Luis 13/05/2014
Os idos de maio
Um dos motes mais repetidos nas faculdades de jornalismo ( e possivelmente também nas de letras) é o de que deve se fugir dos adjetivos. Invariavelmente, um texto fraco é, via de regra, bastante adjetivado. Não vou discutir as normas, na maioria das vezes elas merecem ser cumpridas. Mas, volta e meia, exceções devem e podem ser adotadas. No caso de “Ayrton, o Herói revelado” (Objetiva, 2003) não tenho muito como escapar : O livro é simplesmente sensacional. Uma das melhores biografias já publicadas no Brasil.
O autor, Ernesto Rodrigues, jornalista de longa trajetória na Rede Globo, faz um verdadeiro Raio X de Ayrton Senna da Silva. Não só o piloto, cuja a trajetória foi acompanhada por milhões de brasileiros ao longo de uma década, o transformando em um ídolo que transcendeu, e muito, o esporte que o projetou. O livro vai bem além.
Para começar, não é, ao contrário do que o título possa superficialmente indicar, uma ode chapa branca bancada ou apoiada pela família. O caudaloso volume (mais de 700 páginas em seu formato de bolso) é farto em entrevista e depoimentos e não contou com a colaboração, nem qualquer tipo de censura, por parte dos entes do piloto.
Rodrigues descortina a saga de Ayrton desde os tempos do kart ainda incipiente, presente dado pelo pai , e que o seduziu para o mundo da velocidade já aos seis anos de idade. Aos 9, já com um kart de verdade, começa a competir e ganhar diversas provas infantis. Já aos 14 anos, passa a disputar campeonatos e por essa época, conhece o seu primeiro mecânico, o velho espanhol Tchê, que lhe ensinou os primeiros segredos da direção.
Pulando de categoria em categoria, treinando de forma obsessiva e sempre se destacando, Senna chama cada vez mais a atenção no meio do Kartismo paulista. Já em 1977, era o campeão sul americano de Kart, tendo tido ainda um ótimo desempenho nos campeonatos mundiais de 1978 e 1979, embora não ganhasse o titulo.
Já no início dos anos 80, consegue convencer os pais a deixá-lo partir para tentar a sorte no automobilismo europeu. Senna se casa (pela primeira e última vez na vida) vai para a Inglaterra atrás do sonho de conquistar a fórmula Ford inglesa. Os primeiros tempos, de intensa dificuldade pelo afastamento dos pais e pela total imersão de Ayrton às competições, culminando com um aborto involuntário, quase o fazem desistir. Pressionado pela família, Senna volta para São Paulo disposto a mudar de vida e assumir os negócios do pai. Passa a gerenciar uma das lojas de Miltão, apelido de Milton Silva, que sonhava ver o filho o sucedendo. No começo Senna ainda se esforçou, mas logo viu que aquele mundo de notas fiscais, estoques e coisas do gênero não era pra ele. Desistiu de tudo, incluindo aí o precoce casamento e seguiu novamente para a Europa de volta à fórmula Ford. Conquista o título. No ano seguinte, 1983, entra na ante-sala da fórmula 01, a fórmula 03 inglesa , sendo novamente campeão.
Em 1984 estreia na Fórmula 01 pela pequena Toleman, um carro que a princípio estaria destinado a mera figuração no grid daquele ano, no entanto, Senna já despontava com bons resultados na África do Sul e no mítico GP de Mônaco (do qual viria a ser o maior vencedor) ao dar o seu primeiro show na chuva e partir pra cima do líder Alain Prost, que, graças a ajuda do diretor de prova que atendeu aos apelos pela interrupção da corrida, foi declarado o vencedor somando metade dos pontos que levaria em uma corrida normal (4,5), o que no final, seria um baita castigo para o francês, pois perderia o campeonato justamente por meio ponto para o mítico Niki Lauda.
O livro segue relatando a ida de Ayrton para o Lotus em 1985. No lendário carro preto e dourado (amarelo em 87), Senna começaria a escrever seu nome na história da categoria, conquistando a sua primeira vitória e se consolidando como um dos maiores talentos do esporte.
É interessante notar que Ernesto Rodrigues descortina a verdadeira relação existente entre Piquet e Senna. O que para o grane público aparentemente parecia uma mútua antipatia, se revela muito mais que isso. Os dois em determinado momento eram quase inimigos. Rodrigues conta que a então promessa da Fórmula Ford foi apresentada ao campeão de 81 no padock do GP da Bélgica de 1982 (onde, durante os treinos, morreu Gilles Villeneuve). Piquet teria sido frio com o Ayrton que jurou um dia vencê-lo. No mesmo dia, Senna conheceria um dos seus mais diletos amigos : Galvão Bueno, já titular das transmissões de F1 da Globo.
A ascensão de Senna e sua postura pública bem diversa da de Piquet, tido pela imprensa e boa parte do público como antipático, geraria um racha na torcida. Essa tensão chegaria ao auge em 1988, quando Piquet insinuou em uma entrevista que Ayrton seria homossexual. Tal nível de stress chegaria inclusive a afetar as transmissões da Globo, pois Reginaldo Leme, amigo de Piquet e rompido com Senna, brigaria também com Galvão que passaria abertamente a pedir a sua cabeça. Durante duas temporadas (90-91) a dupla de jornalistas só se falava quando estava no ar. Fora do microfone nem se cumprimentavam.
O volume também deixa clara a importância da Honda para carreira do piloto. A fábrica japonesa passou a equipar a Lotus em 87, migrando com Senna para a McLaren em 88, iniciando aí os anos dourados que culminaram no tricampeonato. Ernesto Rodrigues conta tudo : como as relações com Alain Prost foram se deteriorando, o domínio dos carros vermelho e branco na temporada, o show em Suzuka que lhe valeu o primeiro título e toda a polêmica envolvendo as disputas de 89 e 90, essa última com Prost já na Ferrari e sendo como muitos como um golpe baixo de Senna.
As histórias das glórias dos anos do auge na McLaren, as dificuldades nas temporadas de 92-93, quando já havia o absoluto domínio das Willians e finalmente, toda a controvérsia da fatídica temporada de 1994, precocemente encerrada na curva Tamburello, seguem entremeadas à exposição das múltiplas faces do ídolo : Seus amores (com especial destaque para o marcante romance mal resolvido com Xuxa), dúvidas, negócios, o staff de confiança que o mantinha focado nas disputas, a vontade de formar uma família e a derradeira, e também polêmica, relação amorosa com Adriane Galisteu. Tudo em ritmo de thriller de aventura mas sem concessões ao rigor jornalístico que uma biografia de qualidade deve ter.
Há 13 dias completou-se duas décadas da morte de Ayrton Senna. A dimensão de sua perda para o esporte e para a sociedade brasileira está representada pela enxurrada de homenagens que lhe foram prestadas. Ler “Ayrton, o Herói revelado” ajuda a compreender esse fenômeno cuja a importância transcendeu o cockpit. A curva Tamburello pode ter encerrado a trajetória do homem, mas eternizou o mito.