Luchenriques 02/10/2014
Não fode, Belfort!
Primeiramente, explico que a ideia de ler a autobiografia de Vitor Belfort era algo que tinha em mente há anos, com o intuito principal de descobrir o que o lutador tinha a dizer sobre o desaparecimento de sua irmã, Priscila, em 2004, um mistério ainda não resolvido, depois de 10 anos do crime. Dissecar a vida de Belfort não era algo que me despertava curiosidade, mas que, obviamente, aconteceu ao terminar o livro. Porém, as histórias da vida, carreira, os bastidores do sequestro de Priscila e a trajetória do lutador são raras. Lições de garra, fé e sucesso é uma obra que revela muito pouco aos curiosos, que são saraivados por um discurso de religioso fanático - contraditório como todos , metáforas débeis e uma artilharia de maniqueísmos e valores simplistas, que, segundo ele, o guiaram durante toda a sua jornada. O atleta ainda fala da importância da família na vida de um homem e cria um modelo de vida supostamente ideal, composto por uma mulher virtuosa, marido e filhos, a sucessão dos genes. Mas, de novo, o esportista cai em contradição, especialmente na forma em que se refere aos seus pais.
Minha intenção inicial só foi alimentada na segunda metade do livro, com menos de uma página de abordagem do assunto, resumida em um parágrafo, no qual Belfort conta qual a linha mais coerente apresentada pela polícia. Ou seja, se a intenção do leitor é descobrir mais sobre o caso, melhor fazer uma busca no Google. Após ler mais de 70% da história, discordando e cansando da visão cega e demasiadamente crente de Vitor, a explicação de como superou o sumiço da irmã foi o ápice da revolta. Em um suposto diálogo com Deus (SIM, VITOR BELFORT CONVERSOU COM DEUS), o Pai Supremo proferiu as seguintes palavras: Descanse. Deixe-me julgar essa situação. Porque, se você tomar alguma atitude, estará atuando em meu lugar. Deixe que eu julgarei. E a reação de Belfort? Essa: Aí eu descansei, fui dormir. AAAH, cara, não fode! Como se dorme e se perdoa alguém que sequestrou, estuprou até a morte e queimou o corpo da tua irmã? Quem entende e aceita com tamanha passividade? Ok, Deus.
Outro ponto incoerente é o discurso da defesa da família. Com uma mulher edificadora, o atleta destaca ter aquilo que mais sonhou e mais falta fez durante a infância: uma estrutura familiar adequada. Belfort critica seus pais e os culpa por sua rebeldia durante a juventude. O pai, ao qual se refere somente pelo sobrenome, é criticado pela pirraça de não ter comprado uma casa própria após a separação com Jovita, mãe de Vitor, pois preferiu pagar aluguel ao invés de adquirir um imóvel, que poderia ser colocado no nome das crianças. Por outro lado, sobram críticas à mãe, que culpava o ex-marido ao invés de ir adiante e batalhar pelos seus sonhos. Após a ascensão como lutador, Jovita questionou o filho: Você ficou de me dar um apartamento e não me deu. A resposta de Vitor, o ícone da valorização da família: Não sou seu marido, mãe. Os pais é que costumam dar apartamentos aos filhos, então vocês é que deveriam me deixar um imóvel. Para quem lê o livro, fica a sensação de que família, para Vitor, é construída a partir do casamento em diante, no qual o casal deve deixar o contato dos pais, a fim de não prejudicar a nova organização familiar, que, de um dia pro outro, tornou-se mais importante do que a anterior, quando ele era apenas filho.
A figura de Joana Prado em sua vida é ressaltada em diversos momentos, pois foi quem lhe deu filhos e a família que sempre quis, mas, por outro lado, fica a dúvida de qual é o conceito de Belfort para definir uma mulher exemplar. Sem juízo de valor à ex-Feiticeira e a qualquer outra profissão, fica essa pontinha de dúvida sobre o que o atleta pensa deste tipo de trabalho, tendo em vista sua religiosidade e os discursos de modelo ideal de esposa. Aliás, uma religiosidade superior à antiga de Joana Prado, que era cardecista antes de namorar Vitor. Com um aparente orgulho, Belfort conta o momento em que a companheira chora após ir a uma missa, no qual se converte ao catolicismo, enquanto o marido sutilmente se gaba deste feito.
Vitor defende a fé, o estudo e o inconformismo necessário para lutar pelos seus objetivos, sempre em busca de uma evolução e de mudanças que julga serem positivas. Mas, seria ele capaz de rever seus conceitos e valores? Em alguns exemplos, o lutador mostra que já o fez, porém, quando o toca na religião, a pré-disposição parece sumir, pelo simples argumento de não gostar ou não querer. Certo dia, o esportista recebeu um livro que defendia que Jesus casou e teve filhos com uma mulher. O atleta não simpatizou com a história que lhe fazia mal e abriu mão do exemplar para não se aborrecer. Ou teria sido para não ter a sua suposta verdade guiadora colocada em cheque? O discurso de mudanças não reforça a prática do lutador, que declina de assuntos que não deseja discutir.
Embora a obra seja maçante e cansativa, servindo muito mais como um livro de autoajuda, algumas passagens pouquíssimas, que fique bem claro são capazes de divertir o leitor. Uma delas é referente ao fato de Vitor Belfort e Joana Prado não terem praticado atos sexuais durante o noivado, época em que moraram juntos e durou aproximados seis meses (sim, meio ano sem sexo com um sex symbol da época morando dentro da própria casa). A mudança aos 17 anos para os Estados Unidos, com a ida do técnico Carlson Gracie, da reconhecida família de lutadores, é outra a se destacar, mesmo que pouca atenção seja dada a ela.
Vitor Belfort fala muito e diz pouco, propaga senso comum e mostra ter uma visão de família, fé e valores mais próximos do século passado do que dos tempos atuais. Com sua autobiografia, o lutador pode despertar um sentimento de admiração em quem aceita e não questiona sua obra e as desconexões nela apresentadas, ganhando admiradores. Por outro lado, alguém mais cético fica com inúmeros ruídos nas falas de Vitor e as incongruências encontradas, o que pode lhe tirar apreciadores ou colocá-lo no mesmo patamar de uma pessoa qualquer, com uma mente retrógrada e um discurso vazio. Já sabem o meu lado.