Gustavo Alonso 25/04/2013
Ser ou não ser um romance? Eis a dúvida existencial de Laurent Binet para narrar a vida e morte de um carrasco nazista.
por Gustavo Alonso (05/09/2012)
O livro de Laurent Binet, intitulado HHhH (que em alemão apontam para as primeiras letras do epíteto “O cérebro de Himmler se chama Heydrich”) e recentemente lançado no Brasil pela Companhia das Letras, é vendido como romance, como está descrito na capa. À primeira vista trata-se de uma narrativa sobre o assassinato de Reinhardt Heydrich, um nazista de “tipo-ideal”, daqueles que dariam inveja a Hitler. Loiro, determinado, duro, carrasco, assassino.
Heydrich esteve em todos os momentos-chave do nazismo, encabeçando matanças, repressões e covardias até sua morte. Basta dizer que foi um dos idealizadores da Kristallnacht, a noite de 9 de novembro de 1938 em que foi permitido aos alemães comuns capitaneados por sedentos nazistas de marrom e preto queimar lojas, casas e sinagogas judias em toda a Alemanha e Áustria. Como se isso não bastasse, Heydrich foi responsável por prisões em massa, tortura e execuções sumárias, sobretudo após o início da guerra e ocupação do leste Europeu. Senhor todo-poderoso da ocupação germânica na República Tcheca, Reinhardt Heydrich ficou conhecido como o “carniceiro de Praga”. Para aumentar seu currículo de nazista ideal (quase um estereótipo), Heydrich capitaneou a reunião de Wannsee, que em 1942 industrializou a morte de 6 milhões judeus e tantos milhares dos mais variados inimigos políticos e outras minorias em campos de extermínio como Auschwitz, Sobibor, Treblinka, Dachau…
Heydrich teve uma morte de fazer jus a seu currículo. Para salvar a História – com a ‘H’ maiúsculo – e a história de Binet, dois membros da resistência local, um tcheco e um eslovaco, assassinaram o carrasco em plena luz do dia na cidade de Praga em 1942, quando este, no auge de sua soberba, já dispensava guarda-costas e dirigia seu Mercedez conversível em direção ao castelo onde despachava como burocrata do Holocausto. Tão espetacular quanto maravilhosa, a história parece inventada por uma fértil imaginação, tamanha a façanha e os meandros da operação, intitulada Antropoide. Só para dar um exemplo, quando o atirador posicionou-se em frente ao carro de Heydrich, sua arma falhou. O “carrasco de Praga” percebeu a ameaça e começou uma pequena batalha de bang-bang, em plena rua e à vista de um bonde lotado, tentando salvar sua vida. A sorte da operação foi que o segundo membro da resistência tinha uma bomba já preparada à mão, que, logo atirada sobre Heydrich, o atingiu, causando sua morte uma semana mais tarde.
De tão fantástica, esta história parece inverossímil. É com espanto que o autor nos faz o relato. Laurent Binet faz questão de exacerbar, a todo momento, que escreve uma história verdadeira, e que conta a história tin-tin por tin-tin, sem floreios desnecessários, como cito agora:
Leio também muitos romances históricos, para ver como os outros se arranjam com as exigências do gênero. Alguns dão prova de um rigor extremo, outros não se preocupam muito, há enfim os que conseguem contornar habilmente os muros da verdade histórica sem fabular em excesso. De todo modo, fico impressionado com o fato de que, em todos os casos, a ficção prevalece sobre a História. É lógico, mas sinto dificuldade de tomar essa decisão. (p. 22)
Binet faz tantas vezes este lembrete ao leitor que em alguns momentos a leitura fica cansativa. O autor parece se incomodar muito com a acusação de ser “romancista”, que, paradoxalmente, pelo menos na edição brasileira, aparece grifada na capa. De fato, há um pavor entre os historiadores de ver seu trabalho confundido com “literatura”, como se isso fosse algo menor. Embora não seja um historiador, Binet quer fugir deste epíteto como o diabo da cruz.
O problema é que, desde Édipo, quando se quer fugir demais de um destino, frequentemente tropeça-se nele mais do que se gostaria. Até porque Binet intenta muito mais uma história factual dos acontecimentos do que é propriamente aconselhável ao bom historiador. Ou seja, do bom historiador é esperado que ele reformule padrões de conhecimento do passado, que desestabilize normas de linearidade de outrora, que repense as estabilidades construídas propondo novas rupturas e – por que não? – novas continuidades. Binet apenas assume que ser bom historiador é ser fiel aos fatos. Não sei… Talvez caiba ao bom historiador ser – de certa forma – infiel a como os fatos são escritos, rememorados, pensados, museificados.
Tendo dito isto, acho que o livro de Binet é um bom livro, embora com frequência se perca nas dúvidas da objetividade, o que compromete a emoção de thriller que ele naturalmente teria. Para aqueles que conhecem pouco a história do nazismo, talvez seja até bastante informativo, já que traça um bom painel de fundo do Terceiro Reich através do biografado Reinhardt Heydrich. Aliás, esta é outra questão: o livro é muito mais uma biografia do carrasco de Praga do que a trama de seu atentado, embora esta também esteja lá. Não à toa o editor francês propôs a mudança de título para “HHhH”. Como confessa o autor, a intenção inicial era chamá-lo de “Operação Antropoide”, mas o editor, talvez mais consciente que Binet, chamou a atenção para este fato.
Valeria a pena que a ótima edição da Companhia das Letras, cuja capa é simples e linda, investisse num caderno de fotos, já que tanto a carreira quanto a morte e o sepultamento de Heydrich foram muito documentados. No entanto, parece que até a edição brasileira não conseguiu se convencer de que a história contada por Binet é objetiva e verdadeira.
::: HHhH :::
::: Laurent Binet (trad. Paulo Neves) :::
::: Companhia das Letras, 2012, 344 páginas :::
Para a resenha original, ver: http://www.amalgama.blog.br/09/2012/hhhh-laurent-binet/