spoiler visualizarRaul113 04/01/2021
A teoria do romance ? Georg Lukács
A teoria do romance é um livro magnificamente escrito, carregado do que podemos chamar de prosa poética, mesmo sendo um livro de estudo teórico-literário e filosófico. É um livro que recomendo bastante para aqueles que tem vontade de escrever principalmente narrativas como o romance ou para quem estuda o assunto ou pensa em estudar e aperfeiçoar seus conhecimentos e sua escrita.
O livro, que foi publicado originalmente ?Revista de Estética e de História Geral da Arte? em 1916, sendo publicado na forma de livro apenas em 1920, trata de uma comparação entre o mundo grego e o mundo contemporâneo.
Tratando o mundo grego como o berço da epopeia valorizando todas as suas peculiaridades, como um mundo adequado, enquanto o mundo contemporâneo ? berço do romance ? sofre uma triste análise,
Através de seu estudo, além de entendermos vividamente os mecanismos que desconcertam nosso mundo, também somos expostos às bases histórico-filosóficas da epopeia e do romance.
Em resumo: Um determinado tipo de sociedade gerou o primeiro gênero, enquanto outro tipo de sociedade gerou o segundo. Ou seja, com base materialista, Lukács entende que um gênero literário (ou qualquer aspecto estético) não é meramente o resultado da inventividade de autores ou de uma evolução isolada da forma, e sim um produto, um resultado de formas sociais de produção e de consumo de em um dado momento histórico.
Assim através da leitura podemos entender o gênero romanesco como um gênero que pode ser uma oposição à sociedade capitalista, uma oposição no sentido de dar uma resposta ao esvaziamento de sentido dessa estrutura social que teve por base, desde as suas raízes, a mercantilização da vida, com uma redução de todos os valores ? cada vez mais forte no atual período da história ? ao dinheiro. O romance pode ser uma resposta não só ao embrutecimento cultural, à cegueira que o inculcamento de valores baseados na lógica do mercado pode causar, mas a qualquer tipo de conhecimento ou certeza baseados nas ideias frágeis do senso comum.
Mas voltando aos aspectos gerais do texto. O livro se subdivide em duas partes. Na primeira o autor trata de explanar sobre o mundo grego e o mundo contemporâneo, intitulada de ?As formas da grande épica em sua relação com o caráter fechado ou problemático da cultura como um todo. Na segundão intitulada ?Ensaio de uma tipologia da forma romanesca? o autor faz um balanço da história do romance europeu analisando os seus quatro grandes tipos: o idealismo abstrato, o romantismo da desilusão, o romance de educação e a extrapolação das formas sociais. Para isso ele vai usar quatro grandes romances como exemplo (vide livro)
Já na passagem inicial de seu texto, o autor faz um elogio à estrutura do mundo grego, no qual, segundo ele, o homem não era um ser dividido, essência e exterioridade não eram elementos divorciados; o mundo ainda não era um cárcere.
Afortunados os tempos para o quais o céu estrelado é o mapa dos caminhos transitáveis e a serem transitados, e cujos rumos a luz das estrelas ilumina. Tudo lhes é novo e, no entanto, familiar, aventuroso e no entanto próprio. O mundo é vasto, e, no entanto, é como a própria casa, pois o fogo que arde na alma é da mesma essência que as estrelas; distinguem-se eles nitidamente, o mundo e o eu, a luz e o fogo, porém jamais se tornarão para sempre alheios um ao outro, pois o fogo é a alma de toda luz e de luz veste-se todo fogo. Todo ato da alma torna-se, pois, significativo e integrado nessa dualidade: perfeito no sentido e perfeito para os sentidos; integrado, porque a alma repousa em si durante a ação; integrado, porque seu ato desprende-se dela (LUKÁCS, 2000. p. 25).
Em outras palavras essa é a era da epopeia, ou ainda, essa foi a era que permitiu a construção de um gênero como a epopeia. Esse gênero representa um mundo em que os valores de um personagem correspondem aos valores da comunidade. Os personagens não se isolam, nem sentem o horror da inadaptação, a ojeriza a outros seres que vivenciam valores tão opostos aos seus; os personagens da epopeia têm os mesmos ideais de seu grupo. Aquiles e Ulisses não representavam a si mesmos, mas sim uma comunidade inteira, pois:
Cada personagem que aparece [na epopeia] está à mesma distância da essência, do suporte universal, e portanto, em suas raízes mais profundas, todos são aparentados uns aos outros; todos compreendem-se mutuamente, pois todos falam a mesma língua, todos guardam uma confiança mútua, ainda que como inimigos mortais, pois todos convergem do mesmo modo ao mesmo centro e se movem no mesmo plano de uma existência que é essencialmente a mesma (LUKÁCS, 2000, p. 42).
Já no mundo do romance os heróis, em oposição, buscam algo. Eles representam aquela pequena parcela do mundo-cárcere que não acredita nas convenções e não se deixa, assim, aniquilar-se, esquecer-se. O romance completa o homem que é alheio a esse mundo alheio à subjetividade. O romance é a forma que representa uma realidade interior não encontrada nas estruturas sociais que nos regem e que nos sufocam.
Quando objetivo algum é dado de modo imediato, as estruturas com que a alma se defronta no processo de sua humanização como cenário e substrato de sua atividade entre os homens perdem seu enraizamento evidente em necessidades supra-pessoais do dever- ser; elas simplesmente existem, talvez poderosas, talvez carcomidas, mas não portam em si a consagração do absoluto nem são os recipientes naturais da interioridade transbordante da alma. Constituem elas o mundo da convenção, um mundo de cuja onipotência esquiva-se apenas o mais recôndito da alma; um mundo presente por toda a parte em sua opaca multiplicidade e cuja estrita legalidade, tanto no devir quanto no ser, impõe-se como evidência necessária ao sujeito cognitivo, mas que, a despeito de toda essa regularidade, não se oferece como sentido para o sujeito em busca de objetivo nem como matéria imediatamente sensível para o sujeito que age (LUKÁCS, 2000, p. 62).
Ou seja, quanto mais conhecemos a nós mesmos, quanto menos introjetamos os mantras da atualidade, menos nos identificamos com o mundo externo.
Para Lukács o gênero romance ergueu-se desse espaço interno comum a todos e que, por causa da estrutura capitalista, foi tornando-se cada vez menor. Assim o gênero surge no degrau entre o que queremos ser/fazer e entre o que temos de ser e fazer que surge a estrutura do romance de modo que a partir das leis que nos escravizam surge em nós a necessidade da busca por leis internas quase apagadas, varridas para uma terra de ninguém.
Ao estabelecer as diferenças e as necessidades que levam ao desaparecimento da epopeia e ao surgimento do romance Lukács passa a tratar da forma interna do romance. Que se assemelha muito a jornada do herói na minha visão.
De acordo com o autor forma interna do romance é baseada em um indivíduo perdido que sai em busca de si mesmo, que procura entender o que lhe fala a sua natureza e quais são as suas próprias leis. O romance, seria então um gênero de
reflexão, que desvenda, a nós mesmos, o nosso próprio interior, escondido pela força com que as regras do cárcere-mundo nos são inculcadas. O romance desconstrói essas regras e nos leva a alcançar um elevado grau de autoconhecimento.
A forma interna do romance também se caracteriza por outro aspecto. Sua configuração mais adequada encontra-se na forma da biografia. A incompletude, a fragmentação e a falta de significado descritos pelo romance fazem com que ele ? para organizar essa realidade e transmitir uma ideia, uma tentativa de ordenamento do mundo ? estruture-se a partir de uma organização mais rígida que a da epopeia.
[...] de um lado, a extensão do mundo é limitada pela extensão das experiências possíveis do herói, e o conjunto dessas últimas é organizado pela direção que toma o seu desenvolvimento rumo ao encontro do sentido da vida no autoconhecimento; de outro lado, a massa descontínua e heterogênea de homens isolados, estruturas alheias ao sentido e acontecimentos vazios de sentido recebe uma articulação unitária pela referência de cada elemento específico ao personagem central ao problema vital simbolizado por sua biografia (LUKÁCS, 2000, p. 55).
Assim, o limite do romance seria o limite da vida do herói. Já que ação se constrói em torno de um período de tempo que não é arbitrário, e sim relevante para um determinado autor dizer o que quer dizer. A trajetória do personagem tem de ser apenas suficiente para que uma parcela do mundo seja enfocada. E o que leremos nessa trajetória é o herói problemático, indivíduo solitário, em busca de si mesmo versus um mundo destituído de sentido, que age sobre esse herói. Assim, essencialmente, o romance transmite uma ideia sobre a vida, sobre o mundo, dentro da história fictícia de uma determinada persona.
Ao final ainda temos um posfácio do tradutor, onde ele vai tratar de comentários das teorias de Lukács, nos trazendo muitas explicações para questões que a primeira vista não estão tão claras durante a leitura da obra, além disso ele também nos trás um apanhando histórico da vida do autor, falando sobre suas influências, principalmente em relação às questões que envolveram a primeira guerra mundial durante a qual o estudo foi escrito e também sobre Max Weber, o sociólogo alemão de quem Lukács foi um grande amigo e protegido no período.
No entanto, no início do livro também podemos encontrar uma análise feita pelo próprio Lukács a respeito de seu estudo, onde ele nos fala também sobre algumas questões que ele mesmo mudaria já anos após a sua publicação.
FONTE DE APOIO: Georg Lukács. A Teoria do Romance: Um Ensaio Histórico-Filosófico Sobre as Formas da Grande Épica link: https://periodicos.ufrn.br/principios/article/view/652