Filino 08/11/2019
Polêmico
"Ética prática", de Peter Singer, é daqueles livros que inquietam o leitor. Não é possível passar incólume à sua argumentação, seja para defendê-la ou recusá-la, no todo ou em parte. Em seus doze capítulos, são tratados diversos temas, desde direitos dos animais ao porquê de se agir moralmente. Ainda que conectados, todos guardam relativa independência entre si. O autor escreve de modo claro e didático e, ao final da obra, há diversas referências bibliográficas relacionadas aos assuntos tratados em cada capítulo.
Apesar de escrever com rigor e elegância, aqui e ali o leitor parece se deparar com algumas informações um pouco exageradas. Logo no prefácio, uma vez estabelecido o "repúdio consciente de quaisquer pressupostos de que todos os membros de nossa espécie têm algum mérito específico ou valor inato que os coloque acima dos membros de outras espécies", pouco depois o autor conclui que, sem a aceitação desse pressuposto, seria "impossível" superar os males que os homens acarretam a animais não-humanos, além de reforçar o "dano imenso e irreparável" ao meio ambiente. Problemático.
O autor sustenta, com veemência, que contrariar aquele pressuposto é, pura e simplesmente, "especismo". E mais: "dar preferência à vida de um ser simplesmente porque ele é membro de nossa espécie é algo que nos colocaria na mesma posição dos racistas, que dão preferência aos que são membros de sua raça". Desenvolvendo esse argumento, pensemos na seguinte situação: por razões alheias à sua vontade e para assegurar a sua própria sobrevivência, um homem tem que optar pelo sacrifício de um garoto órfão (sem qualquer vínculo familiar) ou de um gato de rua. Pelo raciocínio do autor, quaisquer das opções seria igualmente justificável.
Outros temas tratados na obra são a eutanásia e o aborto. O autor estabelece, sem rodeios, que o aborto não seria errado nas hipóteses em que a vida daquele feto fosse "miserável" e sem qualquer perspectiva de melhora. E a eutanásia, pelos mesmos motivos, seria justificada. Mas é curioso observar que, no capítulo em que trata do aborto, Peter Singer ataca com argúcia não apenas os argumentos contra essa prática, mas também os que são a favor (os mais argumentos mais comuns e mais frágeis, segundo ele).
Ao tratar do porquê do agir moral, o autor traz a lume diversas reflexões: a filosofia kantiana, o comportamento dos psicopatas e por que pensar além do próprio "eu" e estabelecer um projeto de vida mais amplo pode ser mais gratificante. É um capítulo mais leve, comparado aos demais.
Ao final, um apêndice revela verdadeiras perseguições sofridas não apenas pelo autor e sua obra, mas também por aqueles que, de uma maneira ou outra, tentaram trazer esses temas para reflexão na Alemanha e na Áustria - já no final dos anos 80 e início dos 90. De acordo com Singer (ele mesmo um descendente de judeus vitimados na II Guerra Mundial), as lembranças e o temor do nazismo ainda são tão presentes que acabam ferindo de morte qualquer discussão acerca de temas mais espinhosos - a exemplo de eutanásia e possibilidade de aborto no caso de má-formação irremediável de fetos.
Reflexões instigantes e necessárias.