Andreia Santana 11/10/2010
“Evangelho” Pop para rir... e refletir
Sempre desconfiei de que a versão “extra-oficial” da vida de Jesus era bem mais interessante, e divertida do que a oficial das aulas de catecismo. Vai ver, inclusive, o escritor Christopher Moore tinha mesmo a intenção de exorcizar o trauma das suas lições de religião ao criar uma biografia inusitada e hilária para o filho de Deus. O Cristo é Pop e não há nada de errado nisso.
O Cordeiro, porém, é bem menos iconoclasta do que imaginei. Sim, o livro é divertidíssimo, tem sacadas filosóficas tratadas com muita leveza, aborda temas-tabu como a castidade de Jesus e o amor por Madalena de maneira muito lúdica, não é obra para estudar religião e muito menos para levar ao pé da letra (difícil imaginar Jesus praticando artes marciais), também ultrapassa em muito a mera “curtição” com a cara dos beatos. Mas, na leitura que faço, o autor não esconde sua admiração por J.C, enquanto homem e também Messias.
Tampouco o escritor desmerece a mensagem de bem-aventurança do Cristo. Se não é para zoar com os padres, muito menos é para desacreditar Jesus que Moore capricha tanto na condução da narrativa.
Ninguém consegue se livrar da própria cultura com facilidade e Christopher Moore, que é norte-americano, não se furta em “pregar” algumas passagens do livro, embora faça isso de forma irônica e muitas vezes, de uma maneira até meio “saramagueana” de ser, chamando atenção para o ridículo de certos preceitos religiosos. Não, a ideia aqui nessa resenha não é bater na religião alheia. Até porque, cada um tem a sua. Respeito todos os credos, inclusive o direito daqueles que acreditam em nada.
Ao citar Saramago também não estou comparando ao pé da letra, porque não dá. Os dois autores têm estilos e formas de abordar a religião muito diferentes, fruto da cultura de um e de outro, da diferença de idade e das convicções pessoais. José Saramago era ateu convicto, Christopher Moore não é ateu no sentido literal da palavra. Ao menos, não é o que seu texto demonstra. Ele acredita. Não parece rezar na cartilha judaico-cristã, prefere a fonte original, os Vedas e o Budismo. Mas é o que se chamaria de uma pessoa de fé. Não à toa, coloca Jesus, numa jornada épica, em busca de iluminação.
Moore fala dos ensinamentos milenares de Buda com grande respeito, prova de que estudou bastante o assunto ou de que os pratica, no mínimo admira. Também passeia pela Bíblia com grande desenvoltura, tanto que pode brincar com ela como se fosse um almanaque e, mesmo narrando situações esdrúxulas, é perfeitamente plausível. Tive vontade de que a história verdadeira fosse esta que ele conta e não a que me ensinaram na escola e da qual fui desacreditando com o passar do tempo (ao menos em termos). Mas, com o personagem principal e suas testemunhas oculares mortas há mais de dois mil anos, onde estará a verdade? Na versão oficial?
Mesmo que não pratique nenhuma religião especifica e nem tenha escrito O Cordeiro com a finalidade da catequese, Christhopher Moore parece buscar e querer ensinar com seu despretensioso e muito bem escrito livro, o que todas as crenças deveriam professar: a tolerância. Afinal, todos devemos buscar ser pessoas legais umas com as outras. No fundo, como ressalta o autor, era o que Jesus queria.
Christopher Moore também não reinventa a roda. A história termina exatamente da mesma forma que todas as versões da vida de Cristo, mas não necessariamente na mesma ordem. Afinal, licença poética é o que mais se comete com as biografias do Salvador, sejam elas canônicas ou apócrifas.
O mais gostoso em um livro é que quando o autor se diverte o leitor também terá momentos felizes garantidos. No caso de O Cordeiro, o bom-humor de Christopher Moore transpira de cada página e é contagiante. Não consegui identificar uma única “barriga” na história, tudo é bem amarrado. Não tem trechos enfadonhos e as piadas são inspiradas, mesmo as mais ingênuas. Seu Jesus é muito carismático, bem mais que o imolado cordeiro dos evangelhos. Em certos trechos que o autor cria para “fechar as lacunas” sobre a infância de Cristo, o menino prodígio cheio de super-poderes que ele descreve me lembra o Adam de Belas Maldições (Neil Gaiman/ Terry Pratchett). O que não deixa de ser engraçado, visto que Belas Maldições narra o nascimento e a infância do anticristo.
O prêmio de mister simpatia de O Cordeiro, porém, vai para o narrador-personagem Levi, “aquele que é chamado de Biff”, espécie de melhor amigo e guarda-costas do Salvador. Biff é o alter-ego de Jesus, é o lado “pé na jaca” do filho de Deus.
É justamente a humanidade de Biff, capaz de gestos grandiosos como um santo e outros mesquinhos como um homem, que o torna um personagem tão instigante. Cético, cínico, debochado, Biff duvida de tudo e de todos à sua volta, menos de seu amigo Josué (o autor usa o nome hebraico de Jesus).
A união de Biff e Josué rende um belo tratado sobre a amizade. E no fim das contas, é disso que o escritor fala: amizade, respeito, tolerância e diversão, afinal, não vale a pena nascer com tantos dons se não for para uma pessoa se divertir só um pouquinho...
Christopher Moore usa o “santo nome de Deus” não em vão, como diriam os carolas, mas em beneficio do melhor de todos os remédios espirituais, que é rir dos outros e de si mesmo.
Minha sinopse da obra: O Cordeiro é a “biografia” de Jesus que cobre os 30 anos desde o nascimento do Filho de Deus até o começo do seu ministério (nos três últimos anos). Quem conta a história é Levi, ou Biff, o melhor amigo de Jesus (ele o chama de Josué) desde a infância. Ressuscitado por um anjo dois mil anos depois da crucificação, ou seja, nos tempos atuais, Biff precisa contar como a história “realmente” aconteceu, pois o Todo Poderoso não está satisfeito com os evangelhos canônicos que engoliram as partes mais divertidas da vida do Salvador. Enquanto relembra o passado de Josué e o seu próprio, o “apóstolo” precisa também lidar com o mundo moderno: barulhento, caótico, nonsense e bem mais cruel que aquele de seu tempo...