Raphael 11/03/2019Um encontro entre o príncipe Nekhliúdov e Jean Valjean...Sabe aquele livro que fica parado na sua estante ao longo de anos e um belo dia você abre, começa a ler e não consegue largar o bendito? Foi esse o caso. Nem me lembro há quanto tempo comprei essa linda edição da Cosac Naify. Por diversas vezes olhei para ela, tive vontade de iniciar a leitura, mas nunca aconteceu. Sempre outras leituras iam cortando a fila. Dessa vez, no entanto, calhou de eu terminar uma leitura de um livro incrível, olhar para a estante à procura do que ler e de repente ver Tolstói da prateleira, acenando, como quem dizia: "Dessa vez você não tem desculpa..."
Meu único contato com o autor confinava na leitura de uma novela - A Morte de Ivan Ilích - que cheguei a resenhar aqui mesmo no skoob, cinco anos atrás. Há tempos queria esse segundo contato com o autor e a leitura de Ressurreição veio em um momento certo, o que, creio eu, me oportunizou absorver mais da obra.
Foi uma leitura que me envolveu bastante e, em certo sentido, me remeteu ao meu livro preferido - Os Miseráveis, de Victor Hugo. Dois livros da segunda metade do século XIX, nascidos de países diferentes, de contextos políticos, sociais, religiosos, culturais com uma diferença bastante marcada, mas sensíveis a uma mesma questão: a desumanização provocada pelo cárcere.
O Nekhliúdov de Tolstói, um aristocrata que, no ímpeto de corrigir o mal que fizera a Máslova, desce do seu mundo de privilégios e trava contato com uma realidade aterradora: o horror das prisões russas, reduto de toda sorte de injustiças, capaz de desumanizar, de embrutecer.
O Jean Valjean de Victor Hugo, um miserável que, tendo sido surpreendido roubando um pão para alimentar os filhos de sua irmã, foi condenado a cinco anos de trabalhos forçados - os quais se converteram, em razão das seguidas tentativas de fuga, em dezenove anos. Hugo nos diz que Jean Valjean, sujeito àquelas condições, tornou-se efetivamente mau e condenou a tudo e a todos ao seu ódio. Vale citar uma passagem do livro, que tem tudo a ver com as inquietações que, a muitas milhas da França de Hugo, agitavam o espírito do príncipe Nekhliúdov:
"Ó marcha implacável das sociedades humanas! Perda de homens e almas ao meio do caminho! Oceano onde some tudo o que a lei deixa cair! Sinistra inexistência de auxílios! Ó morte moral! O mar é a inexorável noite social onde as sentenças lançam seus condenados. O mar é a miséria incomensurável. A alma, à mercê da voragem, pode transformar-se em cadáver. Quem a ressuscitará?" (Os Miseráveis, capítulo VIII, livro segundo, Parte 1)
Nesse mar de miséria incomensurável, nessas águas que engolem tudo o que a lei deixa cair, caíram Jean Valjean, Máslova e tantos dos infelizes com quem trava contato o príncipe russo que protagoniza a narrativa de Tolstói.
Resguardadas as devidas especificidades, é muito curioso notar como um liberal como o Victor Hugo dos anos 1860 e um anarquista cristão como o Tolstói do final dos anos 1890 se aproximam na consciência de que o cárcere tem o condão de desumanizar e de embrutecer. Não pude deixar de imaginar um encontro entre Jean Valjean e o príncipe Nekhliúdov.
Tanto Os MIseráveis como Ressurreição, grandes obras, em sua complexidade, atravessam outras questões, das quais me desobrigo de tratar nessa resenha, elegendo tão somente um aspecto. Em Tolstói, é marcante a crítica à frivolidade e à teatralização da vida aristocrática, assentada em uma torre de privilégios que esmaga os mais pobres. A hipocrisia da classe dominante, da religião oficial do Estado, a desigualdade social em suas diversas facetas dão as caras a todo momento, na acidez da crítica de um espírito sensível às injustiças a que era submetido o seu povo.
Sendo sincero, por tudo que o livro mostra ao longo da leitura, eu esperava um pouco mais do final, onde, a meu ver, a obra perde um pouco de vigor. Mas isso não faz com que Ressurreição deixe de ser um grande e belíssimo livro e uma obra muitíssimo humana.