Antonio Luiz 25/03/2010
A conexão Mussolini
Neste terceiro tomo de sua epopéia, Gaspari apresenta as biografias do general Ernesto Geisel e do coronel Golbery do Couto e Silva e retoma a narrativa do regime militar desde a indicação pelo general Emílio Garrastazu Médici de Geisel como seu sucessor (já em janeiro de 1971, a se acreditar no general João Figueiredo) até o fiasco acachapante do partido da ditadura, a Arena (hoje PP) nas eleições de novembro de 1974, que dá o título a este volume, "A Ditadura Derrotada".
Continuam as revelações oriundas do acesso privilegiado do autor aos bastidores da ditadura, principalmente às centenas gravações e milhares de anotações feitas por Heitor de Aquino Ferreira secretário de Geisel. E, desta vez, Gaspari fez mais para situá-las em seu contexto.
Dos 28 capítulos, dois são essencialmente econômicos: “A Grande Encrenca”, expõe o primeiro choque do petróleo e suas conseqüências imediatas. “O Pé no Acelerador” explica a opção do governo Geisel – que mais tarde se mostraria desastrosa – por endividar o país para tentar preservar o crescimento acelerado.
Sem alarde, Gaspari fez uma interessante emenda em sua visão da história. Nos dois primeiros volumes, explicou os fatos quase exclusivamente a partir de decisões e indecisões idiossincráticas de atores privilegiados, quase todos militares. Agora reconhece causas mais abrangentes do que a vontade pessoal dos protagonistas da obra, o Sacerdote (o ex-ditador Ernesto Geisel) e o Feiticeiro (seu chefe da Casa Civil, Golbery do Couto e Silva).
Cita o cientista político espanhol Juan Linz, que pouco sabia de fuxicos político-militares e jamais pisara no Brasil, mas já em 1971 avisava os navegantes de que, sem o respaldo do carisma de um caudilho nem da articulação ativa de uma elite conservadora, a ditadura brasileira não tinha outra legitimidade além da proporcionada por seu sucesso econômico. Só se sustentaria enquanto a economia fosse bem.
“O fim do ‘Brasil Grande’ seria o fim do regime”, conclui Gaspari. Uma análise convencional, mas mais razoável do que a apresentada no início de A Ditadura Envergonhada, na qual adiantou ao leitor o motivo demasiado simples pelo qual Geisel e Golbery teriam desmontado a ditadura: “era uma grande bagunça”.
Empresários e economistas, conseqüentemente, ficam menos escondidos nas sombras – a ponto de certas passagens deixarem a impressão de que Médici (no qual Gaspari gruda, como em Jango e Costa e Silva, o dístico “Ai! Que preguiça!”) foi mero testa-de-ferro do ministro da Fazenda, Delfim Netto, recebido pelo presidente norte-americano Richard Nixon como virtual chefe de Estado.
Quanto à sucessão, porém, o Gordo não prevaleceu sobre o general Orlando, ministro do Exército e irmão de Ernesto. Segundo Gaspari, Delfim queria Leitão de Abreu como presidente (ou a prorrogação de Médici) e a si próprio para governador de São Paulo em 1974, cargo no qual se prepararia para chegar à Presidência em 1979.
Médici – disse Figueiredo a Geisel – cogitava de Abreu em “uma situação de perfeita calma”, mas para um país “com problemas” preferia o Ernesto (que como presidente da Petrobrás era meio empresário, meio general da reserva) e para um país “conflagrado” o general Adalberto Pereira dos Santos (que acabou por ser o vice de Geisel).
Se a hora da verdade da disputa de Geisel com Frota deu o tom à introdução da obra de Gaspari, o confronto decisivo deste volume é com Delfim. O grupo pró-Geisel mentiu ao general Médici, garantindo-lhe que Golbery (que o ditador desprezava por dirigir uma transnacional, a Dow, depois de ter chefiado o SNI) não tinha mais relações com Geisel e desarticulou um incipiente movimento continuísta, do qual participavam Laudo Natel, Mário Andreazza e os empreiteiros que controlavam o jornal Correio da Manhã.
A “Grande Encrenca” de 1973 azedou ainda mais as relações de Geisel com Delfim. Na ânsia de proteger imagem e ambições políticas, o ministro da Fazenda – que vários protagonistas do livro, incluindo Mário Andreazza, Figueiredo e Geisel, também acusavam, sem provas, de corrupção – impôs controles artificiais de preços à Petrobrás de Geisel e manipulou índices de preços para fechar em 15,5% a inflação de 1973 (que quatro anos depois a própria FGV corrigiu, retroativamente, para 20,5%).
No primeiro ano de Geisel como presidente, a inflação represada explodiu como bomba-relógio: saltou para mais de 35% e contribuiu decisivamente para a derrota eleitoral do governo que arruinou o programa da abertura “lenta, gradual e segura” tal como maquinado por Golbery. Mas Geisel e Golbery tiveram sua desforra. A conselho do senador Petrônio Portella, a escolha dos governadores foi transferida da convenção da Arena para o diretório estadual e Delfim foi vetado.
Sem conseguir de Médici o apoio esperado, o ex-czar da economia meteu a viola no saco e foi passear no exterior. Em junho de 1974, ao regressar a Brasília, foi apanhado na pista do aeroporto, levado à granja de Golbery e “convencido” a aceitar a embaixada em Paris. O tratamento que a América Latina costuma reservar a caudilhos que aceitam pacificamente sua deposição.
Uma das prioridades de Geisel foi evitar o surgimento de outro Gordo: reforçou o poder do ministro do Planejamento, João Paulo dos Reis Velloso, ao transferir os recursos do Pis-Pasep do Banco do Brasil e da CEF para o atual BNDES e diminuiu o do ministro da Fazenda, Mário Henrique Simonsen – que Eugênio Gudin quase inviabilizou com seus elogios.
Apesar de ter trabalhado com Castelo Branco, Geisel, que nascera em um Brasil que importava até manteiga e orgulhava-se de ter colaborado para sua industrialização, abominava o neoliberalismo cosmopolita de Gudin e Roberto Campos. Exemplificou para Gaspari: “se o Victor Civita dissesse ao Roberto Campos que pretendia publicar uma revista como a Veja, ele tentaria dissuadi-lo, dizendo-lhe que era muito mais fácil traduzir a revista Time”.
Não há como duvidar da sinceridade desse exemplo de nacionalismo, pois na primeira metade do mandato de Geisel, essa revista semanal continuou a ser uma pedra no seu coturno. Dispensada da censura prévia no início do seu governo, publicou uma charge de Millôr que aludia à tortura e foi submetida pelo “ministro da Justiça” Armando Falcão a um controle ainda mais feroz – até meados de 1976, quando a editora forçou o diretor Mino Carta, que a havia fundado, a se demitir.
Nesse contexto, Geisel também mostrou vestígios (no mínimo) de anti-semitismo: disse a Heitor Ferreira e Moraes Rego (seu chefe de gabinete) que Gudin era “um judeu sem-vergonha”. Não fica claro se o Alemão foi tão filonazista quanto seu admirado comandante e mentor, general Álcio Souto, que levava os cadetes para ver filmes de propaganda nazista patrocinados pela embaixada alemã e lhe ordenou tomar o palácio de Getúlio em 1945. Geisel disse a Gaspari ter sido admirador de Mussolini – mas também que ficou sentido por ter sido impedido de participar da FEB, na qual outros descendentes de alemães foram aceitos.
A propósito: na biografia de Geisel, Gaspari conta que o Estado Novo hesitou entre o Eixo e os Aliados por dois anos. Os generais Dutra, ministro da Guerra e Goes Monteiro, chefe do Estado-Maior, pendiam para a Alemanha. O segundo estava para embarcar (com o capitão Geisel na comitiva) para apreciar in loco “a obra gigantesca, de reconstrução nacional” de Hitler, quando este invadiu a Polônia.
Já na biografia de Golbery o autor compra a versão do futuro estrategista da ditadura, segundo a qual trabalhou, desde 1939, para um Conselho de Segurança Nacional que já então planejava entrar na guerra ao lado dos Aliados. Essa aparente contradição fica por esclarecer.
Não é a única ocasião em que Gaspari adere à visão dos protagonistas. Volta a insistir na tese de 1964 como “contragolpe”, que justifica as ilegalidades e as violências reais perpetradas pelos generais (ao menos nos primeiros tempos da ditadura) com as arbitrariedades supostas que Jango e Brizola estariam dispostos a praticar.
O mesmo autor ironiza a ação do general Teixeira Lott, em novembro de 1955, como “o mais latino-americano dos golpes brasileiros”. Refresquemos a memória: depois que Juscelino Kubitschek venceu as eleições, o coronel Bizarria Mamede – aplaudido por Carlos Luz, presidente da Câmara – discursou contra a entrega da presidência a JK.
Lott, ministro da Guerra, exigiu a punição do coronel ao presidente Café Filho (vice de Getúlio, que havia se suicidado). Mas o presidente se internou em um hospital e entregou o governo a Carlos Luz, que recusou-se a punir Mamede.
Três dias depois, Carlos Lacerda anunciou o golpe: "é preciso que fique claro, muito claro, que o presidente da Câmara não assumiu o governo da República para preparar a posse dos srs. Juscelino Kubitschek e João Goulart. Esses homens não podem tomar posse, não devem tomar posse e não tomarão posse."
Lott mobilizou as tropas do Rio, depôs Luz, empossou o presidente do Senado, Nereu Ramos e garantiu a posse de Kubitschek. Convenhamos: se a maioria dos golpes latino-americanos tivesse servido para garantir o resultado de uma eleição livre sem derramar sangue, este continente seria bem mais feliz.
Os golpes militares que haviam se apossado da maior parte da América Latina no início do governo Geisel – três dos quais, os da Bolívia, Uruguai e Chile, tiveram apoio logístico e militar da ditadura brasileira, conforme Gaspari documenta –foram infinitamente mais despóticos e sangrentos.
O próprio Sacerdote não ficava atrás. Gaspari já o havia mostrado como adepto da tortura (“necessária, para obter confissões”) no primeiro volume. E do Esquadrão da Morte (“conseqüência dessa esculhambação toda”) no segundo.
Neste terceiro, continua a revelá-lo como expoente da linha dura, capaz de armar um barraco no Supremo Tribunal Militar, em 1967, com o general legalista Pery Bevilacqua (depois cassado), por divergir sobre o habeas corpus de um livreiro.
E como defensor do extermínio sistemático de presos políticos. “Esse troço de matar é uma barbaridade, mas eu acho que tem que ser...” disse ao general Dale Coutinho, ao convidá-lo para o Ministério do Exército. “Tem que nessa hora agir com muita inteligência, para não ficar vestígio nessa coisa”, comentou sobre o assunto a seu chefe de segurança, tenente-coronel Arnoldi Pedrozo.
Era o início do primeiro ano do governo Geisel. Nesse 1974, o extermínio de presos chegou ao auge com o início da caça às lideranças do PCB, contrárias à guerrilha e deixadas, até então, em relativa paz. Com a Revolução dos Cravos e a rápida rearticulação do supostamente desbaratado comunismo português, a paranóia dos porões do regime saltou para um novo patamar.
E a derrota eleitoral de novembro a ampliou ainda mais. Dias depois, foi presa e espancada no DOI carioca a economista Maria da Conceição Tavares, respeitada professora da FGV e assistente de Gouvêa de Bulhões, ministro da Fazenda do general Castello Branco. A filha de Conceição pôde avisar o ministro da Indústria e Comércio, Severo Gomes, que acionou Golbery. Mas o I Exército mentiu: disse-lhe que não havia nenhuma presa com esse nome.
Como havia mais testemunhas, Golbery foi a Geisel que, desta vez, irritou-se com a evidência de articulação contra a sua autoridade, à qual se somava um documento em que o Gabinete Militar se mostrava insatisfeito com o reconhecimento pelo presidente dos resultados eleitorais. O volume termina com o ditador a descobrir o quanto a autonomia dos órgãos de segurança já ameaçava seus planos e seu poder.