A Ditadura Envergonhada

A Ditadura Envergonhada Elio Gaspari




Resenhas - A Ditadura Envergonhada


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Amós 28/03/2024

Desorganização militar que extermina desorganização de esquerda
O livro A Ditadura Envergonhada é o primeiro livro de uma série que trata sobre o Regime Militar Brasileiro (1964-1985) escrita pelo autor ítalo-brasileiro Elio Gaspari. Gaspari não tem formação de historiador, sendo na verdade um jornalista que se dedicou a estudar e pesquisar o tema a partir, principalmente, de arquivos das Forças Armadas e de diários/entrevistas com figuras envolvidas no governo militar. A série inicialmente iria contar com apenas quatro livros e falaria com mais profundidade sobre atuação de Golbery do Couto e Silva e Ernesto Geisel nos bastidores dos governos militares, porém após mais de uma década de sua conclusão o autor lançou um quinto livro que aborda a descompressão e fim do regime militar. Sua produção é muito criticada por historiadores que se dedicam ao estudo do Regime Militar devido a sua parcialidade na análise da deflagração do Golpe; da luta armada das esquerdas; e da visão elogiosa aos ditos “moderados” das Forças Armadas; e pela falta de um método historiográfico criterioso na escrita do texto, que por vezes divaga entre a análise estrutural do assunto; abordagens rasas de temas paralelos e o relato de causos e anedotas do período. Crítica essa que é válida, mas que não tira o valor da obra, que segue sendo uma das principais referências para o estudo do tema.
O primeiro livro, A Ditadura Envergonhada, aborda com uma análise pormenorizada sobre os meses anteriores à conflagração do Golpe e os primeiros anos do Regime Militar, que serviram principalmente à sua própria estabilização e institucionalização. A compressão do início da Ditadura passa necessariamente pelo entendimento de como a falta de estabilidade na política e economia nacional; o profundo envolvimento dos militares na política (tanto a esquerda quanto a direita); a interferência dos Estados Unidos da América, que inflama e patrocina movimentos anti-esquerda; e a total falta de união entre as esquerdas são pontos chave a derrubada de João Goulart. Apesar do esforço do presidente de preencher postos chaves da hierarquia militar com pessoas de confiança, o chamado “dispositivo militar”, não bastou para impedir o avanço da ala golpista quando chegou a hora. Cabe lembrar também que já haviam ocorrido outras tentativas de golpe nos anos anteriores e como manda a tradição política/militar brasileira, ninguém foi punido por isso e tudo foi varrido para debaixo do tapete. Esse costume de impunidade é muito importante de ser percebido pois será ponto chave do funcionamento do regime pelos próximos vinte anos. O famoso discurso de Jango na Central do Brasil e a promessa da Reforma de Bases são o ponto de virada que inicia a movimentação golpista dentro dos quartéis brasileiros. No evento em que ocorre esse discurso participam diversos militares reconhecidamente de esquerda e há nas palavras um comprometimento com o ideal de pegar em armas para defender as reformas e as possíveis tentativas de golpe. Isso porém ficou somente no discurso.
Liderados por militares que anteriormente já haviam se envolvido em tentativas golpistas, o golpe se inicia com uma coluna de tanques que parte de Juiz de Fora, cidade mineira fronteiriça ao estado carioca, em direção à capital do país, que à época ainda era o Rio de Janeiro. As semanas anteriores ao golpe foram dedicadas à costura de alianças e acordos entre militares e civis que desejam o fim do governo trabalhista, tudo isso com muito apoio da embaixada dos Estados Unidos da América e de setores das elites econômicas brasileiras. Através do diplomata Lincoln Gordon, os americanos prometeram um amplo apoio na luta contra uma possível reação e o reconhecimento imediato ao futuro governo militar que seria criado com o golpe. O presidente João Goulart era visto com muita desconfiança pelo Departamento de Estado dos E.U.A, à época liderado pelo infame Henry Kissinger, e havia ainda um clima de medo e histeria anti-comunista devido à recente Revolução Cubana, que havia expulsado o ditador-fantoche Fulgência Batista e estabelecido um governo socialista na ilha do Caribe. Lyndon Johnson, presidente norte-americano à época, temia que Jango pudesse se tornar um novo Fidel Castro, liderando um governo nacionalista pautado pelo desenvolvimento nacional e na luta contra interesses imperiais americanos e estrangeiros.
O golpe foi iniciado na madrugada do dia 31 para o dia primeiro de abril e durante um dia inteiro houve um total imobilismo das forças legalistas que apoiavam João Goulart, que não queriam iniciar um conflito fratricida dentro do país por um presidente que também não queria se comprometer com a luta armada. O discurso de defender as reformas de base foi somente um discurso e nenhum setor da sociedade estava realmente comprometido com esse plano. O que se viu de fato foi um presidente acovardado, que vendo a movimentação golpista tomar o país, se recusou a reagir e proibiu aqueles que desejam de o fazer. Nos dias seguintes à irônica data de 1º de Abril, Jango irá se refugiar primeiro em sua fazenda no Rio Grande do Sul e posteriormente fugirá para o Uruguai e depois para Argentina, onde irá morrer exilado de forma melancólica em 1976. Enquanto o Golpe era concretizado, o que se viu dentro das esquerdas foi um total imobilismo.
A ala mais radical do PTB ( Partido Trabalhista Brasileiro, principal herdeiro do legado varguista) será liderada por Leonel Brizola numa pífia tentativa de reação mas que rapidamente será derrotada, com seu líder se auto exilando no Uruguai. Por outro lado, o PCB (Partido Comunista Brasileiro), que à época era o maior partido da esquerda radical e contava com centenas de milhares de militantes dentro das Forças Armadas, sindicatos e movimentos sociais, não reage ao golpe de maneira alguma, acreditando na tese difundida pelos militares que a governo militar seria breve e apenas faria uma transição até a próxima eleição. Também havia um temor dos comunistas de que Jango seria um novo Getúlio Vargas e que iria perseguir o Partido se continuasse na presidência. PCB e PTB nutriam uma desconfiança mútua, em grande medida herdada do período do Estado Novo varguista e lhes faltava a percepção, hoje óbvia, de que somente a criação de uma aliança tática entre ambas as forças seria capaz de impedir o avanço golpista.
Logo nos primeiros meses do regime militar se organiza nas casernas brasileiras um verdadeiro expurgo de todos os militares identificados com as esquerdas. Expulsões e prisões sumárias, torturas e assassinato serão os métodos utilizados pelas Forças Armadas para depurar qualquer voz contrária ao novo regime que se estabelecia As primeiras vítimas foram os militares que eram reconhecidamente esquerdistas. Destaque aqui ao relato da tortura e prisão do afamado militante comunista Gregório Bezerra, que foi preso nos primeiros dias e torturado brutalmente num quartel de Recife, sendo arrastado por um jipe pelas ruas da cidade. Junto a isso, centenas de militares irão sofrer destinos parecidos. Existe uma curiosa diferenciação na repressão desses indivíduos, havendo um corte de classe muito claro. De maneira geral, o que se viu foi que os oficiais das Forças Armadas identificados com as esquerdas serão expulsos, enquanto praças na mesma situação, serão torturados, presos ou mortos. Após esse surto inicial de violência e repressão dentro dos quartéis as Armas irão se voltar contra o próprio povo, perseguindo políticos da oposição que resistiam em reconhecer o novo governo e a figuras públicas que criticavam o golpe.
O primeiro presidente militar brasileiro será Humberto de Alencar Castelo Branco, eleito de forma indireta pelo Congresso, é visto como o mais moderado de todos os ditadores que passaram pela cadeira presidencial durante o Regime Militar. Consegue se firmar como nome para governar após grande disputa interna dentro do Alto Comando das Forças Armadas. Logo nesse primeiro momento se vê uma divisão não muito clara entre os “moderados” e os assim chamados “linha-dura”. O conceito do que é ser moderado ou linha-dura irá mudar no correr da Ditadura, mas de maneira geral os moderados defendiam que o Regime deveria ser breve e que deveria somente estabilizar o país até a próxima eleição. Já os linha-dura tinham claramente em seu plano um regime militar de longa duração que desse conta de exterminar qualquer pensamento de esquerda ou progressista que existisse no país. Em grande medida, a ala linha-dura era herdeira de nomes e ideais do antigo partido fascista brasileiro, a Ação Integralista Brasileira (AIB). Em relação a repressão e ao uso da tortura, ambas alas irão apoiar abertamente ou fingir desconhecimento dos fatos.
Castelo Branco estava comprometido com a ala moderada das Forças Armadas, e defendia que o governo deveria ser devolvido aos civis o mais rápido possível. Porém, sua atuação como presidente será fraca e sua morte precoce irá impedir que esse plano se concretizasse. Seu governo foi fraco devido, principalmente, a sua falta de pulso firme para lidar com a indisciplina de seus subordinados e o caótico cenário político pós-golpe. Desde o primeiro dia do Golpe, se assiste dentro dos quartéis uma “anarquia militar” (termo cunhado pelo próprio autor), em que a regra sagrada das F.A., a sacralidade da hierarquia, será jogada pela janela. Oficiais guiados por ambições e dissabores pessoais irão atuar de forma a atender seus próprios interesses carreiristas. Junto desse quadro caótico, irão nascer os órgãos de inteligência do Exército voltados para a repressão interna. O principal órgão será o SNI (Serviço Nacional de Inteligência), fundado e liderado pelo próprio Golbery, ele nasce com objetivo de centralizar o comando das forças de repressão e de organizar de forma útil as informações obtidas a partir de investigações, prisões e torturas. Esse objetivo porém é natimorto, nunca tendo sido concretizado e criando um cenário em que a “Inteligência” das Forças Armadas estava muito longe de conseguir centralizar as informações obtidas pelos inquéritos realizados. Tal confusão organizacional chega ao ponto que as Forças Armadas, Polícias Civis e Militares do Estado de São Paulo não tinham nenhum tipo de compartilhamento das descobertas que eram feitas. Além disso, o SNI esbarrava no jogo de interesses que regia a alocação de recursos e pessoal dentro do Regime. Casos de tortura e corrupção serão sempre abafados para evitar o desagrado de figurões da Ditadura.
O uso da tortura na repressão executada pelo Regime Militar merece um comentário a parte. A prática da tortura nunca foi oficializada, nunca houve uma ordem ou determinação por parte dos comandantes das Forças Armadas de se praticar tortura para obtenção de informações ou confissões de presos políticos. Porém, essa abominável prática irá se enraizar dentro dos porões da Ditadura a partir de uma lógica ambígua que tentarei descrever agora: uma vez que a tortura não existia oficialmente, não há necessidade de proibí-la, visto que, em tese, ela não existia. Porém, quando confrontados por denuncias de tortura divulgadas pelos jornais e que foram realizadas contra os presos políticos que foram libertos, a tortura será sempre negada pelo Regime ou sua culpa será jogada no colo dos seus perpetradores, sendo definidas como casos isolados ou excessos individuais. Nunca haverá investigação ou punição para nenhum desses denunciados. Por outro lado, os chefes dos órgãos de inteligência que perpetuavam essas práticas, serão premiados com medalhas e títulos de honra dentro das Forças Armadas. Não à toa, nomes como o de delegado Fleury e Brilhante Ustra foram das pessoas que mais ganharam medalhas durante o Regime. Esse quadro ambíguo de negação da realidade combinada com a premiação de quem executava essas torturas irá criar um solo fértil para o crescimento da indisciplina dentro dos quartéis brasileiros, visto que os militares envolvidos diretamente na prática da tortura se colocavam acima do restante dos quadros do Exército, desrespeitando as patentes miltitares e assim indo frontalmente contra a “sagrada” hierarquia militar. O autor traz diversos relatos, depoimentos e documentação oficial que corroboram essa tese e uma passagem simbólica disso é referida pelo autor a partir de uma entrevista feita por ele com Brilhante Ustra, que afirmou que “para que os tenentes possam ter suas aulas de Tática em perfeita paz, outras pessoas precisam sujar suas mãos” (adaptado por mim).
O livro caminha para seu fim abordando o começo da luta armada por parte das esquerdas. Uma vez que a ideia de que o regime seria breve cai por terra, o PCB e as alas radicais do PTB irão iniciar a formação de guerrilhas urbanas e rurais. Nem PCB e nem PTB irão aderir oficialmente a isso, ocorrendo na verdade diversas rachas que irão criar uma miríades de organizações paramilitares, que de forma mais ou menos autônoma e independentes, irão pegar em Armas para enfrentar o Regime Militar. Se o sistema de inteligência da Ditadura era falho devido a desorganização, mais falho ainda era a organização da luta armada. A diversidade tática e organizacional dos que pretendiam derrubar o governo militar por si só apontava a falha central das esquerdas: sua desunião. Apesar de algum apoio cubano, soviético e chinês, nenhuma das organizações terá duração longa e a maior parte delas será extinta a partir da chegada de Costa e Silva à presidência.
Seu governo será marcado por iniciar a fase mais dura da repressão da ditadura. Nome forte da ala linha-dura, ele irá conquistar a liderança do país a partir de sua influência dentro da alta cúpula das Forças Armadas e o apoio das indivíduos diretamente envolvidos com a repressão e a tortura. Porém, sua inabilidade em lidar com o cenário político nacional propiciou um endurecimento da repressão, como fica claro na seguinte passagem: “Como observa Brian Crozier, especialista inglês no combate à subversão e discreto visitante do SNI em 1964: ‘Os bons governos previnem o conflito, os maus o estimulam; os governos fortes o desencorajam, e os governos fracos o tornam inevitável’. O governo do marechal Costa e Silva era mau e fraco.”(pg 304) Durante seu governo ocorrerá o assassinato do estudante Edson Luis, fato que deu muita força para a oposião civil, que tomará as ruas em passeatas, greves e movimentações na sociedade. Isso criou o cenário perfeito para a imposição de um novo dispositivo para ampliar a repressão e concretizar o que era desejado pelo ala linha-dura: uma ditadura longa, que não pretendia devolver o poder aos políticos civis e que iria exterminar qualquer pensamento de esquerda que existisse no Brasil. Esse dispositivo infame atende pelo nome de Ato Institucional nº 05 e sua criação encerra o primeiro livro dessa série. O livro acaba com um um clima de inconclusão, visto que é só o primeiro da série que pretende analisar o Regime Militar, mas abre espaço para que a obra que lhe dá sequência explique melhor essa nova fase de repressão inaugurada pelo AI-05.
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Cleiton79 04/03/2024

Livro 1
Este primeiro livro contém diversas fotografias, por isso, para aqueles que leem em formato digital fica um pouco prejudicado neste quesito.

Narra principalmente o clima antes do Golpe Militar ou da Revolução Redentorista, depende do ponto de vista.

O governo do Presidente Castelo Branco, aparentemente teve como objetivo ser transitório, para que ao seu final, fosse restaurado as eleições, mas ainda neste livro, inicia-se as ações por parte da chamada Linha dura , tendo o General Costa e Silva seu principal expoente no período
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Gu Vaz 25/11/2023

Degradação
O primeiro volume de uma série de decisões militaristas baseadas na degradação quase total da constituição que conhecemos como Ditadura. Através de uma narração ágil, proporcionada por Elio Gaspari, e uma cronologia que avança e retrai à medida que preenche cada lacuna de informação de um tempo sombrio e adverso, este livro é a prova de que o homem, quando pode, estica até ultrapassar qualquer traço de humanidade que lhe é esperado sob uma pretensa face. O que vemos aqui é o início envergonhado do horror à espera de dominação.
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Felipi Fraga 28/08/2023

#Livro LIDO 17 de 2023:
Desde que consumo livros em pdf na internet lá pelos anos 2005 que a série sobre ditadura de Élio Gaspari está na minha lista de livros que sei que não vencerei ler antes de morrer, tanto que já se passaram quase 20 anos desde que entraram na minha "linha do tempo de interesse de leituras". Gaspari é jornalista e não historiador, e esta série sua foi financiada por uma bolsa de estudos internacional. Como é modus operandi do mercado editorial brasileiro, livros de jornalistas por serem considerados de "linguagem mais acessível" acabam tendo muito mais investimentos de propaganda para venda, mesmo que o trabalho de pesquisa de fontes primárias sejam feitas pelos acadêmicos, facilitando muito a vida dos jornalistas. Pelos motivos citados, é preciso ler sabendo que há um viés, em muito do que foi selecionado para constar nos livros. Dito isso, é sim uma série que vale muito a leitura para "não-iniciados" neste período histórico, ainda mais por que a versão digital permite consultar muitas fontes citadas através de links. Este primeiro volume não traz novidades para quem já leu sobre o período, porém apresenta uma narrativa que facilita consultas rápidas para aprender ou reforçar o aprendizado sobre o mesmo.
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Marcio440 24/02/2023

Sim! Foi ditadura
Livro excelente de leitura simples e direta.
Mostra o quanto os militares eram, foram e são incapazes de conduzir um Governo democrático de um país.
Castelo Branco, Costa e Silva e sua corja apenas almejavam poder.
Leitura obrigatório antes de defender militares governando, antes de falar que não vivemos um regime ditatorial com o golpe de 1964 e pedir o AI-5.
Um dos capítulos sombrios de nossa história.
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Luã 26/12/2022

Esse primeiro volume sobre a Ditadura Militar superou as minhas expectativas. O autor escreve de uma forma que nos prende e nos leva a querer ler mais e mais. Além disso, a exposição dos fatos históricos é feita com muita fidelidade e coerência literária.
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Lucas 14/10/2022

Vivendo e aprendendo: a ditadura militar brasileira mostra que nunca deve se ter vergonha de quem se é
O jornalista ítalo-brasileiro Elio Gaspari (1944-) lançou em 2002 um projeto audacioso: narrar, através de (inicialmente) quatro volumes, a trajetória da ditadura militar que governou o Brasil por mais de duas décadas, através de estudos e investigações iniciadas em 1984. Pomposo em sua concepção, realista em seu resultado: o primeiro desses volumes, A Ditadura Envergonhada, é preciso, desapaixonado e completo.

O autor, a qual presenciou alguns dos fatos por ele narrados e que atualmente é colunista do jornal Folha de S. Paulo, é tratado com relativo descaso por opositores atuais do regime ditatorial brasileiro: têm-se diante de Gaspari um rótulo imbecil de que ele escreve com neutralidade diante de um tema que segundo os mais radicais não comporta nenhuma vírgula de defesa, nem mesmo isenção. Não que o jornalista faça algum tipo de ovação para os personagens ou fatos importantes daqueles tempos nefastos: ele apenas não "bajula" personagens santificados por certos setores ideológicos que ainda hoje remanescem, sob a bandeira de grupos políticos distintos.

O que Elio Gaspari faz é lançar luz sob aspectos ocultos do regime e aqui ele se apropriou da proximidade e até mesmo da amizade que ele desenvolveu com, especialmente, dois personagens centrais da ditadura: os gaúchos e generais Ernesto Geisel (1907-1996), chamado por Elio de "Sacerdote" e Golbery do Couto e Silva (1911-1987), que recebeu do autor a alcunha de "Feiticeiro". De fato, estes dois são tratados com um olhar mais benevolente em alguns momentos, mas a história universal, não apenas a escrita por Gaspari, mostra a participação efetiva deles no regime. Geisel e Couto e Silva, além de dois dos mentores do golpe (e não revolução, já que o próprio Geisel é enfático em afirmar que o ocorreu em 1964 foi um movimento) foram ministros do primeiro presidente do regime militar, o general cearense Castello Branco (1897-1967) e perderam espaço no governo subsequente, do também general Artur da Costa e Silva (1899-1969). Essa perda de espaço deveu-se essencialmente pelo choque com os ideais mais radicais de Costa e Silva, famoso por ter baixado o assombroso Ato Institucional nº 5, no final de 1968. Os outros livros da coleção de Gaspari, no entanto, ainda vão demonstrar mais fortemente a presença destes dois personagens, já que Geisel, por exemplo, foi presidente da república entre 1974 e 1979 (o mais sensato dos dirigentes nacionais no período ditatorial, na minha visão).

A Ditadura Envergonhada, em suas camadas mais visíveis, não apresenta nada de novo nos grandes eventos da época para quem gosta de debruçar-se sobre a história aqueles anos (este primeiro livro trata da deposição de João Goulart em 1964 até o AI-5, no final de 1968). Os grandes acontecimentos, como a deposição de João Goulart (1919-1976), o dramático desfecho da vida de Castello Branco, as intensas revoltas do eterno ano de 1968, o supracitado AI-5, entre outros eventos famosos, as quais são discutidos por Gaspari, não são necessariamente o âmago da escrita: sua preocupação está nos gabinetes e quartéis, especialmente, onde as decisões eram tomadas. Como João Goulart foi deposto de uma hora para outra, sem tanques ou invasões, como as Forças Armadas foram sutilmente se envolvendo cada vez mais no arcabouço governamental, como as torturas foram se tornando instrumentos institucionalizados de coação e domínio, e, especialmente, como todos estes e outros absurdos foram se desenvolvendo dentro da República, acobertados por uma espessa capa de corrupção, são os focos narrativos mais destacáveis pelas linhas de Elio Gaspari.

Ao oferecer um texto isento de qualquer viés, especialmente os de natureza acusatória, tão justificadamente comuns no contexto atual brasileiro, Elio Gaspari é capaz de ampliar o entendimento tanto daquele indivíduo que abomina o regime de exceção implantado como daquele cidadão crente na necessidade da ditadura, para exterminar qualquer ameaça de comunismo. De uma forma geral, até mesmo o adjetivo empregado pelo autor para nominar esse primeiro volume da sua série reforça este entendimento. Diferentemente de outros países, onde a ditadura chegou "com os dois pés na porta" (o mais ilustrativo caso aqui por perto ocorrendo no Chile em 1973 ou Cuba em 1959), por aqui ela começou com ares de transitoriedade, de ser um regime que iria encerrar um viés populista que impregnava a República desde a eleição de Getúlio Vargas (1882-1954) em 1950 e devolver o governo a civis "mais qualificados". Oficialmente, por exemplo, o congresso nacional funcionou até 1968, assim como a liberdade (restrita) de expressão. Homens como Castello Branco e Ernesto Geisel (este apenas inicialmente, diga-se) eram defensores deste caráter momentâneo do regime. Mas na queda de braço com a chamada Linha Dura, acabaram pisoteados por um grande contingente das Forças Armadas sedento não por ordem, mas sim por interesses próprios.

A máscara de vergonha da ditadura, que queria ser um regime de exceção mas a qual ainda hesitava, caiu definitivamente no ano de 1968, quando no Brasil houve respingos de uma tendência mundial: a rebeldia ora romântica ora destrutiva dos jovens, normalmente universitários, aflorou violentamente, em protestos e atos de vandalismo diante de um mundo que vivia o auge da Guerra Fria e da Guerra do Vietnã. Com a mudança do perfil de opositores do regime (que antes disso eram apenas comunistas, as quais eram e é hoje ainda muito fácil atrelar à imagem de simples banditismo), o regime se viu na obrigação de se instalar definitivamente como uma ditadura. É onde este primeiro volume termina: quando a ditadura perde a vergonha de ser chamada assim, bate no peito (e na mesa) e toma para si a rigidez tão comum aos regimes ditatoriais, com o fim de direitos e garantias fundamentais. O AI-5, baixado em dezembro de 1968, é, neste sentido, um marco: é uma faca que dilacera o país e o joga num violento regime de exceção e corrupção que vai durar por pelo menos dez anos.

O leve pudor democrático que ainda subsistia cai, mas não é apenas o descortinar dos chamados "Anos de Chumbo" que marca esse novo período: as prisões arbitrárias, torturas, inquéritos sorrateiramente maquiados, condenações sem fases processuais completas, perseguições políticas e censuras são a ''cara" desse tempo, mas elas escondem algo tão gravíssimo quanto. Trata-se da corrupção incutida em praticamente todos os setores e órgãos governamentais de todas as esferas. Um dos maiores méritos d'A Ditadura Envergonhada é a desmistificação de que naquela época não haviam negociatas, desvios, roubos, indicações políticas sem critério... Termos como meritocracia ou cidadãos de bem eram despudoradamente deturpados, através de uma enormidade de exemplos que as investigações de Gaspari trouxeram.

Elio Gaspari reúne aqui todas essas informações oriundas de documentos e de depoimentos obtidos por ele mesmo, junto a nomes comuns da ditadura (ele chegou a entrevistar o polêmico general Carlos Alberto Brilhante Ustra (1932-2015), que coordenava o órgão de "segurança interna" do estado de São Paulo), o que lhe confere um peso ainda mais real diante de sua narrativa. Além disso, um olhar cru, jornalístico e nada apaixonado, simultaneamente a um estilo mais descritivo e menos quantitativo, gera neste este primeiro volume um escudo contra vociferações irracionais, que inevitavelmente podem surgir de todos os espectros políticos atuais. O tempo dirá se esta toada se mantém nos volumes seguintes, mas a primeira impressão é a melhor possível.

A Ditadura Envergonhada é o pontapé inicial de um projeto historicamente rico. Mostra os primeiros anos de um regime que nasceu com um propósito de acalmar os ânimos, viu que isso não era possível, se envergonhou, mas soube perder a compostura para atingir objetivos ocultos. Sem que haja o endeusamento de nenhum dos múltiplos lados dessa história, Elio Gaspari muito contribui para uma relevante parcela da história nacional formada por trevas e a qual é tratada com um inexplicável saudosismo de tempos em tempos.
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Paulo Augusto 17/06/2022

Importante obra
A história precisa ser conhecida, entendida e os erros não repetidos. A ditadura, como o autor mostra, foi um período duro, pessoas torturadas e exiladas.
O exército nunca foi unido, golpes foram tentandos ao longo da história, os quadros nunca foram de intelectuais e sim de pessoas gananciosas por poder e dinheiro.
Hoje, observa-se os mesmos comportamentos de parte das forças armadas e o povo iludido.
A cada dia se torna mais necessário ler e não cair em ilusões de internet.
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Rodrigo Secolin 22/04/2022

Um livro indispensável
A ditadura envergonhada, de Elio Gaspari, é o primeiro de uma série de três livros os quais cobre o período da ditadura no Brasil, de 1964 a 1985. Neste livro, Gaspari mostra os fatos que levaram ao início da ditadura no país até a promulgação do Ato Institucional nº 5, com uma imensa riqueza de detalhes que somente um jornalismo investigativo do nível do autor pode revelar.
Acima de uma obra literária, A Ditadura Envergonhada é um documento histórico, indispensável no entendimento da ditadura no país.
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Eduarda.Silva 26/02/2022

1/5
A Ditadura Envergonhada é o primeiro volume de uma série de 5 livros escritos pelo jornalista Elio Gaspari.

O autor nos mostra, principalmente, que o regime militar foi construído aos poucos e, além disso, trouxe informações sobre as relações internacionais da época, diversos elementos culturais e deu ênfase na repressão super violenta desse período que durou 21 anos.

O livro tem uma linguagem simples e de fácil entendimento, recomendo muito!

Essa edição tem várias imagens, informações sobre nomenclaturas militares e uma cronologia muito completa de 1950 - 1967.
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Italo Ruan 13/01/2022

Supreendentemente uma leitura fácil, o autor consegue trazer os fatos que levaram à ditadura nos seus primeiros anos sem cansar, apesar dos diversos generais, capitães, etc. que complicam um pouco pela quantidade. Enfim, uma leitura importantíssima para ajudar a entender um pouco o que aconteceu ali nos primeiros anos da ditadura.
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Giordano.Sereno 11/10/2021

Uma leitura necessária
Essa foi a terceira vez que li esse livro. E até hoje me espanto com a violência, com a restrição de liberdade que o regime impôs. Com o passar do tempo, até aqueles que apoiaram a ditadura passaram a ser perseguidos por ela.
Mas me lembro que quando li pela primeira vez 2005, não havia tanta gente defendendo abertamente a volta disso tudo. Todo mundo deveria ler esse livro para saber o que aconteceu. Deveria ser leitura obrigatória para o ensino médio.
Mas não é uma leitura fácil... São muitas referências, notas de rodapé, citações a documentos extensos. E recomendo a leitura de todos os documentos. Contudo, acabam por deixar a leitura mais arrastada.
comprido 08/12/2021minha estante
leu 3x, achou arrastado, estranho isso




Igor13 04/10/2021

Denso sem ser maçante
Mais que um "livro", mas uma referência de peso no assunto. Uma coletânea impressionante de referências e documentos.

O autor procurou colocar informações de uma forma que não deixasse o volume 'pesado'. É denso, sem ser maçante.

Trabalho impecável. Não demorarei para começar o volume II.

Obs: muitas dessas páginas são de referências, documentos e apêndice. Então não é tão longo assim. Devem sobrar umas 300-350 páginas 'líquidas'.
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Marcianeysa 04/09/2021

Ditadura
Livro interessantíssimo, que mostra os bastidores do movimento que orquestrou o golpe de 1964. São tantos personagens que as vezes me perdi em algumas partes. Ansiosa pelos demais capítulos.
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