A Ditadura Escancarada

A Ditadura Escancarada Elio Gaspari




Resenhas - A Ditadura Escancarada


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Lucas 14/02/2023

Sai a vergonha, entram os coturnos: o despudorado processo de sepultamento da democracia brasileira
Dentro da coleção de livros da ditadura do jornalista Elio Gaspari (1944-), o segundo volume dela (A Ditadura Escancarada, de 2002) trata do auge do regime ditatorial (1964-1985). É quando o "movimento revolucionário" rasga o seu caráter de transitoriedade para uma renovada democracia e veste-se com a capa da ditadura, que cobre o Brasil com imposições, arbitrariedades, corrupção e perseguições políticas.

O famigerado AI-5, baixado no final de 1968, é a "tesoura", que faz esse rasgo profundo no Estado brasileiro e a qual corresponde ao último grande acontecimento d'A Ditadura Envergonhada, livro que abriu a série de Gaspari. Após uma intensa queda de braço entre militares moderados e a chamada linha dura, do grupo encabeçado pelo general e então presidente Artur da Costa e Silva (1899-1969), os últimos prevalecem. A doença do chefe da nação inicia novas efervescências e uma junta militar assume temporariamente o poder até que o general Emílio Garrastazu Médici (1905-1985) é conduzido à presidência em 30 de outubro de 1969. É sob o seu governo que o Brasil mergulha fundo na ditadura militar: os "anos de chumbo" andaram em paralelo ao "milagre econômico". Por determinado período, o Brasil apresentou crescimento econômico notável (entre 1969 e 1973 o PIB brasileiro cresceu, em média 11,41% ao ano), enquanto o pau comia solto nos porões de unidades de segurança montadas pelo governo no combate a opositores.

A Ditadura Escancarada é estruturado sobre essa dicotomia, com os "anos de chumbo" prevalecendo (algo que o autor deixa claro na Introdução). Nesse sentido, logo de cara o leitor é surpreendido com uma análise incrível da tortura como instrumento de coação, e seus vários paradoxos: individuais, políticos e/ou psicológicos, a prática da tortura era um processo sistematicamente devastador em cada um destes segmentos. A institucionalização da tortura como uma política de Estado, provocada pelo AI-5 e regulamentos posteriores, era, entretanto, um instrumento que funcionava para os militares. Na maioria dos casos, a truculência e a coação empregadas faziam com que o preso delatasse e todo o seu núcleo era "investigado". Em nome da famigerada garantia da lei, da ordem e dos costumes, matava-se gente (normalmente jovens estudantes).

O processo de abrutamento das perseguições governamentais, contudo, passou muito do ponto, como a história comprova. Obviamente que qualquer prática contrária a quem pensa diferente é universalmente condenável, mas Elio Gaspari deixa claro que esta marcha de recrudescimento do regime, iniciada em meados de 1969 e a qual durou até 1974 com a Guerrilha do Araguaia, foi contaminada por uma forte "policialização" do Exército. Os níveis superiores de todo este aparato de opressão (estruturados através dos temidos DOI's – Destacamentos de Operações de Informações, órgãos de buscas, apreensões e "interrogatórios") eram formados por membros das Forças Armadas. Mas as extremidades operacionais eram compostas por policiais civis ou militares, as quais, já inseridos dentro de uma sistemática de atuação prévia, operavam redes de corrupção abrangentes, que iam desde proteções "particulares" até esquemas de contravenção. Alimentado por interesses próprios, estes elementos cometiam brutais excessos, o que não desabona de forma alguma os comandantes destas "facções" que se tornaram os destacamentos (prova disso era a defesa sistemática e inacreditável oferecida ao delegado Sergio Fleury (1933-1979), comandante do Esquadrão da Morte de São Paulo). O nível de banditismo é tão alto que algumas passagens da obra são quase um roteiro adaptado do filme Tropa de Elite (especialmente do primeiro, de 2007).

Estes absurdos também tinham uma capa protetora muito resistente vinda de Brasília. O Governo Federal alegava terminantemente que não sabia de torturas no país e que era preciso combater com vigor o terrorismo da esquerda, marcado por ações urbanas e sequestros (especialmente de embaixadores estrangeiros). Segundo o governo, este clima de desordem era incentivado por organismos internacionais, as quais não queriam ver o desenvolvimento do país que vivia o milagre econômico. Ou seja, o discurso era relativamente similar ao predominante no Brasil até pouco tempo atrás: a pátria nacional precisa ser protegida de aspectos que lhe deterioram; a economia do Brasil está/estava ameaçando potências estrangeiras, as quais patrocinavam ações de desordem por aqui e assim por diante. Mas o que as investigações de Gaspari demonstram é que Brasília sabia destes excessos e recompensava-os nos bastidores, por meio de promoções hierárquicas, ganhos e favores pessoais com obscuras conexões e muito investimento monetário nos órgãos de segurança.

Toda esta "baderna" não existia apenas no lado dos torturadores. O autor também faz contundentes revelações sobre o funcionamento, especialmente em seus momentos derradeiros, dos agrupamentos da luta armada, como a ALN (Ação Libertadora Nacional) e o MR8 (Movimento Revolucionário 8 de outubro). É utópico pensar que estes grupos, caso assumissem o poder, iriam impor uma democracia totalmente livre e multioperante. Também não havia pudor algum em riscar do mapa quadros que não estavam mais totalmente sincronizados com os ideais defendidos. Do mesmo modo, as ações terroristas nem sempre deixavam de respingar em inocentes... Ou seja, trocando em miúdos, a semente do radicalismo era forte em ambos os lados e nenhum excesso de nenhum escopo pode ser defendido, justificado ou esquecido.

Apesar destes incontáveis desmandos, execuções e outras barbaridades, o início dos anos 70 viveu o ápice do poder ditatorial. A explicação para isso pode vir de cima: com a chegada ao poder de Emílio Médici, a governabilidade militar, frágil com as saídas de Castello Branco e Costa e Silva, solidificou-se. Médici foi o primeiro presidente da ditadura a cumprir seu mandato e depois passou o lugar para Ernesto Geisel (1907-1996) em 1974. Discreto e ensaboado, Médici é visto por muitas “"viúvas" da ditadura como o melhor presidente daqueles anos sombrios. Gaspari ilustra isso através de descrições pontuais, as quais dão a entender que o presidente dominava como poucos a arte da contradição. Ao estar ciente de que cidadãos brasileiros eram sumariamente torturados e/ou assassinados, ele não condenava fortemente tais atos, mas nunca os incentivou (ao menos oficial e desmesuradamente). Se não desejava a presidência, utilizou a máquina estatal para tornar concreto o poder ditatorial, o que acabou sendo determinante para os anos que vieram; se não cassou nenhum político, fortaleceu a mordaça da imprensa; se inaugurou importantes obras estruturais no Brasil, fechou os olhos para uma corrupção endêmica, que contaminou quartéis e governo.

As páginas d'A Ditadura Escancarada trazem muito espaço ao papel da Igreja Católica em meio a tudo isso. Dado o seu caráter universal e impossível de controlar pelos órgãos estatais, a Igreja sempre foi uma espectadora importante das intransigências do período. Quando apoiou o golpe de 1964 a qual acabou instalando o regime ditatorial, a Igreja foi uma das muitas entidades, indivíduos comuns e políticos traídos pelo discurso de combate à ameaça comunista propagado pelos militares. Ao endurecer a caça aos opositores, os perseguidos acabaram infiltrando-se dentro do caráter intocável da Igreja como proteção. Paulatinamente, o sangue derramado e as feridas provocadas pela ditadura foram percebidas e denunciadas por importantes autoridades eclesiásticas, como dom Hélder Câmara (1909-1999) e dom Paulo Evaristo Arns (1921-2016), então bispos da Igreja Católica. O trabalho dessas duas figuras (especialmente de d. Hélder) ocupa muito espaço dentro do livro, em especial no que tange a questões políticas, perseguições e divergências internas da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil).

Cronologicamente, este segundo volume termina com a Guerrilha do Araguaia, mais conhecido foco de resistência armada que existiu entre 1967 e 1974 entre os atuais estados de Tocantins e Pará. Situado nos limites da floresta Amazônica, o local abrigou cerca de uma centena de "revolucionários", liderados por Mauricio Grabois (1912-1973) e João Amazonas (1912-2002), ambos do PC do B. Por lá, habitavam quadros comunistas, as quais envolviam-se com atividades sociais (como escolas aos moradores do lugar) em paralelo a atividades terroristas, como aulas de tiro. Acobertadas pelo governo e ancoradas pela censura da mídia, o regime militar enviou à área diversas expedições entre 1972 e 1973 para extermínio da guerrilha. Os eventos só foram conhecidos e divulgados após a redemocratização; ainda hoje tramitam na justiça ações que questionam o Estado brasileiro acerca da localização de restos mortais dos revoltosos (os últimos corpos foram incinerados por tropas do Exército). Com exceção deste aspecto histórico, de mistério e até mesmo de mito em torno dos acontecimentos do Araguaia, a guerrilha sintetizou bem aquele período: uma esquerda armada que superestimava seu alcance e poderio bélico, sonhando com uma grande insurreição rural, combatendo contra uma autoridade estatal que superestimava as forças concorrentes e, alimentada pelo medo deste tipo de levante, massacrou seus inimigos. Apesar das brutalidades também ocorridas contra os militares, o desfecho não poderia ser outro senão o esmagamento do foco.

Seja nas estruturas militares, órgãos de segurança, táticas de extermínio de opositores, consolidação do poder ditatorial, nas várias biografias de personagens importantes do período, num radicalismo multifacetado, no papel da Igreja Católica no regime militar daqueles tempos, na Guerrilha do Araguaia ou em inúmeros outros pontos aos quais o leitor entrará em contato durante a leitura, A Ditadura Escancarada é uma plural aula de história, um imenso documento cujas linhas ecoam até e principalmente os dias de hoje. Nelas, Elio Gaspari renova significados, relembra compreensões que precisam ser revisitadas atualmente, onde discursos radicais e censura estão tão banalizados. Ler esta obra é estar em contato com um Brasil de apenas cinco décadas atrás; um país onde não se podia ler, escrever ou falar de muitas coisas... mas era e é um Brasil defendido por muitos que hoje clamam por liberdade. A obra, portanto, é, além dos predicados já citados, uma arma poderosa diante destas tantas hipocrisias que parecem atravessar gerações, não possuem apenas um viés e compõem parte importante do pano de fundo do Brasil atual.
darcilenemarques 14/02/2023minha estante
Ótima resenha!


Carolina 14/02/2023minha estante
Interessante, o livro parece não defender nenhum lado, mas explicar realmente o que aconteceu




Antonio Luiz 25/03/2010

Balanço de horrores
Durante os 21 anos da ditadura militar, pouco havia de politicamente mais vital do que saber o que os militares faziam nas masmorras do regime e entre as salas dos ministérios – informação não só difícil de conseguir, como também perigosa para quem não fazia parte dos círculos do poder.

Apesar da censura, sempre havia boatos à boca pequena que, ao menos nas grandes cidades, não permitiam a ninguém ignorar totalmente o que se passava – a menos que fechasse deliberadamente olhos e ouvidos.

Mas saber se de fato o general fulano brigou com o marechal beltrano ou se sicrano já havia sido torturado e morto era um privilégio reservado a poucos civis, que para ganhar status entre seus pares – e, às vezes, recompensas bem mais materiais – só precisavam demonstrar sua intimidade com o poder.

Nestas duas décadas de redemocratização, testemunhos de quem exerceu ou padeceu a ditadura começaram a aparecer à luz do dia e serem colocadas em letra de forma, fragmento por fragmento. Faltava ousar passar da coleta e classificação à reconstituição do conjunto dos acontecimentos numa história que faça sentido.

A obra de Elio Gaspari, "As Ilusões Armadas" foi um salto de qualidade nesse processo. Ao trabalho dos predecessores, reuniu trezentas horas de entrevistas com alguns dos personagens centrais da ditadura general, incluindo o general Ernesto Geisel e seu estrategista, o general Golbery do Couto e Silva.

Dispôs também dos 5 mil documentos que formavam o arquivo pessoal deste último e do diário do capitão Heitor Ferreira, secretário de Geisel. Ao longo de 18 anos de pesquisa – esta obra começou a ser preparada em 1984 – organizou 28.176 fichas no seu computador. O resultado é um amplo e detalhado painel de incidentes políticos e militares da queda de João Goulart ao final do governo Geisel.

Foram lançados os dois primeiros volumes. O primeiro, "A Ditadura Envergonhada" introduz o projeto com a história do fracasso do golpe de Sylvio Frota contra Geisel e o período do golpe de 1964 ao AI-5. O segundo, "A Ditadura Escancarada", prossegue até a posse de Geisel. Faltam três outros volumes que chegarão até a entrega da faixa presidencial ao general Figueiredo, cuja administração, se depender do autor, ficará no esquecimento que pediu.

Quem já viveu ou estudou esses tempos, terá uma oportunidade de recapitulá-los com mais amplitude, além de descobrir detalhes importantes que ainda não tinham sido contados e podem dar uma nova dimensão à gravidade da desordem nos quartéis e das crises miitares do período. Os jovens que ainda não os enfrentaram têm uma boa referência para começar.

Gaspari avisa que seu objetivo não é contar a história da ditadura, mas de como Geisel e Golbery a teriam montado e desmantelado. Mas o leitor não deve levar esse aviso mais a sério que ele mesmo.

O que os dois primeiros volumes oferecem não é exatamente o que se anuncia na declaração de intenções. O autor destaca tanto quanto possível a participação de Geisel e Golbery nos primeiros anos depois do 31 de março, mas ambos estiveram, ao longo desse período, longe do centro do palco – e mesmo nos bastidores sua importância foi relativa.

Participaram das articulações militares e ideológicas que precederam o golpe e que imediatamente o seguiram, mas dizer que o “fizeram” é exagero. Golbery, em particular, foi também o responsável pela criação do SNI, mas durante sua gestão não conseguiu dar ao órgão o caráter e a importância que tinha planejado.

Pela lógica, pouco mais haveria a contar até se chegar a 1973. Apenas como se armou o cenário em que a trama principal – cujo clímax já foi antecipado pela introdução – vai se desenrolar. É óbvio que esses dois grossos volumes e sua abundância de informação oferecem mais do que isso.

O primeiro começa com uma narrativa do golpe militar pouco satisfatória, por não dar importância suficiente às articulações prévias que envolveram militares, civis e a Casa Branca, nem à versão dos vencidos. Ao tomar como mote a frase de efeito do general Cordeiro de Farias – “o Exército dormiu janguista e acordou revolucionário” – deixa na sombra a articulação do golpe. De resto, o próprio general Geisel disse que “o que houve em 1964 não foi uma revolução”, com a mesma franqueza que fez dele o único general a defender a tortura em público.

Continua com uma narrativa mais extensa e satisfatória dos conflitos dentro das Forças Armadas nos primeiros anos do regime e do nascimento da guerrilha. Aqui insiste, de forma pouco convincente, em explicar a atuação de Fidel Castro e Leonel Brizola principalmente a ambições pessoais, além de atribuir uma responsabilidade talvez excessiva ao segundo.

No segundo tomo, trata-se do endurecimento e sistematização da repressão e da tortura, seguidos pela decisão de fazer “desaparecer” todos os militantes capturados e pela degeneração tanto da guerrilha quanto do aparelho repressivo.

Gaspari apropria-se do carinhoso apelido de “tigrada”, dado à turma dos porões por Delfim Netto, que pressionou banqueiros e empresários a contribuir para a Operação Bandeirantes (Oban).

Assim se dey vida ao monstro que, como nos filmes fica menos terrificante e mais grotesco quando deixa de ser apenas insinuado em memórias fragmentárias e aparece de corpo inteiro à luz da variedade de fontes a que o autor recorre, incluindo os generais, a Igreja Católica e o testemunho de torturadores e torturados.

Essa história horrível ainda não havia sido contada de uma forma tão panorâmica e capaz de abrir o caminho a considerações mais complexas que a simples ojeriza moral.

O problema é que Gaspari promete tanto os “Anos de Chumbo” quanto o “Milagre Brasileiro”, mas os primeiros são bem melhor contados que o segundo. Ao se ver obrigado a esboçar uma reflexão que vá além dos aspectos mais chocantes da ditadura, Gaspari deixa a desejar – e cai no mesmo equívoco de histórias do nazismo que o reduzem ao Holocausto ou tentam explicá-lo pelas ambições pessoais destes e daqueles líderes.

Descreve esses anos como uma série de articulações e desarticulações de militares e oposicionistas, condicionada apenas pela busca de poder e prestígio dentro de suas respectivas estruturas burocráticas. Quando as realidades internacional e econômica chegam a ser mencionadas, é só como plano de fundo.

O golpe quis se justificar principalmente como uma reação a uma política econômica de esquerda e seus sucessos e fracassos nesse campo traçaram seu destino. Mesmo assim, as questões econômicas ocupam uns poucos parágrafos nas quase mil páginas já publicadas.

Octávio Gouveia de Bulhões e Roberto Campos são ignorados. Nada se diz do Plano de Ação Econômica do Governo (PAEG) e das divisões que provocou nas bases civis e militares de Castello Branco. Já Delfim Netto é amplamente citado – mas não por sua atuação econômica e sim por seu papel no endurecimento e na consolidação política da ditadura.

As crises militares que agitaram o país durante as gestões dos generais Castello Branco e Costa e Silva surge do vazio, como mera expressão da ambição e do personalismo deste ou daquele comandante da “linha dura”, ou simplesmente da “anarquia militar”. Hoje, qualquer bom colégio oferece análises mais ricas em suas aulas de história.

O próprio texto de Gaspari dá pistas de algo mais por trás dessas insubordinações. Menciona a importância do Ato Complementar nº 40 – a centralização dos recursos fiscais nas mãos do governo federal – como “instrumento de funcionalidade do AI-5 nas relações econômicas do Estado brasileiro, transmutando aquilo que poderia ser uma ditadura difusa num processo de reorganização do poder”.

Mas não chega a conclusão de que abrir o caminho para essa reorganização – igualmente desejada por muitos militares e muitos civis poderosos – era, muito mais que a repressão, o objetivo do endurecimento.

Por que o general Affonso de Albuquerque, depois de ter apoiado o AI-5 e a concentação do poder econômico nas mãos do ministro Delfim, despediu-se do governo denunciando o clima político que “propicia e coonesta uma verdadeira escalada dos grupos econômicos poderosos, em detrimento mesmo das empresas nacionais”? Por que, exatamente, disse a ACM que o “o Delfim e o Andreazza devem ser enforcados e pendurados de cabeça para baixo, como ladrões”?

E o que queria a tal “linha dura”? Simplesmente poder e repressão? Assim fica difícil entender o processo de escolha do sucessor de Costa e Silva que, como diz Gaspari, tinha de ser o “mínimo múltiplo comum” entre “duros” e “moderados”, pôde convergir no general Emílio Garrastazu Médici. O homem que levou a sanguinolência da ditadura ao extremo, sem que os “moderados” esboçassem a menor restrição.

Não parece que tenham sido relevantes as divergências sobre como tratar a oposição, pacífica ou armada. Os conflitos que precisavam ser assentados giravam sobre os rumos da economia. Envolviam, entre outras coisas, a oposição entre setores mais favoráveis a interesses transnacionais e outros mais “nacionalistas” – mais fracos e por isso mesmo mais exaltados, mas suficientemente posicionados para exigir algumas satisfações.

É preciso levar Delfim mais a sério quando diz que “o discurso do Marcito [Moreira Alves] não teve importância nenhuma. O que se preparava era uma ditadura mesmo. Tudo era feito para levar àquilo.”

É de supor que essas divisões militares representassem – não necessariamente com fidelidade – divisões análogas nos meios empresariais e financeiros. Apesar de banqueiros e empresários aparecerem a todo o momento como testemunhas de decisões sigilosas e financiadores diretos da repressão, a história é contada como se não tivessem qualquer participação ativa nesses conflitos e decisões, o que deixa no escuro não só a essência do regime militar, como também uma parte decisiva da história que Gaspari se propõe contar.

Pelo contrário, Gaspari enfatiza os conflitos e a desordem entre os militares para insisitir, como anuncia na introdução, que negar racionalidade e ideologia à ditadura militar e afirmar que Geisel e Golbery desmontaram a ditadura militar simplesmente porque “era uma grande bagunça”.

Há aí pelo menos dois mal-entendidos. O primeiro é julgar que ideologia – no caso a “Doutrina de Segurança Nacional” – significa uma teoria racional completa, coerente, conseqüente e estável, aplicada em cada decisão concreta. A ideologia pode sonhar consigo mesma dessa maneira, mas nada mais é que uma falsa consciência da realidade.

O segundo é tratar a ordem e a racionalidade como absolutos e supor que a corrupção, os absurdos, os fiascos, e as insubordinações as desmentem, quando na realidade podem ser seus instrumentos e até suas condições de existência – em maior ou menor medida, dependendo da natureza e objetivos dessa ordem.

Também no III Reich, havia corrupção desenfreada, conflitos entre subordinados, superposição irracional de atribuições entre órgãos e funcionários que se desautorizavam mutuamente e fracassos de planejamento. Mas seria extravagante pensar que esse regime não tinha “ordem” nem objetivos.

Os conflitos internos tinham uma função: levava os subordinados vigiarem-se mutuamente em vez de conspirar contra a cúpula e a tornavam necessária como árbitra em última instância, assegurando a “ordem” enquanto poder absoluto do Führer – ao preço, é claro, de comprometer a eficiência da máquina produtiva e militar quando se tornou mais necessária.

O discurso oficial desse regime também nunca foi muito coerente. Às vezes enfatizava seu pretenso caráter popular e socialista, outras seu anticomunismo. Ora dizia defender valores cristãos, ora queria ver uma nova religião nazista esvaziar as igrejas tradicionais.

Alguns líderes defendiam a supremacia do sangue nórdico, outros condenavam as tentativas de dividir o povo alemão em tipos raciais. Setores que queriam atrair os povos do leste para sua causa eram desautorizados por outros que os queriam expulsar para a Sibéria.

Mesmo assim, seria estranho dizer que o nazismo, em nome do qual milhões mataram e morreram, não era uma poderosa ideologia. Guardadas as proporções, observações análogas podem ser feitas sobre a ditadura militar brasileira e seu “pensamento”.

Supervalorizar os personagens e subestimar a importância dos processos que os envolvem é outro ponto fraco deste trabalho. Ainda na introdução, Gaspari atribui o recuo do regime em geral e o fim da censura em particular ao “complexo mecanismo de uma decisão imperial do presidente Ernesto Geisel”.

A vontade de jornalistas, proprietários de jornais e “qualquer tipo de pressão direta sobre o governo” podem ter contribuído pouco para o desfecho. Mas terá sido por coincidência que a ditadura recuou depois de ter fracassado financeiramente e caído na dependência do mercado financeiro global?

Será por acaso que todas as ditaduras do Cone Sul – incluindo as que iniciaram seu ciclo quando Geisel já governava ou se preparava para assumir – sofreram crises econômicas e fizeram sua abertura econômica e a transição para um regime civil praticamente ao mesmo tempo? De tão imperial, a decisão de Geisel foi acatada não só por Figueiredo, como também por Pinochet e pelas juntas da Argentina e do Uruguai?

Não se trata de atribuir o desenlace apenas às ordens de um imperador colocado mais acima, mas de entender como os militares latino-americanos do final do século XX, se não tomaram palácios de governo só porque assim quiseram, também não saíram por um ato de pura vontade.

Quando poderes econômicos nacionais e transnacionais confluíram para apoiar a ditadura, jornalistas – e mesmo proprietários de grandes grupos de comunicação – pouco puderam fazer. Sua posição mudou quando as mesmas forças perderam a confiança nos velhos métodos e sentiram a necessidade de outros porta-vozes e executores.

Nesse momento, foram os militares que pouca escolha tiveram além de organizar silenciosamente sua retirada, ou cair atirando. Foi o que se decidiu na crítica tarde de 12 de outubro de 1977. A vitória de Geisel – além de evitar muitas mortes inúteis – foi importante por permitir a saída relativamente honrosa. Tivesse sido Frota o vitorioso, o fim poderia ter sido tão desastroso e humilhante quanto foi o da Argentina do general Leopoldo Galtieri, bem sucedido em depor seu superior “moderado”, Roberto Viola.

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Cristiano 26/11/2014

Elio Gaspari, apesar de ser mais crítico com o governo do que contra os subversivos, não poupa críticas a ambos os extremistas de período, chamando os esquerdistas radicais de terroristas e os torturadores de "tigrada", que atuavam na ilegalidade a favor do governo.
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Tauan 15/10/2015

Nos meandros e bastidores do regime totalitário e violento que governou o Brasil no fim do século passado, Gapari nos mostra como o medo do comunismo levou os militares aos poder nos braços do povo.
Ele enfoca os dois principais arquitetos do regime, Golbery do Couto e Silva e Ernesto Geisel. Juntos eles ajudaram a tramar, dar sustentação e depois e derrubar a ditadura. Dois personagens paradoxais e não maniqueístas, como foi nossa ditadura.
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Volnei 11/01/2016

A ditadura escancarada
Escancarada, a ditadura formou-se usando a tortura como ferramenta de controle e extermínio de opositores . O presente volume trata do período que vai de 1969, logo depois da edição do AI5, ao extermínio da guerrilha contra o partido comunista do Brasil nas matas do rio Araguaia em 1974, os anos mais duros da ditadura e ao mesmo tempo de alegria pela conquista da copa de 1970 e a chegada dos primeiros aparelhos de tv a cores no Brasil. Todo período referente a ditadura merece ser estudado sempre com muita atenção em todas as áreas

site: https://twitter.com/volneicampos http://toninhofotografopedagogo.blogspot.com.br/
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João Luiz 03/09/2018

O segundo volume da série é focado no período de 1968, com a implantação do AI5 até meados de 1974. Período em que as torturas se tornaram mais duras e rotineiras, em contrapartida acontece o milagre econômico registrando níveis históricos de crescimento. Também mostra a visão da igreja sobre o regime .
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Edmar.Candeia 24/12/2018

Repensando.....
Li há muito tempo. Hoje organizando meus livros me deu vontade de reler! Por sinal, havia lido toda a série.
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gigi 31/05/2020

Apesar de constituir uma coletânea, esse foi o único volume que li, por isso me abstenho de avaliações mais profundas.

É uma narrativa ampla indo de pequenos a grandes fatos, dentro do seu enfoque jornalístico aos militares e em como se desevolveu o governo Médici, na dualidade dos Anos de Chumbo para aqueles que sentiram empaticamente, ou não, a dor dos porões e o "Milagre Brasileiro" da superfície. Narrando ainda a tortura utilizada como mecanismo repressor e validado pelo regime descaradamente. Fala também da dubiedade da posição da Igreja Católica frente aos acontecidos e da não interferência entre as hierarquias.
É importante incluir e ressaltar que o autor se utiliza de inúmeras fontes documentais o que engrandece a sua narrativa.
Por fim, ressalto a importância do estudo desse momento sujo de nossa história para que NÃO seja esquecido, muito menos repetido. Ditadura nunca mais!
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Jéssica Silvestre 20/06/2020

Esquemas
Trata de forma detalhada os esquemas que sustentaram o regime.
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JoAo.Eduardo 11/07/2020

O segundo livro da coleção Ditadura de Gaspari faz uma análise muito interessante e densa sobre o impacto das esquerdas no Regime Ditatorial militar e a perseguição contra essas. O último capítulo, que trata da Guerrilha do Araguaia, é fascinante.
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RALPH 05/02/2021

A parte mais sangrenta da ditadura
É impossível ler sem se indignar e o pior é saber que a tortura no Brasil continua, nunca parou, a truculencia de nossas policias são reflexos do periodo de 68 a 74. Ademais, Elii Gaspari nos brinda com uma excelente narrativa do governo Medici simplesmente deslumbrante o volume II dessa quintologia sobre a ditadura militar.
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Jonas incrível 23/02/2021

Interessante
Esclarece algumas dúvidas sobre essa época de tanta controvérsia. É valida a leitura.
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Wagner 29/03/2021

2 livro da série _ pesado...
O segundo livro da série inaugurada com A Ditadura envergonhada tem o apropriado título de a ditadura escancarada. Poderia ser também a ditadura aprofundada. Tem foco no governo Medice, de 69 a 74. O mais discreto dos generais presidentes. Relata o período mais sombrio da ditadura, também do milagre econômico, copa de 70, mostrando com riqueza de detalhes as torturas e prisões que acarretaram o esfacelamento das organizações clandestinas. Fala sobre a era dos
sequestros de autoridades que visavam a troca por presos políticos, a posição da igreja e a visão do mundo sobre o que ocorria na América latina. Confesso que no final, a leitura estava um pouco difícil, nao pela narrariva, mas devido ao peso do tema.
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