Retipatia 05/11/2018
Sabe o que o ponto de fuga?
Na Inglaterra do século XVII, as irmãs May e Hanna vivem com seu pai Daniel Powers uma vida regrada, mas confortável, e com o apoio da criada Joan. O Sr. Powers, é médico e, disso tira o sustento da sua família. Com o avançar da idade, se tornou impossível que ele exercesse sua profissão com toda a excelência, ainda mais em se tratando das cirurgias que precisava realizar. Assim, como desde criança ele ensinou sua filha caçula a arte da medicina, em segredo, era a jovem quem realizava os procedimentos cirúrgicos nos pacientes. A conexão de pai e filha era, no que a própria Hanna descreve, como se ela fosse o filho que ele não chegara a ter, já que sua esposa faleceu ao lhe dar à luz.
May, por outro lado, não estava interessada na arte da cura como a irmã, mas sim em aproveitar os prazeres que os homens poderiam lhe dar, o que acaba conferindo a ela uma má reputação na pequena cidade em que vivem e lhe acaba por trazer um casamento arranjado do outro lado do mundo, na América, com o filho de um primo de seu pai, Gabriel Washbrook.
Preocupada especialmente com o futuro de sua irmã, May aceita o casamento e embarca na longa viagem de navio para a América do Norte. Hanna fica desolada enquanto observa o navio levar sua irmã para o além-mar, até se perder de vista, no que é chamado como Ponto de Fuga, quando, ao encarar o horizonte, não se é possível mais avistar o barco que segue.
O destino das irmãs fora traçado. Em comunicações demoradas através de cartas, Hannah fica sabendo que a irmã chegou bem ao Novo Mundo e, tempos depois, que espera uma criança. Na Inglaterra, seu pai, que já estava com a saúde fragilizada, acaba por falecer e, não podendo permanecer sozinha, ela parte em uma longa jornada até a América, para juntar-se à May.
É então que os problemas surgem para Hannah. Ela encontra Gabriel sozinho na propriedade Washbrook, não há nenhum dos empregados, e ele afirma que seu pai, assim como a filha recém-nascida e a esposa, faleceram.
Hannah se vê presa nesse desenrolar, sem ter como partir imediatamente da propriedade de Gabriel e rodeada de pensamentos acerca da irmã. Com o tempo, os sentimentos de Hannah começam a mudar e um amor nasce entre ela e Gabriel, o que faz com que sua partida seja deixada de lado. Em meio à essa convivência próxima, assim como com os sinais que ela vê espalhados pela propriedade e, em especial pelo contato e notícias que chegam através dos vizinhos abastados, os Banham, é que Hannah começa a questionar a morte de sua irmã até conseguir descobrir a verdade, que definirá o seu destino e de todos ao seu redor.
Devo confessar que a leitura começou pouco instigante, até, no máximo, um quarto do livro, eu lia páginas e páginas e parecia que não tinha avançado na leitura. Mas, como eu disse, isso foi apenas o princípio da leitura. E, com mais algumas páginas, essa sensação foi logo superada (e provavelmente não se trata de uma problemática da narrativa, mas da total falta de hábito que ando em ler romances puramente romances, por assim dizer).
A narrativa do livro foca mais no ponto de vista de Hannah, especialmente depois que May parte para o Novo Mundo. É quase como se May fosse silenciada, até, já para o fim derradeiro da trama, ressurgir na narrativa de fatos que ocorreram após sua chegada a América e ajudar a desvendar os mistérios da história. E, mesmo havendo vislumbres de Gabriel a partir de seu surgimento na história, é inegável que a narração tem tendências à mostrar mais o ponto de vista de Hannah e demonstrar os sentimentos desta. O que traz um certo contraste e desbalanço para a narrativa que, até então, mesclava a narrativa com os afazeres de ambas as irmãs. Não chega a ser nada confuso ou que atrapalhe o entendimento da história, mas é, sem dúvidas, elemento utilizado como recurso para manter o mistério que envolve a morte de May. Ainda que esta seja a razão, senti falta de May durante o percurso da história, quase como se tivesse sido começado a ser apresentada e, depois, essa apresentação fora cessada.
Esse livro me causou muitos sentimentos distintos. Em vários aspectos, é uma verdadeira obra-prima. As descrições do modo de vida, dos costumes da época, são impecáveis. Desde do ato de cozinhar, à caça, ao plantio, aos hábitos dentro de uma casa, à medicina e crenças da época. Como o próprio livro nos conta, a autora pesquisou por 10 anos sobre os costumes da época para escrever o livro. E, devo acrescer, nunca vi um romance tão bem descrito nesse aspecto. São detalhes que enriqueceram a obra de um modo incrível. Até mesmo algumas receitas que são trazidas no livro trazem a realidade da época. É realmente um patamar que muito dos romances de época costumam deixar a desejar.
Além disso, eu não posso deixar de destacar que o protagonismo feminino na obra é excelente. Os pontos questionados pela autora são alguns que fazemos até hoje, como o papel da mulher na sociedade e frente à família, sobre sua sexualidade e liberdade de profissão. Claro que não se pode comparar o tempo em que se passa a história com os dias atuais, mas, são questionamentos realizados até hoje, ainda que com maior grau de liberdade e várias conquistas pelo meio do caminho. Pelo lado de May, temos a figura de uma mulher que deseja experimentar sua sexualidade e, por isso é mau vista e colocada sob repreensões contínuas por causa disso. Ela anseia por uma liberdade, não apenas sexual, que estava longe de lhe ser permitida à época, pelo fato de ser mulher. Com Hannah, temos um outro viés, por ter aprendido o ofício da medicina com seu pai e, tendo se apaixonado por seu exercício, ela se vê pensando que seria bem melhor ser um homem, para que pudesse trabalhar ao lado de seu pai sem questionamentos e, de fato, poder exercer o ofício (tem alguns outros pontos também, mas estes não vou detalhar pois seriam spoiler total... rs).
Com o desenrolar da história, as forças de cada uma das duas irmãs se mostra, cada uma buscando, à sua maneira, a liberdade conforme a necessidade lhe permitia. E, um dos aspectos que eu saúdo a autora é exatamente este, além do intrincado da história e do próprio destino, há esse vislumbre do que era ser mulher à época e dos preços que as mesmas sofriam. Se a dificuldade estava presente às vezes por condições sociais, essa era sempre engrandecida pelo fato de ser mulher (qualquer semelhança ao mundo de hoje não é mera coincidência... rs). Além disso, tem que se destacar todo o amor entre irmãs que é mostrado na história, capaz de se fazer valer sobre outros aspectos da história e, de certa forma, definidor do destino das personagens.
Um dos pontos que a história faz refletir e, nisso, é o ponto em que provavelmente fará o leitor amar ou odiar a resolução da história de Hannah, é sobre o resultado de nossas ações. Cada ato que praticamos, independente de sua motivação, tem resultados. Às vezes tão extensos que sequer somos capazes de vê-los a pequeno ou médio prazo. Só sabemos seu alcance quando já é difícil ou impossível contornar as consequências.
Tirando o fato que achei que a força de Hannah acabou por ser destacada de um modo um tanto quanto resumido lá no fim (porque sim, essas são irmãs de garra, não há que se negar), é impossível não notar a tendência de que a autora trilhou um caminho com a história que, ainda que possa não agradar a todos, tem sua própria beleza mas, indiscutivelmente, o condão de ser tradicional. Não tradicional no sentido de ser padrão, mas no sentido de ser o que melhor seria aceito, dentro dos padrões. Porque, o fim, sem dúvidas, especialmente no que toca à vida de Hannah, não foi pensando apenas nela. Renegou-se um em prol de outro, por assim dizer. Não necessariamente melhor ou mais importante.Não poderia deixar de destacar a beleza da sutileza em que o nome do livro se entrelaça com a história das irmãs Powers. Leia e saberá! rsrsrs No fim, agora que já falei demais, é importante destacar que sim, eu recomendo a leitura, especialmente aos que gostam de um romance de época em que nem tudo são flores e a história não se resume à uma mera discussão de amor não correspondido ou da ideia de amor correspondido em que um não sabe da correspondência do outro... rs
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