spoiler visualizarPimenta 24/11/2012
Ferréz foi almoçar
Talvez eu não esteja equivocado ao afirmar que quem gosta de ler narrativas, quando compra um livro, espera ler uma história bem contada, apenas uma história bem contada. Falo do leitor comum, aquele que lê sem distinguir lazer de cultura, entretenimento de arte.
Uma história bem contada não é nada fácil de ser construída, entretanto. Existem, naturalmente, esquemas que se repetem e bons autores se utilizam disso, mas não apenas disso. A presença de um protagonista interessante, outros personagens de diversas índoles, alguns enredos menores em torno da trama principal, muita ação, muitos diálogos, ao menos uma pitadinha de romantismo, enfim, são elementos que ajudam a criar uma narrativa sedutora, mas nem assim garantem o sucesso de um autor.
Acontece o seguinte, para encurtar o papo, eu fugi de uma leitura comum e sabia que iria me deparar com uma pedreira diante de meus olhos. Resolvi ler um autor que escreve há bastante tempo e sempre esteve envolvido em movimentos sociais de cunho altamente politizado. Trata-se do paulistano Ferréz, 32, romancista, contista, roteirista, compositor, cantor, poeta, ligado à corrente denominada literatura marginal. Ele é autor do romance Capão Pecado, obra que o firmou como um dos melhores autores de sua geração, segundo o aval de alguns críticos.
Conhecia Ferréz apenas das leituras que eu fazia da revista Caros Amigos, na qual assinou uma coluna por dez anos. Bem, vou ser sincero, fui cheio de expectativas ao seu mais recente trabalho: “Deus foi almoçar”. De início, estranhei o que li numa das orelhas do livro: “romance psicológico”. Por que a editora “tacharia” um livro com essa expressão? Seria uma estratégia de marketing, ou uma senha para entrar numa leitura diferente? Ou... um pedido de desculpas antecipado?! As perguntas se devem ao fato de que, imagino assim, de antemão os responsáveis pelo livro já deveriam saber que quem vai ler Ferréz não é um leitor, definitivamente, normal. As expectativas de quem vai ler um romance de Ferréz são bem diferentes das de quem vai ler um de Agatha Christie, por exemplo. Ah, independente de qualquer coisa, eu adoro a Rainha do Crime, como suspeito que o mesmo aconteça com a maioria dos leitores, comuns, que a leem.
O contexto inicial se resume a um arquivista, casado e com uma filha pequena. A mulher desse protagonista se separa dele e cada vez mais a filhinha vai se afastando dele também. Ou seja, como em toda narrativa óbvia, é criado um momento de tensão, e esse é o problema que no decorrer do romance exige um desfecho. Até aí, tudo certo. Parece, a qualquer tipo de leitor, uma história bem simples e que poderá adquirir a aura de literatura - a arte da palavra -, dependendo de como as coisas serão manipuladas a partir de então.
Não é o caso de se revelar muitos detalhes nem de como se dá o desfecho, mas algumas coisinhas merecem nota. Calixto, o protagonista, não se conforma com o fim do núcleo familiar. Fica muito deprimido e depressivo, a ponto de misturar realidade com ficção e, por vezes, confiar mais na ficção. Isso lhe traz problemas. Alguns no início. Muitos no desenrolar da história.
Homem de espírito crítico, consciente de todas as artimanhas pelas quais é obrigado a passar, na situação de assalariado, trabalhando numa função que não lhe agrada, chega à conclusão de que a sua vida é péssima. Ele está cansado de participar da farsa social e fingir felicidade, ainda mais quando perdeu o respaldo da família, motivação maior para continuar atuando no papel de fantoche do sistema.
Nesse meio, sentindo-se impossibilitado de continuar sua vidinha piegas, surge uma imagem misteriosa, um portal, algo que lhe fora compartilhado por seu melhor amigo, a existência de uma abertura para outro mundo. Bem, como disse, entrei com meus olhos numa pedreira e só consegui ver mineraloides sem definição. Acho que o livro poderia render mais do que pirita esotérica.
Calixto entrou numa noia aterrorizante e só encontra momentos de alívio quando rememora alguns fatos felizes de seu passado. Isolando-se das poucas pessoas que tentam se aproximar, vivendo num mundo só seu, em que os fatos parecem se repetir à exaustão, entregando-se a pensamentos, atos e palavras disparatados, Calixto encontra-se à borda de um abismo psíquico. Sua única salvação... o portal.
Não sei o que se entende por psicológico nesse romance. Não sei se apenas um caso típico de esquizofrenia explica tudo. Algumas peças não se encaixam. E as lacunas deixadas não podem ser preenchidas pela esperteza nem pela imaginação fertilíssima de um leitor ideal. O jogo, portanto, não se cumpre. E só a literatura perde.
(Nota: Consta nos créditos iniciais que a revisão ficou a cargo de Flávia Yacubian. Então, uma dúvida: Quem é o responsável pela série de erros que está no livro?)
(Texto publicado originalmente na Revista Semana Online #51)