BiancaGulim 17/02/2017
Por ser um diário, o livro é narrado em primeira pessoa, por Mary Nuttall, uma jovem de 14 anos que foi criada na miséria por sua avó. O cenário é a Inglaterra do século XVII, época marcada pelo conflito entre puritanos e católicos e pela caça às bruxas. O fanatismo religioso e a intolerância reinam.
Na primeira página do livro Mary nos conta que sua avó foi levada, acusada de feitiçaria. Cada tipo de tortura pela qual a idosa foi submetida é exposto por sua neta. Na quarta página, sua avó é enforcada. A partir daí começa sua aventura: ela consegue fugir e encontra refúgio com um grupo de puritanos fanáticos, que vão em busca de melhores oportunidades na América. Apesar de se afastar das pessoas que mataram sua avó, ela está longe de se sentir segura. Ninguém pode saber que ela tem parentesco com alguém acusado de feitiçaria, pois acreditava-se que esse tipo de mal é herdado de geração em geração. Então, ela muda seu sobrenome para Newbury e esconde seu passado. Mas, até quando ela conseguirá manter essa farsa? Como ela poderá saber em quem confiar? Como conseguirá esconder sua natureza que insiste em se fazer presente?
No decorrer da história somos apresentados a personagens bondosos, que oferecem a Mary um lar, a oportunidade de formar uma nova família, e a personagens crueis, que podem descobrir sua origem a qualquer momento. Eu passei a leitura inteira esperando pelo momento em que ela seria descoberta, perseguida. E torcendo para que conseguisse escapar de novo, para não ser friamente assassinada.
Seria impossível continuar falando da história sem deixar escapar spoilers! O livro é pequeno, com 199 páginas. E acho que o mais importante nessa obra não é tanto a história em si, mas as reflexões que ela traz.
Então, vamos às minhas impressões:
Posso ser um pouco sensível demais, mas considero esse um livro um pouco pesado. Apesar de Mary não ter existido e sua história não ser real, o contexto é verídico. Muitas netas perderam suas avós para a alienação religiosa. Muitas pessoas foram torturadas por serem diferentes, por desconfianças infundadas. Puro preconceito, medo do desconhecido, é claro. A natureza humana é um pouco bizarra, sempre foi. A falta de conhecimento acentua isso, desde sempre. E naquela época, pouco se sabia sobre o mundo.
A autora é tão fiel aos acontecimentos daquele período, que muitos leitores acreditam que a história é verdadeira. Até a tribo indígena citada (Pennacook) viveu naquela época e região. Eu mesma só tive certeza de que realmente trata-se de uma ficção ao visitar o site da própria obra. Até porque era intenção da autora fazer o leitor acreditar que a história é verdadeira, e fez isso bem feito.
Outra dúvida que a autora deixa no ar é se de fato Mary e sua avó são feiticeiras, ou se é o fanatismo irracional e cego de pessoas encorajadas por uma fé religiosa sem bondade que traz essa interpretação. A narrativa deixa claro que um mero conhecimento em ervas medicinais é suficiente para gerar desconfiança por parte da igreja. Mas, em um trecho da obra Mary nos conta que teve uma visão do futuro: “ ... eu tenho o poder, não há como duvidar. Fosse qual fosse a minha esperança em contrário, não posso escapar do meu destino ... sei como ele vai morrer, e esse conhecimento é um fardo ...”. Em outro trecho, quando conta que sua avó fora acusada de sair pela noite em forma de lebre, ela garante que seu corpo repousa ao seu lado na cama toda noite, mesmo que por vezes fique inerte, de olhos abertos, como se estivesse morta. Se for colocar na balança, a narrativa tende para nos fazer acreditar que são feiticeiras, apesar de não deixar muito claro.
O que mais me chamou atenção no livro é também a crítica central da obra: como o homem foi facilmente alienado pela igreja. “... A fé das pessoas é como uma leve fagulha numa vasta escuridão. O medo delas cresce como uma trepadeira, sufocando tudo ...”. Eu não sou religiosa, apesar de ter sido batizada, e não estou familiarizada com textos bíblicos, então a quantidade de sermões citados deixaram a leitura cansativa para mim, em alguns momentos. Em contrapartida, entendo que esses trechos são importantes para ressaltar o quão absurda era a alienação gerada pela religião efervescente. Ervas medicinais apontadas por índios na floresta salvavam vidas, mas o que se interpretava era que Deus operara um milagre. A aurora boreal é um fenômeno natural, mas era interpretada como uma intervenção divina, com propósito de apontar a direção que o navio deveria tomar. O que se vê são pessoas distorcendo os acontecimentos comuns a favor da sua fé, na tentativa de provar sua veracidade, de justificar sua intolerância impiedosa.
A alienação é tão grande que, por vezes, pegamos a própria Mary, vítima desse fanatismo, acreditando nas crenças pregadas, usando termos religiosos: “Deus nos observa o tempo todo. Escrevo em meu diário sob seu olhar ...”. A influência é uma coisa louca, perigosa.
O que mais tornou o livro especial para mim é bem pessoal: eu tenho um certo fascínio por culturas indígenas, pela relação que esses indivíduos têm com a floresta, com os animais. E Celia Rees traz com excelência as crenças indígenas da época. Conhecemos o personagem Gaio, um jovem índio que se torna amigo de Mary, mesmo que escondido, já que andar com nativos pode ser interpretado como adoração ao diabo. Ele conta para nossa protagonista como o “homem branco” roubou as terras de seu povo, apresenta seus costumes, a maneira como levam a vida com liberdade, acreditando que espíritos assumem formas de animais. No meu livro, "Sobreviventes do Caos", esses elementos têm um espaço mais que especial, e eu fiquei comovida ao notar muita semelhança entre a cultura indígena criada por mim e a criada por Celia Rees. Apesar de ser impossível não sermos “contaminados” com todas as histórias de índios que vemos em filmes, séries, livros, e até mesmo nas histórias verídicas desses indivíduos evoluídos. Então, apesar de chamar minha atenção, não fiquei impressionada.
O sentimento mais presente na minha leitura foi apreensão, na expectativa de ver Mary ser descoberta a qualquer momento. Confesso que me peguei triste em várias passagens, também. Mary é extremamente pessimista, porém realista. Ela sempre acaba tendo que se despedir das poucas pessoas que um dia poderia confiar, e em toda despedida ela deixa claro saber que nunca voltará a ver essa pessoa, apesar de prometerem o contrário. É triste imaginar uma criança sem esperança. Mais triste saber que essa atitude é fundamentada na realidade que vive.
Recomendo o livro pra quem gosta de uma leitura um pouco mais profunda, que traz reflexões. A escrita é simples e a leitura foi, em maioria, fluída. A autora dá uma enrolada no meio do livro, gastando muitas páginas narrando acontecimentos meio que sem importância, que não agregavam muito à história. Como o livro começou pegando fogo, eu esperava uma rapidez nos acontecimentos. De qualquer maneira, eu tenho pavor de enrolação, então talvez minha opinião seja um pouco dramática nesse caso.
Outro ponto que acho importante ressaltar é que apesar de ser uma obra de literatura fantástica, a autora não vai muito além. Se você está esperando aqueles livros de fantasia que criam um universo novo, com bruxas e seus feitiços, vai se decepcionar. A obra foi catalogada como literatura infanto-juvenil, mas eu considero uma leitura adulta. Tem algumas passagens mais infantis, como cenas em que a autora descreve picuinhas entre adolescentes envolvendo a protagonista. Mas, a reflexão que a leitura gera exige um pouco mais de maturidade, na minha opinião.
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