Arsenio Meira 04/07/2013
Sobre Lenços, Lágrimas, Lições e Memórias
Com o título "Sempre a mesma neve e sempre o mesmo tio", da escritora romena Herta Müller, vencedora do Prêmio Nobel de Literatura de 2009, o livro luziu na estante. Olhei, esquadrinhei. Nada tinha lido da romena. Na orelha do livro, alguém da Editora cravou a autora como “escritora alemã”, o que estranhei.
Mas segui minha busca, comprei e li.
No sumário, os ensaios, dentre os quais, destaco; “Toda palavra conhece algo do círculo vicioso.” “Não leve seu pensamento para onde é proibido.” Um corpo tão grande e um motor tão pequeno.” O uso das ruas finas.” O homem quer saber quem o está agarrando.” O olhar das pequenas estações.” Quando o corpo me deixa na mão.
Fui ao primeiro texto. É o discurso da Herta, dia oito de dezembro de 2009, na Academia Sueca, em Estocolmo.
É comovente. Capaz de arrancar lágrimas ao mais duro dos leitores. Começa com uma pergunta que sua mãe lhe fazia, todos os dias, junto do portão de casa, antes da pequena Herta sair para a rua. Ela não tinha um lenço. Voltava ao quarto, para pegar um. Cada manhã, ela não levava o lenço, porque a cada manhã, esperava pela pergunta.
“O lenço era a prova de que mamãe me protegia pela manhã”.
A pergunta era um carinho indireto, diz a escritora, porque os camponeses não são assim, diretos. O amor se disfarçou em pergunta.
Um dia, debaixo do desgoverno brutal de Nicolae Ceausescu, um homem misterioso, de ossos largos e olhos azuis faiscantes, um desses covardes do serviço secreto, foi à fábrica onde a jovem Herta trabalhava. Apenas a xingou e foi embora.
Na segunda vez, elogiou seu conhecimento incomum em relação às pessoas. Na terceira, a xingou. “Burra feito uma pedra, preguiçosa para o trabalho, mulher da vida, tão depravada quanto uma cadela vira-lata”. Entregou um papel e passou a ditar com ares sinistros. Lembrou-me o calvário premonitório da personagem de Kafka. Herta foi escrevendo, até que veio a palavra “colaborez”. Que colaborava.
Herta foi à janela. A escritora descreve o cenário no entorno da fábrica com uma delicadeza tão intensa, tão rigorosa e precisa, que podemos entender quando diz, em outro texto – “nunca confundi meu medo”. Rua empoeirada lá fora. A viela empoeirada, que se chamava “Estrada da Glória”. O gato da fábrica, com a orelha rasgada. O sol da manhã, como um tambor amarelo. E a resposta.
"eu não tenho este caráter”.
A palavra “caráter” deixou o homem do serviço secreto histérico. Suspirou fundo e atirou o vaso de flores com tulipas contra a parede. “Ele estilhaçou e fez um ruído como se o ar tivesse dentes.” À saída, falou baixo que ela iria se arrepender. “Vamos afogar você no rio”.
Ela não disse para ele, disse para si mesma. “Se eu assinar isso, não vou conseguir mais viver comigo, daí eu mesma terei de fazer isso. É melhor que o senhor faça”.
Em poucos dias, os operários começaram a se afastar dela. À boca pequena, a infâmia começou a espalhar-se pelos cantos fabris. Foi apontada como espiã. Herta estava sendo punida porque preferiu poupar os colegas. Perdeu seu lugar no escritório, ficou sem mesa e passou a usar a escada para fazer seu trabalho. Ajeitou seu lenço sobre um degrau e sentou-se sobre ele. O lenço se tornou seu escritório.
Um dia, seu amigo Oskar Pastior foi deportado para um campo soviético de trabalhos forçados. Recebeu de uma velha mãe russa um lenço branco de cambraia. Talvez isso lhes dê sorte, a você e a meu filho, e logo possam voltar para casa, disse a russa. O filho, da mesma idade de Pastior, já estava longe de casa.
Ganhara o lenço quando batera à sua porta, propondo trocar um pedaço de carvão por um pouquinho de comida. Ao tomar uma sopa quente, o nariz dele pingou no prato. Ela lhe deu, então, o lenço de cambraia. Tinha uma bainha ornada de pequenas rosas e galhos de retrós de seda costurados caprichosamente, conta Herta. O lenço era uma beleza que abraçava e machucava o pedinte.
“Desde que conheço essa história, também tenho uma pergunta: Será que você pegou um lenço?”, diz Herta, e imagino o silêncio pairando em Estocolmo, numa cerimônia da Academia Sueca.
Oskar Pastior guardou o lenço na mala e o trouxe na mala, após os cinco anos no campo de concentração. Por quê?
“O lenço branco de cambraia era esperança e medo. Se soltamos a esperança e o medo, morremos”.
Um dia, a mãe de Herta foi presa. O romeno da camponesa era insuficiente para entender a gritaria do policial, que queria informações sobre a filha. Uma hora, ele saiu e a deixou trancada.
A mãe de Herta caminhou na pequena sala, caminhou, sem ter o que fazer, até que começou a limpar o pó dos móveis com o lenço molhado de lágrimas. O que poderia ser uma humilhação extra, acabou dando dignidade à sua prisão.
“Desejaria dizer uma frase a todos que têm sua dignidade usurpada pelas ditaduras, todos os dias, até hoje – e que fosse a frase com a palavra lenço. E que fosse a pergunta: Vocês pegaram um lenço?”
Herta conclui:
“É possível que, desde sempre, a pergunta pelo lenço não se refira ao lenço, mas à aguda solidão de um ser humano?”
Comprei o livro e o li com sofreguidão. A Herta Müller, que reagiu ao medo com ânsia de viver. Que se corrompeu, quando passou a ler livros. Que viveu sussurrando, debaixo de uma ditadura, até que escapou para a Alemanha. Que viu muitas pessoas desmoronarem, que estava prestes a desmoronar, pouco antes de deixar a Romênia. Que admite ter tido muita imerecida sorte. Que disse a seguinte frase:
“Ser feliz talvez dê para dividir. Ter sorte, infelizmente, não”.
Em seu discurso, citou as ditaduras do Irã, Rússia e China, que vestem-se com roupas de civis, liberalizam sua economia – mas os direitos mais básicos dos seres humanos estão longe de desgrudarem do stalinismo ou do maoismo ou de qualquer outro terror travestido de "regime político."
“Sempre a mesma neve e sempre o mesmo tio” é um lenço que ganhamos de presente da inesquecível Herta Müller.