Coruja 07/02/2012"Basta que seja verdade, e nós o colocaremos", disse Baudolino, "o importante é contar fábulas".Estive bastante ansiosa para começar este volume – Eco é um dos meus autores favoritos (mais que favorito, se for para ser sincera: ele flutua num patamar acima dos meros mortais...) e eu já tinha ouvido falar muito bem desse específico título.
Em Baudolino, Eco, mais uma vez, tece em torno de nós uma teia que mistura fato e ficção, romance e História, subvertendo esta para inserir seu protagonista, Baudolino, num furacão de guerras, política, conquista, cruzadas... E, num golpe de mestre, nos apresenta essa história contada por um homem que se auto intitula o maior mentiroso do mundo.
Resgatado por nosso herói pícaro em meio à Invasão de Constantinopla perpetrada durante a Quarta Cruzada, em 1204, é o historiador (e prodigioso gourmet) Nicetas Coniates o grande ouvinte de Baudolino. Enquanto aguardam para fugir da cidade (cristã) arrasada pelos cruzados (que supostamente deveriam estar indo para Jerusalém, retira-la da mão dos infiéis...), Baudolino narra para Nicetas suas aventuras e desventuras desde que era um moleque, quando foi adotado pelo Imperador do Sacro Império Germânico Frederico I, o Barba Ruiva até a viagem pelo Oriente em busca do reino do Preste João.
Baudolino é um poeta, um filósofo, alguém com incrível capacidade para aprendizado de línguas (basta ouvir algumas palavras e ele já começa a falar fluentemente), uma imaginação portentosa e um mentiroso de marca maior. Por todas essas qualidades, acaba ficando a seu cargo criar um reino mítico, imaginário, dos confins do Oriente – reino esse que daria legitimidade ao poder de seu pai adotivo frente ao Papa e às sempre beligerantes cidades italianas (não unificadas e sempre dispostas à briga).
É este o reino do Preste João, cujos domínios compreendem quase que o próprio Jardim do Éden, e cujos súditos perpassam todas as raças – de humanos a sátiros, gigantes a criaturas de um pé só e os próprios Reis Magos (e seus corpos são vendidos como relíquias a certa altura da história) do Antigo Testamento.
Mais que isso: ele é o verdadeiro senhor do mítico Santo Graal, perdido no passado, reencontrado por Baudolino, cuja missão de vida se tornará retornar a relíquia em nome de Frederico I ao todo poderoso Preste João.
Em seu caminho são traçadas mil e uma intrigas políticas, surgem amores proibidos, há ataques de mantícoras e quimeras – e vislumbra-se, de longe, o reino mítico tão procurado, tão aguardado. Ao final das contas, a condição de existência do reino do Preste João é simplesmente ter sido ele imaginado por Baudolino e seus amigos.
Este é um tema recorrente nas obras de Eco – a confusão entre ilusão e realidade, proposital ou não, pelos personagens. Em O Pêndulo de Foucalt temos a construção de uma mentira por um grupo de editores que acaba sendo levada a sério demais por seus clientes; no A Ilha do Dia Anterior há um jovem que pode ou não estar alucinando com um duplo, um gêmeo, a quem responsabiliza por todas as suas desgraças.
Creio, contudo, que em nenhum outro de seus livros, Eco tenha levado tão longe essa mistura. Com seus cheiros e texturas próprias, suas criaturas mitológicas e personagens históricos, o mundo que ele cria para Baudolino é complexo, absurdo, maravilhoso - e para nós, um banquete literário.
(resenha originalmente publicada em www.owlsroof.blogspot.com)