou a literatura para o que viria a ser hoje pelo lápis de um Cervantes ou um Balzac, em resumo.
Boccaccio zomba de todas as convenções conhecidas com elegância e bom humor enquanto fornece ao leitor pequenos lampejos que ajudam a formar um panorama de sua época que vai muito além de Florença. Claro que a capital toscana é a base para uma boa parcela das histórias -- os contadores das histórias e o próprio narrador, que acena ao leitor diretamente em alguns breves momentos da obra, citam suas terras quase que em todas as novelas --, mas passamos pelos povos mouros, pelas terras da França, Espanha e outros países da Europa de então, por Khitai, antiga porção da atual China e por aí vai. Pequenas pinceladas contadas pelo autor que servem, talvez, não como fonte fidedigna dos acontecimentos (algumas novelas, claro, têm sua fonte comprovada historicamente, com personagens reais como monarcas, poetas ou apenas cidadãos conhecidos por atos marcantes em sua região, sejam bons ou vexatórios), mas como um retrato do pensamento e dos costumes da sociedade retratada por Boccaccio.

Cabe ao leitor deliciar-se, assim como uma gama vasta de personagens também goza de outros prazeres, com a obra, seja por seu humor, seja por sua importância ou seja por suas histórias criativas e memoráveis -- sem cair em anacronismos, claro (mas isso o leitor refinado já sabe muito bem). Decamerão, por fim, é um prato cheio tanto para os historiadores quanto para os entusiastas da literatura e de sua formação, mas vai além de uma fonte e caminha com as próprias pernas: é texto com alta qualidade até mesmo para os padrões contemporâneos e, esperemos, que continue a ser para toda a eternidade.
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