Arsenio Meira 24/05/2014
"Esquecer para Lembrar"
Em "Claro enigma",Drummond, num ato de remissão poética desdobrou-se e dialogou de si para si: “Tua memória, pasto de poesia". De fato, a memória individual, na voz de uma singular e dorida personagem (LUDOVICA OU LUDO) serviu de alimento para o escritor José Eduardo Agualusa, neste belo, comovente e muitíssimo bem armado romance - fabulário firme e dardejante - cujo título já serve de prévio aviso aos navegantes o que está por vir. O final é desconcertante, uma perfeita justaposição vitoriosa de todos os que habitam o livro em torno da protagonista, e se encaixou tão espontâneo, que o que era dor virou perseverança, remissão,avanço dos personagens "em direção à luz,rindo,conversando, como quem entra num barco."
Estamos em Luanda. Revoluções, golpes de Estado, estopins políticos espoucam, de cinco em cinco minutos, nos céus da antiga colônia portuguesa. A malta não se sacia. Agualusa, embora conciso, não deixa de resgatar um período histórico. Ludo é uma solitária, vítima de um "acidente" citado apenas no início do romance, e revelado ao final. Morrem seus pais, e sobra-lhe uma irmã e um cunhado. Estes, por conta das intrigas e inseguranças de um país explodindo a cada cinco minutos, somem. Ludovica "herda" uma apartamento enorme, situado na parte abastada da cidade, sozinha, apavorada. Empreende mil e uma peripécias para sobreviver (por trinta anos!!) sem colocar um único fio de cabelo fora do edifício. Faz amizade com um macaco, ganha a companhia de um cachorro e a vizinhança, outrora estabelecida pelos padrões normais é objeto de um laivo de realismo fantástico: hipopótamos, anões, bêbados, galinhas começam a invadir o Edifício antes reservado aos primatas do capitalismo e colonialismo.
É a revolução, ó pá! Ludo sente saudades de Aveiros, mas não pode sair do apartamento, o pânico lhe serve de guia para permanecer inerte, sem itinerário, neste caldeirão poeticamente traçado por Agualusa. Mas ela resiste. Sim, ela resiste. E bravamente. A exemplo do ruminante que remastiga o capim armazenado no estômago, os mitos do passado, as vivências de menina e de moça, foram trazidos à consciência, remoídos pela personagem e convertidos em experiência, em mito,em matéria de criação ao longo de toda a sua empreitada. Assim, pode-se dizer que ao lado de algumas tramas que se interligam à trama principal de maneira surpreendente espontânea. O espelho íntimo da personagem se converte em alguma espécie de receptor de seus monólogos. A cada capítulo, Agualusa nos brinda com breves poemas, como é praxe, ao que parece, nesta nova e talentosíssima geração de escritores lusos, ou luso africanos. É uma bela e triste fábula.A sobrevivência de Ludovica é posta a todo tipo de provação. Eis um dos eixos centrais do romance. Presente em toda a caminhada dos personagens, a matéria pretérita permeia todo trajeto, e transporta-se pelo tempo, com suas feridas e cicatrizes. O lema drummondiano "Esquecer para lembrar" despontou em meu juízo ao ler as marcantes linhas finais deste que é, sem dúvida alguma, um romance que há de vencer o tempo, a ausência e o esquecimento.