Ladyce 06/09/2015
Memórias e ficção
Recentemente tive uma discussão acalorada com meu irmão sobre a lembrança de um evento da nossa infância. Cada um de nós, únicos protagonistas da aventura, se lembrava de coisas diferentes e em diferente ordem. Mais revelador ainda: cada qual só tinha a memória daquilo mais significativo para si mesmo. Guardamos para o futuro, para o nosso banco de memórias, para o perfil do nosso passado, só o momento de nosso próprio ato de bravura. Os dois haviam sido corajosos, individualmente, mas uma única lembrança, pessoal, individual, em que fomos heróis, se manteve. Não chegando a um acordo, partimos frustrados, como se tivéssemos sido traídos pelo outro. Aí estava uma prova, para mim, historiadora, que de fato a reconstituição do passado é sempre ficcionalizada de acordo com o narrador. Faz parte do dia a dia, de quem se dedica à história, considerar que memórias são seletivas. Julian Barnes adverte o leitor sobre esse fenômeno desde o início da narrativa, através de Adrian, um adolescente precoce em conversa com seu professor: “Esse é um dos principais problemas da história, não é senhor? A questão da interpretação subjetiva versus a interpretação objetiva, o fato de que nós precisamos conhecer a história do historiador, a fim de entender a versão que é colocada diante de nós.” [18]
"O sentido de um fim", de Julian Barnes, trata diretamente da memória e da narrativa que damos às nossas vidas. Trata da maneira sucinta e por vezes poética com que narramos nossas próprias lembranças; reeditando-as com a a passagem do tempo. Julian Barnes também trata de maneira sucinta e poética o tema, revelando a enorme dimensão do que pode existir por trás dos detalhes que escolhemos lembrar, dos fatos que obliteramos, e como a cada narrativa podemos encontrar uma nova interpretação. Esta é uma obra magistral. Pequena, enxuta, prova de que conteúdo não precisa ser copioso para ter impacto.
Inicialmente "O sentido de um fim" parece estar contido nos preparativos a que, aos sessenta anos, Tony Webster, protagonista e narrador, se dedica ao colocar a vida em ordem para um futuro incerto. Mas à medida que se recorda do passado e conclui que não realizara nada do que sonhara, é forçado a reconsiderar o que havia feito de sua própria vida, de seu casamento. Fora nada mais do que a vida de um homem comum. Tem vívidas recordações de sua adolescência e dos amigos de então. Lembra-se de sua primeira namorada e dos hábitos diferentes de relacionamentos na época de sua juventude. Esse início, a primeira parte da história, marca o tom de meditação que permeia a narrativa: uma longa ponderação sobre as expectativas que temos sobre o futuro, e sobre o comportamento humano.
As lembranças, cada qual acessada a partir de um gatilho diferente parecem sempre surpreendentes. Tudo é próximo da realidade e enigmático. Revisto dezenas de vezes e sempre novo. Como num processo de psicanálise ou inquérito policial, a cada recontagem, a cada rearrumação de fatos, uma lembrança resgatada, uma revelação, nem tão clara, nem tão nebulosa, mas presente. A verdade? Está em algum lugar e não chega a ser mencionada.
O título "O sentido de um fim" toma conotações inesperadas, imprevistas. Muito mais do que estabelecer ordem em uma vida que se prepara para o fim, essa trama nos leva a questionar a veracidade das nossas certezas. Somos, afinal, quem pensamos ser?
De repente, a história singela, franca, desafetada, que prendeu nossa atenção até o final, levanta dúvidas. Sérias. Não sobre si mesma. Mas ela interage conosco. Questiona. No mesmo tom meditativo da narrativa, embarcamos numa ponderação a respeito do passado. Rever a ficção das nossas vidas, não é fácil. Saberemos catar nos rincões da memória o que é verdade? Separá-la, mesmo não conhecendo todos os fatos? Sim, porque é isso o que somos, um conglomerado de ficções e alguns fatos aos quais damos a nossa identidade, não é mesmo? Tony Webster, adolescente, não percebe a ficção do dia a dia. “Esse era outro de nossos temores: que a Vida não fosse igual à Literatura.” [21] Mas é. A vida é igual à literatura. Somos protagonistas da história que desenvolvemos, editamos, burilamos. Eliminamos fatos indesejados, colorimos a gosto. E em algum lugar, em algum ponto, essa fantasia toma uma vida própria, ambulante e acreditamos nela. Só mesmo um acontecimento inesperado, um evento de grandes proporções — como acontece em "O sentido de um fim" — pode desvendar a proporção de realidade que escolhemos esconder dos outros e de nós mesmos. Mas mesmo assim, não revelará tudo. Só o suficiente para o entendimento geral de uma determinada situação.
"O sentido de um fim" é uma joia, uma obra prima.