spoiler visualizarNadine 26/03/2020
TEXTÃO QUE EU ESCREVI PARA LIBERAR DO MEU PEITO TUDO QUE EU PENSO DO LIVRO
Essa resenha de fato tem SPOILERS leia se quiser.
Toda a história do livro gira em torno da dúvida de Grace ser ou não uma assassina/má pessoa/coautora no assassinato de Nancy e do senhor Kinnear. Não há uma resposta conclusiva no livro, e a autora joga muito bem com os pontos de vista para não deixar nada na cara. Por exemplo, quando, contando para o doutor Jordan, chega a hora da Grace falar do dia dos assassinatos de fato, o ponto de vista muda para o do doutor, sendo que a narrativa do passado da Grace, até então, foi feito na própria voz dela. Ao meu ver isso foi feito justamente para não comprometer a Grace, depois quando o ponto de vista volta pra Grace de novo os assassinatos já tinham ocorrido e ela não tinha risco de mentir sobre ter matado ou não a Nancy e o patrão delas.
Agora vamos aos motivos que me fazem pensar que a Grace é sim culpada:
- primeiro: não tem como ninguém, além dela mesma, comprovar o que de fato ocorreu no dia dos assassinatos, o resto das pessoas que estavam lá morreram. Ou seja, ela é o único narrador capaz de contar a história e não dá pra confiar nela já que, seja por fingimento/possessão ou caráter questionável, não tem nada nem ninguém que a impeça de ter mentido. A própria autora no posfácio diz que a Grace, a verdadeira inclusive, deu três versões diferentes do que aconteceu. Há quem diga que ela, depois de vinte anos, não teria motivo nenhum para mentir, o que de fato é incorreto pooois: primeiro ela mentiu pra escapar da forca, segundo porque sabia de gente que estava peticionando o perdão dela. A conversa do doutor Jordan com o advogado foi a mais esclarecedora: o doutor questiona o motivo que ela teria para mentir e o advogado fala coisa do tipo "para entreter o sultão" (comparando a história dela com 1001 noites) para impedir que o machado caísse sobre ela e etc. E faz muito sentido, a Grace inclusive tem mais motivos pra mentir do que para falar a verdade.
- segundo: o ponto de vista do doutor também não é nada confiável, primeiro porque ele já começa o livro estabelecendo que ele não está numa situação muito estável em sua vida. A própria ideia que ele faz da Grace vai se alterando, mas ela já não era confiável desde o começo, onde ele só a via como uma garota bonita, controlada e calada, para depois, por conta da solidão dele, da pressão da mãe de casa, ele começa a pensar nela sexualmente até o ponto em que ele quase tem um colapso nervoso e larga tudo para fugir da situação. O fim que ele leva no livro, onde ele se fere na cabeça e perde a memória, foi só uma trágica ironia já que chegou a um ponto em que ele acreditou que a Grace realmente tinha amnésia e etc. O caso dele com a senhoria só prova que o ponto de vista dele é ainda menos confiável do que o da Grace já que o personagem, desde o começo, não estava muito bem seja física ou psicologicamente falando. O ponto de vista do doutor mais me pareceu uma forma de a autora ter pra onde correr caso ficasse difícil demais encobrir algo sobre a Grace que poderia provar alguma coisa, ou para confirmar a visão que o livro todo ficou jogando na nossa cara da Grace: que ela era bonita, trabalhadora e muito mais inteligente do que seria comum numa criada. O que nos leva ao terceiro motivo:
- terceiro: a Grace diz que tem coisas que ela nunca contou para ninguém, o próprio doutor fala que ela sabia, SABIA que estava escondendo coisas dele e de todo mundo, o que diz muito sobre ela. Todos os outros personagens gostavam de pensar que ela era gentil, calma e inofensiva, e os que pensavam o contrário (como o médico seboso do manicômio ou o McDermoth) são personagens que naturalmente vão causar raiva e desconfiança por serem eles repulsivos. Porém, não tem prova nenhuma de que a Grace, de fato, é inofensiva como todo mundo pensa que ela era (e nem de que ela não era). Durante os acontecimentos ela é jovem, uma menina ainda, e isso é o que todo mundo fala, mas ela já sabia muito bem como o mundo funcionava (por conta dos pais, da família e etc.) e ela sabia muito bem de onde vinham os bebês e o que os homens querem das mulheres. Depois que ela foi para a casa do senhor Kinnear, eu SUPONHO que ela viu o quão próxima estava de acabar que nem a amiga dela, grávida de um senhor rico, abandonada, difamada e sozinha e por isso resolveu agir com os recursos que tinha. Ela diz que o senhor Kinnear era um cavalheiro, sendo que ele evidentemente se aproveitava do fato de ser rico para explorar sexualmente a Nancy e sim, eu disse explorar, porque se ele realmente se importava com a Nancy ele teria casado com ela, muito improvável que ele não soubesse como ela era discriminada no vilarejo. Os próprios amigos dele faziam piada com isso e ele estava se cagando. (mais um motivo para não confiar na narrativa da Grace, ela tenta retratar ele como um cavalheiro sendo que ele, obviamente, era só mais um crápula que se aproveitava do fato de ser homem e rico). Quando Grace percebeu que a Nancy estava grávida talvez ela tenha visto o quão próxima a realidade escrota daquela vida estava alcançando-a (de novo) e o quão fácil ela poderia ser a próxima mulher que teve a vida arruinada pelas circunstâncias. Ela já tinha visto o que acontecia com garotas bonitas trabalhando para homens ricos DUAS vezes, havia um idiota junto dela disposto a matar tanto o patrão quanto a "puta" dele, eles moravam num local isolado, bem por que não?
- quarto: no final das contas, considerando tudo, a resposta para "Grace ou não ter matado/ajudado/incentivado a matar brutalmente duas pessoas" depende somente no fato de ela ser ou não capaz de fazer isso. A autora em si não deixa isso claro, a Grace não se traí e o ponto de vista do doutor, assim como dos outros personagens, não é confiável. Quem acredita que Grace é inocente, acredita somente no que eles vêem, o doutor até chama atenção para o fato de que ela só conta o que quer contar e só mostra o que quer mostrar, mas, ironicamente, ninguém sequer, na história, leva isso em consideração: ela é bonita, ela é trabalhadora, isso por si só devem ser motivos para isentar uma pessoa de assassinato. A grande questão é que a Grace não é o cordeirinho indefeso que todo mundo na história gosta de pensar que ela é, como eu já disse: ela sabia muito bem o que estava acontecendo a volta dela, ela sabia muito bem quando calar a boca, quando brigar e quando escutar as coisas, ela sabia muito bem quando podia ou não podia falar mal de alguém e, mais importante, ela sabia muito bem o que os outros esperavam dela. Na cena da fuga, ela criticava as ações do James toda hora, sabendo muito bem que ele estava sendo desleixado e que seriam pegos por conta disso, ela sabia muito bem o que fazer para chamar menos atenção, o que diz, mesmo que sutilmente, que ela pensava na situação muito além do papel de vítima. A desculpa preguiçosa que ela deu de "que não queria se vingar do James" quando explicou que não fugiu dele porque não queria que ele morresse pela voz dela, só mostra que ela não era, no mínimo, estúpida, durante a história toda ela mostra que gosta de coisas bonitas e confortáveis para vestir, ela inclusive observa bastante que não teria como a Nancy se vestir de tal maneira com o salário de governanta, se ela fugisse do James e tentasse se livrar, e, na melhor das hipóteses, a polícia acreditasse que ela era vítima, ela perderia acesso as coisas bonitas que ela adquiriu com a morte da Nancy e ela já considerava tanto aquelas coisas como DELA que até o vestido que ela usava antes da morte da Nancy e o resto ela queimou, ela até se ressentiu disso quando os jornalistas apontaram na cara dela dizendo que "os mortos não precisam dessas coisas". A primeira preocupação dela quando recebe o perdão é "no que ela vai vestir", o que só reforça o ponto de que a Grace se preocupava bastante com bens materiais (não que isso seja motivo que justifique ela ser uma assassina, se eu fosse uma criada no séc.19 eu também me preocuparia em ter alguma coisa pra vestir). Além de tudo, dá pra vez que a Grace não é simplesmente um observador passivo e vítima das circunstâncias, no final do livro nós vemos que ela sabe sim como manipular um homem (convencendo aos poucos o marido dela de ir se livrando da barba), o que meio que não elimina a possibilidade de ela ter manipulado o James.
Por último, eu não acredito na amnésia, primeiramente porque ela tinha uma memória muito boa, muuuuito mesmo, principalmente quando se tratava de coisas. Poderiam dizer que a amnésia vinha por conta do trauma e tudo mais, mas ela passou pelo trauma da morte da mãe sem nenhum desmaio e pela vida horrível com o pai sem nenhum episódio de amnésia. Não tinha ninguém para confirmar a mentira ou veracidade da história da Mary e é meio conveniente demais que a Grace só desmaiou na hora em que poderia ou não ter ajudado o James a matar a Nancy.
Bueno, tem tanta coisa que eu gostaria de falar, mas chega né. O livro é maravilhoso e eu adorei cada minuto. Em minha humilde opinião, apesar do textão, no final das contas não importa se a Grace ajudou ou não a matar os dois imbecis, mas acho que o que importa é como, sutilmente, a narrativa nos faz pensar em como a vida das mulheres, daquelas que não eram protegidas por uma "boa família" e tinham que trabalhar, eram descartáveis e como a narrativa feminina é subestimada ao ponto de, por bem ou por mal, ainda haver gente acreditando que a Grace é inocente e sincera por ela ser "bonita e trabalhadora", me faz pensar se alguém se daria ao trabalho de defender a Grace caso ela fosse feia, preguiçosa ou, Deus livre, uma prostitua.