jota 12/11/2013No escurinho do cinema...Cinespectadores comuns que somos, vemos os filmes com nosso olhar típico. Mas um filósofo quando vai ao cinema, podemos estar certos de que ele está a trabalho (do pensamento, das ideias, da filosofia) e não exatamente em busca de diversão apenas. Filósofos ocidentais carregam sobre os ombros, melhor, sobre a cabeça, mais de dois mil anos de filosofia cristalizada.
Fazemos uma leitura de um filme - comédia, drama, policial, terror, animação, etc. -, mas um filósofo faz várias, com uma profundidade que vai muito além do gênero e cujo resultado pode (ou deve) até mesmo surpreender experimentados críticos cinematográficos. Então, se Buzz Ligthyear, o pequenino astronauta de “Toy Story” diz, a certa altura do filme de 1995: “Sou um simples brinquedo!”, não acredite nele nem por um segundo depois de ler Filosofando no Cinema.
Ollivier Pourriol explica: Buzz Lightyear (então recém-lançada miniatura equipada com um sistema hi-fi cheio de chips eletrônicos) desperta a ciumeira ou a ira de alguns brinquedos mais antigos quando chega à casa de seu dono (o menino Andy), pois agora eles terão menos ou nenhuma atenção do garoto. Brinquedos, Pourriol continua, temem especialmente duas datas: o Natal e o aniversário do “dono.” O astronauta Buzz era o objeto de DESEJO de Andy e agora, já em seu quarto, Buzz pode ser (ou é) objeto da inveja ou ciúme de outros brinquedos menos (ou nada) sofisticados, que DESEJAM a atenção de Andy de volta.
Desse modo, “Toy Story”, na análise de Pourriol, pode muito bem ser colocado (e é colocado de fato) ao lado de vários filmes densos (ou tensos, depende) como, por exemplo, “Ciúme” (Claude Chabrol, 1994), onde esse sentimento transforma a vida dos protagonistas num inferno (“L’Enfer” é seu título francês original). Embora o desejo no filme de Claude Chabrol não seja da mesma ordem daquele presente no filme de John Lasseter (diretor e roteirista de “Toy Story”), claro.
O desejo sob várias formas (vontade, anseio, ambição, aspiração, atração física, demanda psíquica, etc.), é objeto de análise em Filosofando no Cinema, cujo subtítulo é “25 Filmes Para Entender o Desejo”, todas obras bastante conhecidas. Algumas delas: “O desprezo” (Jean-Luc Godard, 1963), “Cinema Paradiso” (Giuseppe Tornatore, 1988), “Juventude transviada” (Nicholas Ray, 1955), “Asas do desejo” (Wim Wenders, 1987), “Menina de ouro” (Clint Eastwood, 2004), "Cassino" (Martin Scorsese, 1995), “A fantástica fábrica de chocolate” (Tim Burton, 2005), etc.
Aqui tem Brigitte Bardot, símbolo sexual francês dos anos 1960 (no citado “O desprezo”), objeto de desejo de muita gente, mas estranhei não haver referência a filme algum de sua, digamos, equivalente americana, Marilyn Monroe (da fabulosa comédia “Quanto Mais Quente Melhor”, de Billy Wilder, 1959), uma das atrizes mais desejadas de todos os tempos: apenas o nome dela é citado quatro ou cinco vezes. Estranhei igualmente a ausência de filmes de Bergman, Visconti ou Fellini, mas há um de Antonioni, sim: o enigmático “Blow-up, depois daquele beijo” (1966), representando os grandes mestres do cinema.
A bela capa de Filosofando... remete diretamente para outro filme analisado por Pourriol: “Beleza americana” (Sam Mendes, 1999). A respeito desta obra ele é bastante claro: quem viu vai rever as cenas principais através das palavras de Pourriol e não há como discordar de sua visão das coisas; sem dúvida, é uma das melhores análises do livro.
No seu trabalho Pourriol se vale das ideias, teorias e conceitos de conhecidos filósofos e pensadores ocidentais: Spinoza, Sarte, Platão, Freud, Descartes, Sócrates, Hegel, etc., mas especialmente do pensamento de um conterrâneo seu, o francês Gilles Deleuze. Deleuze dizia que o filósofo, mais do que um sujeito reflexivo é (ou deveria ser) basicamente um criador de conceitos. Ou seja: “fazer filosofia é muito mais do que repetir ou repensar os filósofos”. O filósofo se apequena quando apenas reflete e nada cria, segundo ele.
O problema é que (e agora sou quem está pensando) certos conceitos podem ser bastante inteligíveis ou claros para quem os formulou, nem sempre para quem toma contato com eles pela primeira vez. E dois livros de Deleuze sobre cinema têm os seguintes títulos, que já trazem embutidos em si mesmos ideias conceituais: A imagem-movimento e A imagem-tempo. Bem, mas o livro que li é Filosofando no Cinema, de Ollivier Pourriol. E com isso quero dizer que esta obra, escrita sob muita influência de Deleuze (e também com muita coisa de O Ser e o Nada, volumosa obra de Sartre) não é lá um livro de leitura tão fácil assim. Não foi para mim, pelo menos.
Pois “desejo”, que aparentemente pode parecer uma palavra simples, bastante conhecida de todos, encerra em si mesma várias significações, como já se falou antes. O que Pourriol fez aqui foi aplicar seus vários significados aos 25 filmes que selecionou, mas entender tudo o que ele diz (escreveu) é que são outros quinhentos, não simplesmente vinte e cinco. Pois Pourriol subverte aquelas noções tradicionais de desejo – ou as extrapola, não sei bem -, quando afirma, entre outras coisas, que: “Desejar é não sentir falta. É saber que falta algo. Estar com fome, mas de maneira diferente.” Entendeu?
Embora este livro seja curioso, inteligente e interessante (também complexo ou difícil em muitos trechos), creio que, se ele pode, conforme se diz, fazer a alegria de simples espectadores, cinéfilos ou críticos de cinema, por outro lado talvez faça muito mais a alegria dos filósofos tradicionais ou reflexivos, de que fala Gilles Deleuze. Pois os filósofos deleuzianos certamente devem estar noutra; devem estar por aí, numa sala de cinema ou não, criando novos conceitos filosóficos. E la nave va...
Lido entre 06 e 12/11/2013.