Glaucia 17/03/2015
Menina e Moça ou Livro das Saudades
Trata-se de uma novela sentimental, género em voga em Itália, inacabada e de carácter, ao que tudo indica, autobiográfico, em que se inserem relatos que a aproximam, por um lado, do romance de cavalaria e, por outro, do ambiente próprio do bucolismo, um pouco à maneira da novela Fiametta, de Boccacio, em que também uma menina nos fala dos seus males de amor.
O livro inicia-se por um monólogo a cargo de uma menina, - «Menina e moça me levaram de casa de minha mãe para muito longe», - que recorda a sua infância, num lugar ermo em que se refugiou, longe do convívio das pessoas, em tom de lamentação por um amigo de quem se separou, não se sabe muito bem porquê -define assim uma situação de exílio e produz reflexões sobre a mudança que o tempo originou em si; compraz-se nas saudades e no observar da natureza, assumindo particular interesse as suas reflexões em torno da morte de um rouxinol. Parece comprazer-se na dor, na mágoa, na saudade, nas lágrimas. (Livro chamado As saudades de Bernardim Ribeiro assim foi o título da edição de Évora).
Surge-lhe inesperadamente uma «Dona do tempo antigo», trajando de luto -saber-se-ia que pelo desaparecimento de um filho (ambas as figuras femininas são objecto de perdas). A «dona do tempo antigo», mais velha e experiente e, portanto, podendo assumir uma função pedagógica junto da «Menina», afirma lamentar a sorte das mulheres, pois, segundo ela, não há tristeza nos homens (que se distraem em torneios e jogos de guerra e por isso não sofrem tanto), com excepção dos protagonistas das histórias que vai contar: - três histórias de teor aparentemente cavaleiresco em que intervêm três pares de enamorados infelizes: «histórias alheias que funcionam como reflexo das histórias e angústias da Menina», visto «girarem em torno do sofrimento por amores irrealizados.»
Como vemos, estamos perante duas histórias: - a protagonizada pela Menina, que é, simultaneamente a narradora do livro, que escreve ou pretende escrever a sua história de amor infeliz, e que decidiu escrever para as pessoas tristes, ou seja, como diz, para as mulheres, ou então para o amigo que possivelmente a não lerá, ou mesmo para si somente; um livro que se apresenta sem plano pré-definido - «o livro há-de ser do que vai escrito nele»; - e a que escreve narrando as histórias que lhe foram contadas pela Dona, narradora de tipo participante. Portanto, estamos num esboço daquilo que será uma espécie de narração dentro da narração (de histórias de amor protagonizadas por cavaleiros e damas) dentro de outra (a da menina e do seu contacto com a dona).
Mas, como diz António José Saraiva, «O autor, embora insira no livro alguns episódios cavaleirescos, não pretende contar aventuras, mas antes o desenrolar psicológico do enamoramento, dentro, aliás, daquele quadro do amor impossível que já encontrámos nas suas Éclogas.» O mesmo autor, assinala, no livro, a «profundidade e a subtileza da análise psicológica: como acontece o enamoramento, como se desenvolve e se manifesta: a timidez e os seus pretextos; a diferença entre amor e desejo. É quase um tratado do amor». Assinala igualmente «a profundidade e a subtileza da análise psicológica», o «realismo dos ambientes com cenas, como a do parto de Belisa».
E continua, dizendo: «O amor não é apenas, uma convenção, como nos romances de cavalaria medievais, nem um ideal, como na poesia trovadoresca provençal, e muito menos é um pretexto para acções heróicas. É um facto, um acontecer que o autor regista empiricamente, analisando-o com uma penetração que só voltaremos a encontrar no romance moderno.» […]
Importante é também, neste livro, o sentimento da natureza, da paisagem, uma paisagem natural, não construída ou tocada pelo homem, «feita de rumores surdos e de lonjuras.», pouco concreta, justamente porque se destina a permitir a fuga de si mesmo, a evasão: «O que há principalmente nesta paisagem é o apelo da distância.
Teresa Amado, por sua vez, em introdução a Menina e Moça considera o livro «uma longa e lindíssima cantiga de amigo»; refere a relação de cumplicidade e de complementaridade entre a Menina e a Dona do tempo antigo, que representariam as duas faces da mulher - a de enamorada e a de mãe, - unidas pelo comum sofrimento extensivo à condição da mulher («sofrendo melhor, a Mulher está num plano espiritualmente superior ao Homem.»). Trata-se de um romance de «aprendizagem do amor e da vida», de tom feminista, que considera ser «provavelmente o livro, escrito por um homem, mais feminino da literatura portuguesa». Estabelece ainda uma interessante relação com o drama estático O Marinheiro e com a Mensagem, ambos de Fernando Pessoa, quanto ao sentimento saudosista (a saudade do que não existiu provavelmente nunca) que perpassa no livro.
Isabel Margato, na obra já citada, declara, ao arrepio do que vem sendo dito repetidamente por outros, que «a obra encerra uma «pseudovisão» feminista», lembrando que, afinal, a Menina pouco diz de si, com precisão, sendo as histórias narradas pela Dona, afinal, «modalidades da história da Menina, reduplicações de uma vida insatisfeita, que é só saudade, cuidado e morte, decorrente da separação dos pares amorosos.» e em que os duplos da menina são figuras masculinas, Binmarder, Lamentor e Avalor. Por isso conclui: «Não se coloca a visão feminina do amor, mas o que um homem acredita pertencer ao espaço do sentimento feminino, como nas cantigas de amigo.» [...]
No seu estudo pioneiro, de 1938, Ensaio sobre a poesia de Bernardim Ribeiro, reeditado em 1990, como parte integrante do volume Poesia e Drama, em ed. Gradiva, em Lis-boa, António José Saraiva assinalou ainda em Bernardim duas linhas importantes: - a confusão objectivo / subjectivo e o panteísmo naturalista; assinalou também o sentido do movimento, da musicalidade («ritmo vago, balouçante, longa e lenta música em ritmo interior»), a antropomorfização da natureza, de que o homem é tão somente um dos elementos; quanto ao panteísmo naturalista é "como se deus se confundisse com a natureza, encontrando-se como que embebido nela".
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