Antonio Luiz 17/03/2010
Quatro mil anos de ficção
Abraão, Isaac, Jacó, Moisés e Josué jamais existiram. Os reis Davi e Salomão foram, no máximo, chefes tribais de um vilarejo pouco maior que o atual Monte do Templo e de uns poucos milhares de pastores e camponeses ao redor.
Estes, como todos os primeiros judeus, atribuíam a Javé a companhia de um numeroso panteão e até de uma voluptuosa esposa – Asera ou Asherah, idêntica à Astarte fenícia (identificada pelos gregos como Afrodite) e à Istar babilônica.
Não só o Gênesis, como também o Êxodo e os livros dos Números e de Josué são ficção praticamente pura. Outras partes do Antigo Testamento, como os livros dos Reis, das Crônicas e dos Profetas, referem-se a fatos históricos parcialmente reais, mas de forma drasticamente enviesada.
São conclusões que Israel Finkelstein, diretor do Instituto de Arqueologia da Universidade de Tel Aviv, expõe em parceria com Neil Ascher Silberman, jornalista e historiador da arqueologia que dirige, na Bélgica, o centro Ename de Arqueologia Pública e Apresentação do Legado Histórico.
Muitas delas são aceitas há algumas décadas pela maioria dos arqueólogos e dos analistas dos textos bíblicos, mas sua obra "The Bible Unearthed" foi a primeira que as expôs em uma linguagem dirigida ao público leigo. Ao serem divulgadas em 1999 pelo jornal Ha’aretz, tiveram forte impacto em Israel. Jornalistas e eruditos conservadores escreveram ferozes editoriais contra o que consideraram um ataque à religião, à identidade cultural e à legitimidade política da nação.
O título da edição nacional, "A Bíblia Não Tinha Razão" também é adequado, pois revê, à luz de descobertas mais recentes, temas centrais de "The Bible as History" do jornalista alemão Werner Keller, traduzido no Brasil como "E a Bíblia Tinha Razão". Hoje na 27ª edição brasileira (até 2007), esse best-seller que vendeu mais de dez milhões de cópias no mundo desde 1955 foi, para muitos, a primeira introdução à arqueologia do Oriente Médio.
Quando Keller o escreveu, muitos arqueólogos julgavam poder comprovar a realidade histórica da conquista de Canaã por Josué, da grandeza de Salomão e talvez até do Êxodo, apesar do ceticismo de eruditos que, desde a Renascença, vinham criticando o texto bíblico. Às vezes de forma exagerada: chegou-se a duvidar, antes das escavações do século XIX, da historicidade de personagens como o rei assírio Sargão II e de nações como a dos hititas.
Novas descobertas e refinamentos nas técnicas de datação dos achados, porém, desqualificaram muitas das supostas provas. Como no caso das construções em Megido (também conhecida como Armagedon), Gezer e Hazor, que arqueólogos dos anos 20 atribuíram ao reinado de Salomão, até 930 a.C. O aperfeiçoamento da datação por carbono 14 e a comparação com ruínas descobertas em Samaria e Jezrael mostraram, porém, que datam de Acab, rei de Israel de 873 a 852 a.C.
Grande parte do poder e prosperidade tradicionalmente atribuídos a Salomão também parece ter pertencido a esse e outros reis da dinastia de Amri. A Bíblia os pinta como vilões desprezíveis e se compraz em narrar seus crimes, fracassos e derrotas, mas a impressão dos vizinhos foi outra. Os escribas do rei assírio tiveram de admitir que seu poderoso amo foi forçado a recuar pelos carros de combate do rei Acab, aliado à rival Damasco e a cidades menores.
Outro monumento, posterior, comemora a longamente ansiada vitória do rei Hazael de Damasco sobre Jorão de Israel. Hazael também se gaba de ter matado um filho de um aliado de Israel também chamado Jorão – mas “da casa de David”, de Judá. É o melhor indício de que seu fundador realmente existiu.
Outra conseqüência dessa derrota de Israel é que em 842 a.C., um sangrento golpe de Estado entronizou Jeú, que se ajoelhou ante a Assíria. Em compensação, seu país enriqueceu com a exportação de óleo (de oliva) para os assírios. Em termos modernos, seria possível falar de inserção bem-sucedida na globalização até 745 a.C.
Nesse ano, o trono assírio foi tomado por uma dinastia mais brutal e predatória, que não se satisfez com o tradicional tributo. Começou a anexar seus vassalos e deportar seus povos para onde lhe conviesse. A resistência desesperada de Israel fracassou e suas dez tribos se dispersaram para sempre nos confins do Império.
De tão pobre, a minúscula Judá foi poupada. Não valia o custo de anexar suas terras. Mas o fim do rival Israel e o influxo de refugiados trouxe-lhe um crescimento inédito, embora jamais chegasse às proporções do antigo Israel. Jerusalém, uma vila com área de quatro quarteirões e mil habitantes, multiplicou-se por 15. A alfabetização se difunde, o cultivo da oliveira substitui o pastoreio e a agricultura de subsistência e Judá insere-se, por sua vez, na globalização assíria.
A repentina mudança trouxe tensões sociais inéditas para o pequeno e tradicionalmente igualitário reino montanhês. Em Judá, como em Israel ou qualquer outro lugar, a contrapartida da nova grandeza dos exércitos e monumentos e do novo esplendor da classe dominante era a humilhação e a espoliação dos fracos, como ilustrou a falsa acusação levantada pelo rei Acab contra Nabot – conforme denunciou brilhantemente Elias – para apoderar-se de vinhas que o camponês recusava-se a vender para a ampliação do palácio.
Repercutiu em Judá a indignada mensagem religiosa e social dos profetas de Israel – Elias, Eliseu e Amós foram ouvidos por insatisfeitos sacerdotes de Javé.
Não é demais fazer um aparte para sugerir, na origem do fundamentalismo javista, certa analogia religiosa e social com a assimilação do fundamentalismo wahhabi, nascido no rico reino saudita, pelos mulás do Afeganistão. Ou com a influência do marxismo ocidental sobre a intelligentsia russa do século XIX.
Com uma só capital, uma só tribo relevante e nenhuma minoria significativa, Judá era mais propício à revolução pregada pelos profetas que o diversificado Israel, com muitas cidades, centros de culto e dez tribos – que, além do mais, conviviam com povos não hebreus cujos costumes e cultos precisava tolerar e homenagear.
Em 705 a.C., o rei Ezequias aderiu ao movimento, os ídolos foram destruídos e Judá revoltou-se contra a Assíria, conclamando os israelitas sobreviventes a unir-se a um reino hebreu unificado. Quatro anos depois, porém, as tropas de Senaquerib esmagaram a rebelião e puniram Judá com a perda da parte mais fértil do seu exíguo território. O humilhado rebelde foi substituído pelo cordato filho Manassés – outro vilão da Bíblia – que trouxe paz e razoável prosperidade ao retornar à colaboração com a Assíria e aos antigos cultos.
Em 639 a.C., porém, a facção javista – aparentemente reforçada pelas migrações, perturbações sociais e perda de raízes dos clãs depois da invasão assíria – voltou ao poder ao ungir Josias, o neto de oito anos de Manassés. Seu reinado começou mais cauteloso com a Assíria que o do bisavô, mas igualmente intransigente no aspecto religioso. Executou sacerdotes dos cultos rivais e destruiu o templo concorrente de Betel, antigo centro israelita de culto, com a mesma ferocidade dispensada pelo Taleban aos Budas de Bamyan.
Não pôde suprimir totalmente o politeísmo popular: enquanto existiu Judá, houve estatuetas de Asera na maioria das habitações. Para os arqueólogos modernos, sua presença demarca as fronteiras do país tão bem quanto os sinetes reais. Mas a revolução foi real e seu maior símbolo foi a redação do núcleo do Antigo Testamento tal como hoje o conhecemos.
As lendas e tradições de Judá foram reescritas e costuradas às do desaparecido Israel dos profetas – e ao Deuteronômio, supostamente um texto de Moisés que havia sido esquecido e foi “descoberto” durante uma reforma do Templo em 622 a.C. Ditava leis até então inexistentes, proibía os sacrifícios fora de Jerusalém e instituía, pela primeira vez, a Páscoa judaica. É pura expressão desse movimento monoteísta e centralizador que também clamava contra a opressão e a injustiça.
Neste ponto, Finkelstein e Silberman afastam-se um pouco da tradição da crítica bíblica. Esta, por tomar como realidade histórica (ainda que exagerada) o culto e poderoso reino unido de Salomão, geralmente supôs que o Antigo Testamento foi escrito ao longo de muitos séculos, a começar por seu reinado.
A arqueologia, entretanto, indica que, antes da queda de Israel, a até então tribal e analfabeta Judá não poderia ter criado esses textos sagrados, cujas referências políticas, culturais e geográficas indicam que quem os escreveu tinha em mente o mundo dos séculos VIII e VII a.C.
Por exemplo, Abraão teria vivido por volta de 2100 a.C., mas viajava no lombo de camelos, domesticados mais de mil anos depois. Isaac tem atritos com filisteus em Gerara, mas esse povo só apareceu na Palestina em 1200 a.C. e a cidade só se tornou importante sob os assírios, quatrocentos anos depois. Os egípcios citados na história de José têm nomes típicos do século VII e VI a.C. É como se um épico guarani supostamente muito anterior a Cabral mencionasse automóveis, conflitos com candangos perto de Brasília e personagens chamados Leila e Mílton.
O Êxodo tem problemas similares. Tanto a data tradicional (1440 a.C) quanto a preferida por intérpretes modernos (cerca de duzentos anos depois), pertencem a dois dos reinados mais longos, prósperos e imperialistas da história egípcia: os de Tutmósis III e Ramsés II, que governaram o Sinai e Canaã com mão pesada. Fugir nessa direção, nessas épocas, seria pular da frigideira para o fogo. Por outro lado, Moisés não precisaria pedir licença ao rei de Edom (como conta Números) para passar, nem contornar o país quando esta lhe foi negada: esse reino só surgiu no século VII a.C. Antes, a região era habitada apenas por pastores nômades.
Nos milênios de detalhados registros faraônicos, não há menção às dez pragas, à fuga de hebreus ou ao afogamento de seu exército no Mar Vermelho, milagres para os quais, volta e meia, algum amador engenhoso, mas ingênuo em história e arqueologia, propõe novas e intrincadas explicações pseudocientíficas – nos anos 50, o escritor Immanuel Velikovsky; nos 80 o jornalista Ian Wilson; hoje, o físico inglês Colin Humphreys (Os Milagres do Êxodo, Imago).
Mas um monumento de 1207 a.C., de Merneptah, filho de Ramsés II, comemora suas vitórias sobre os líbios, “povos do mar” (que incluíam os futuros filisteus) e vassalos cananeus rebeldes em Ascalon, Gezer, Yenoam – e Israel.
Pela primeira vez, esse povo é mencionado. Quem era? Finkelstein e Silberman concluem, com amplas provas arqueológicas: foram pastores nômades de cabras e carneiros que circulavam em torno dos campos cultivados pelas cidades cananéias do final da Idade do Bronze, trocando carne e leite por cereais. Quando essas cidades foram destruídas ou empobrecidas por guerras e rebeliões do início da Idade do Ferro, por volta de 1200 a.C., os pastores começaram a abandonar a vida nômade e cultivar os morros da atual Cisjordânia para sobreviver.
Que esse povo tinha uma identidade étnica “hebraica” é demonstrado pela ausência de ossos de porcos em suas aldeias, sempre presentes em em sítios arqueológicos mais antigos ou do outro lado do Jordão. Mas não houve invasão, e sim colonização pacífica por um povo cananeu até então marginal. É curioso que alguns israelenses pensem que isso diminui seus direitos à Terra Santa.
Uma teoria proposta pelo erudito bíblico norte-americano Norman Gottwald, em 1979, viu essas aldeias como “quilombos” criados por camponeses rebeldes da planície, incitados por idéias sociais e religiosas trazidas por um pequeno grupo de egípcios – o que lembra Freud e sua interpretação de Moisés como sacerdote egípcio fiel ao monoteísmo do deposto faraó Akhenaton (século XIV a.C.). Finkelstein e Silberman descartam a tese, pois as novas aldeias não mostram características da cultura agrícola e urbana de Canaã e sua disposição original – semelhante à de acampamentos nômades – indica outra origem.
Datações modernas mostram que as muralhas de Jericó, que as trombetas de Josué supostamente derrubaram, estavam em ruínas desde 2300 a.C., como também a cidade de Ai, local da batalha seguinte. Outras cidades – Hazor, Afec, Láquis e Megido – caíram em datas mais próximas, mas em uma caótica série de rebeliões e conflitos que durou mais de um século e não durante uma campanha militar única.
Como surgiram, então, os mitos de Abraão, Isaac, José, Moisés e Josué? Os dois primeiros serviram de “agulha” para costurar as tradições distintas de Israel e Judá. O poder de José no Egito e o Êxodo reinterpretariam uma antiga tradição regional sobre o domínio dos reis hicsos (cananeus) sobre o delta do Nilo, a partir de 1800 a.C. e sua derrota e expulsão para Canaã pelo faraó Amós em 1570 a.C. Ao mesmo tempo, prefiguravam a esperada libertação de Judá por Josias.
Josué (cujo nome, “Javé é Salvação” em hebraico, equivale ao de Jesus em aramaico) servia para justificar o direito dos judeus sobre toda a Terra Prometida (explicando, de passagem, a origem de antigas ruínas como Jericó e Ai), evocar um retrato metafórico de Josias – rei exemplar e salvador na visão dos redatores da Bíblia – e tornar crível, com seus milagres, a promessa de que nenhuma vitória seria negada a um povo que seguisse a Lei. Os gloriosos Davi e Salomão bíblicos – possivelmente versões glorificadas de humildes chefes de aldeia da vida real – proporcionaram o modelo para o futuro reino hebreu unificado.
A promessa parecia prestes a ser cumprida. Em 623 a.C., o Império Assírio começou a desmoronar. Seus treze anos de agonia alimentaram as esperanças messiânicas depositadas em Josias, que ocupou parte da Samaria e Filistéia até a hegemonia assíria ser substituída pela egípcia. Em 609 a. C., o faraó convocou os vassalos de Canaã, incluindo Josias, a jurar lealdade em Megido. Mas o rei de Judá, suspeito de insubordinação, foi executado ao chegar. Redatores posteriores preferiram narrar esse anticlímax como uma gloriosa batalha, que os cristãos tomariam como modelo para o Armagedon.
Seus sucessores foram títeres do Egito até Nabucodonosor vencer o faraó, tomar-lhe a Palestina, saquear Jerusalém e aprisionar seu rei. Seu substituto rebelou-se, mas em 587 a.C. Babilônia aniquilou Judá e exilou a maioria dos sobreviventes.
Estes exilados, ao contrário dos de Israel, tinham uma ideologia a que se apegar. Mas, para explicar a catástrofe, foram necessários retoques e emendas, que prosseguiram depois de Babilônia ser tomada pelos persas e os judeus voltarem a Jerusalém para reconstruir o Templo.
A culpa recaiu retroativamente sobre o povo que havia traído o monoteísmo antes deste ser inventado, principalmente sobre Manassés e seus contemporâneos. Em vez de enfatizar as conquistas gloriosas e sangrentas de Josué, passou-se a destacar a luta de Moisés contra o cativeiro de seu povo. O judaísmo relegou para um futuro distante o sonho com o messias da casa de David e passou a enfatizar a resistência e a conservação da identidade e da pureza no presente.
Embora neguem tanto do conteúdo histórico da Bíblia, Finkelstein e Silberman enfatizam seu valor como fonte de identidade e âncora espiritual para o povo judeu. Sua resistência multimilenar atesta que, mesmo sob uma linguagem fundamentalista, uma mensagem de luta contra a opressão e a injustiça pode sobreviver a inúmeras derrotas.