Lucio 22/12/2021
A Paradoxal Bondade do Sofrimento
INTRODUÇÃO
Este é um livro que facilmente interessa a qualquer leitor, pois todos passamos por sofrimentos, dores e decepções, e a maioria das pessoas buscam a Deus justamente em função desses problemas. Temos, portanto, sob a pena de um genial pensador cristão, todo um tratamento de como lhe parece ser possível e razoável crer em Deus em face disso que parece se opor à crença. Em termos técnicos, esta é a teodicéia de Lewis.
RESUMO
Desde a antiguidade já se questionava o papel que a divindade teria em relação aos nossos padecimentos. Mais particularmente na modernidade foi recuperada uma observação bastante desafiadora que Epicuro teria feito, a saber, a de que Deus não poderia ser bom e onipotente se o sofrimento existe, de modo que um desses atributos devem ser negados ou sua existência, uma vez que claramente o sofrimento está presente. Este era um problema particularmente importante para o próprio autor em sua fase ateísta.
Para lidar com o problema, de início, Lewis nota que ele sempre esteve presente e que, portanto, não é um desafio contemporâneo à fé, mas algo que sempre teria se oposto a ela desde que o homem é homem. Não obstante, as religiões sempre floresceram e continuam a florescer. Isso demanda uma explicação, e nosso autor trata logo de apresentá-la a partir de quatro noções sobre a origem da religião. A primeira é simplesmente a do assombro, a reação diante do ‘numinoso’ que postula Rudolf Otto. Uma segunda origem estaria justamente na tendência humana de conceber seres divinos a quem os homens devem prestar contas. Finalmente, surge em Israel uma concepção divina que unia as duas formas de origem de religião, i. e., uma assombrosa realidade superior a quem deveríamos prestar não apenas nossa reverência, mas também nossa obediência. E, finalmente, Lewis postula a origem da religião no fato de que essa presença assombrosa e santa se manifestou na realidade não como mero mestre da moral, mas como quem reivindica para si a própria divindade (há aqui uma menção àquela bem conhecida argumentação do autor contra a perspectiva de que ele seria mero mestre moral). A religião, pois, surge apesar da dor.
Em seguida, Lewis se volta ao problema em si, para tentar demonstrar como nossa razão não precisa se ofender ao crer em Deus. E logo de início propõe revisar o conceito de onipotência para que não seja colocado como parte da argumentação cética. Lewis basicamente nota que o fato de Deus não poder fazer algo que seja ilógico não depõe contra sua potência, pois esta sequer é uma tarefa. E a questão ilógica em si é a de ele criar um mundo com criaturas livres em que não houvesse possibilidade de Queda.
Mas não é apenas o conceito de onipotência que deve ser precisado. Os conceitos de amor e bondade também. Nossa época, segundo nosso filósofo, tende a ver como o apanágio da virtude e do bem a mera benevolência, i. e., o desejo de que o outro esteja feliz. É verdade que o amor contém tal benevolência, mas não pode ser desassociado do bem, da justiça, do nobre e belo, nem da verdade. Portanto, o verdadeiro amor quer que sejamos felizes e bons - e, de fato, fora do bem não encontraremos verdadeira felicidade. Nesse sentido, o autor trabalha com quatro ilustrações bíblicas - a do amor de um artista por sua obra; do dono para com o animal; do pai para com o filho e do amante para com sua amada - para demonstrar como em cada caso o amor quer que o objeto de seu amor seja bom e que, para isso, não raro busca trabalhar nele seu caráter. Não poderia ser diferente em relação a Deus, de modo que o sofrimento são formas pelas quais ele nos burila e purifica.
É claro que a maioria das pessoas poderia pensar que isso seja desnecessário. É por isso que é preciso trabalhar um realista quadro da maldade humana para que as pessoas consigam enxergar a plausibilidade desta explicação. E é o que o autor se propõe a fazer. O autor trabalha, como um moralista francês, os subterfúgios que usamos para esconder nossa maldade e parecer a nós mesmos como boas pessoas, como a noção de que somos benevolentes sem que nada nos desafie nesse sentido, ou as noções de arrependimento coletivo e sociais. Lewis ressalta como a própria mensagem do Evangelho depende desse reconhecimento de nossa própria pecaminosidade.
Em seguida, o filósofo se põe a explicar a origem de tal estado corrompido da alma, e volta-se para a doutrina da Queda. O autor sugere interpretações mais profundas, mas prefere deter-se naquilo que é mais certo e pautado pela tradição, a saber, o fato de que ‘Adão’ pecou e isso, de alguma forma, acabou por nos atingir. Lewis nota como é difícil entender a preposição ‘em’ tanto nos pais como no próprio Novo Testamento, quando é dito que caímos em Adão. Certamente, isso significa que de alguma forma estamos envolvidos. Para o autor, tal envolvimento se dá pelo fato de que houve uma rebeldia inicial, qualificada pela recusa à autorrenúncia para a qual a alma se inclinava naturalmente, em função de vindicar o lugar do eu no trono que pertence a Deus, e a consequência foi uma deformidade tal na natureza do homem que praticamente uma nova espécie surge, sendo nós descendentes dela. É importante destacar, também, que nesse capítulo Lewis apresenta uma forma de concílio entre a teoria da evolução e o relato de gênesis, inclusive observando como o homem primitivo pode ter sido menos sofisticado do ponto de vista técnico e, ao mesmo tempo, mais sofisticado em sua inteligência e caráter.
Após todas essas considerações, o autor se volta, em dois capítulos, a analisar precisamente o sofrimento humano. E o autor aponta três aspectos pelos quais o sofrimento é, de certa forma, uma bênção. A primeira questão é que a satisfação e alegria podem nos fazer pensar que tudo está bem e que não precisamos nem nos arrepender de nossos pecados e muito menos buscar a Deus. Então, o sofrimento retira essas alegrias transitórias de cena para que o indivíduo se volte para si e para Deus para alcançar a verdadeira felicidade. Em segundo lugar - bem parecido com o primeiro -, o autor nos faz notar como as noções de autossuficiência e independência também são obstáculos à piedade e à verdadeira felicidade, e são quebrados por Deus pelo sofrimento. Por fim, nosso filósofo nota como o homem caído tende a agir, mesmo quando busca fazer o certo, em função de si mesmo, mas não por amor a Deus. Por isso, uma vez que no âmago da ação moral deve haver uma autorrenúncia, nossas ações moralmente aprovadas não podem existir sem que haja uma boa dose de desagrado - o que dá pontos para Kant. Por outro lado, o autor parece concordar que as práticas das virtudes tendem a torná-las cada vez mais palatáveis. Depois de expostas essas três explicações mais precisas para os nossos sofrimentos, o autor se coloca a dirimir algumas dúvidas ou confusões que possam subsistir. Por exemplo, ele nota, então, que o sofrimento de tal tipo é aquele que naturalmente ocorre e do qual não podemos nos evadir. Com efeito, esse sofrimento presume que ajamos normalmente, evitando as dores que pudermos evitar de modo lícito. Por isso, a doutrina do sofrimento convive com a busca de fugas legítimas ao sofrimento e formas de tentar melhorar o mundo para tentar erradicá-lo o quanto pudermos. Também merece destaque o fato de que não podemos ter esperanças de que o sofrimento que Deus mesmo promove se encerrará aqui, neste mundo, pois sempre haverá maldade e corrupção que demandam retificação.
Lewis, então, se volta a falar sobre o inferno. Ele confessa que é uma doutrina muito desagradável, mas logo nota como ela é razoável e corresponde ao que não poderíamos esperar que fosse diferente. Afinal, quando alguém obstinadamente prefere o mal ao bem e não renuncia a si mesmo, recusando-se até o fim, nada mais justo do que a punição de tal pessoa. O autor retoma rapidamente sua crítica às teorias humanitárias da condenação, que postulam punições sem merecimento, para rejeitar de vez qualquer oposição à noção de retribuição justa. Há uma interessante consideração sobre a renúncia do eu nos abrir para o mundo, enquanto que o egocentrismo nos fecha e, no inferno, somos finalmente levados ao enclausuramento de nós mesmos. Lewis também tenta responder a objeções a doutrina, postulando que ele não seria uma existência paralela à do céu, tem cronológica nem espacialmente.
Além do inferno, é claro, há uma menção ao céu, como parte essencial de uma teoria cristã sobre o sofrimento. Lewis argumenta que o desejo pelo céu perpassa toda a nossa experiência de vida como se fosse uma nostalgia, e que é justamente por isso que não podemos desfrutar com contentamento total as experiências desta vida. O autor também postula que há em cada alma uma visão singular de Deus, que se expressa diante dos demais para compartilhar de sua perspectiva única, e que o céu, portanto, guarda um lugar meticulosamente feito para cada alma se regozijar e todas formarem uma sinfonia de louvor a Deus.
O livro ainda conta com um capítulo destinado a refletir sobre o sofrimento animal. Lewis admite o quão pouco podemos afirmar a esse respeito, posto que Deus mesmo não nos revelou materiais o suficiente para versarmos com propriedade sobre o assunto. Entretanto, o autor oferece algumas conjecturas. A primeira é a de que os animais, não tendo consciência, mesmo entre os sensíveis não sofrem tal como imaginamos. O autor segue observando que talvez a crueldade que se encontra entre eles tenha se originado em uma atividade corruptora de Satanás, e que a domesticação seja uma forma de redenção que o homem tem a tarefa de produzir. Por fim, Lewis ainda desenvolve a teoria de que a personalidade dos animais surge com a boa domesticação, e que talvez a ressurreição dos animais se restrinja a esse contexto.
AVALIAÇÃO CRÍTICA
Embora tenhamos algumas críticas à obra e ao raciocínio como um todo que ela enseja na argumentação, podemos perfeitamente apreciar partes dos argumentos de forma independente e até como elementos que se encaixam em outras formas de teodiceia. Da mesma forma, podemos apontar o problema do argumento como um todo voltando-se para as partes que o compõem. Isso não quer dizer que a perspectiva que Lewis abraça não seja capaz de lidar com o problema ou mesmo que o filósofo não faça contribuições valiosas para essa perspectiva. Dito isso, podemos ir às críticas.
A primeira que queremos observar é a de que a explicação da Queda não conseguiu evadir-se às objeções humanistas feitas à teoria da imputação. De todo modo, o ato que ensejou a Queda acabou se refletindo nos homens que dali em diante surgiram. É essa a questão que demanda reflexão filosófica. Lewis tenta fugir dela, mas sem sucesso.
Há outro problema que o filósofo não trata. A ideia de que a liberdade implica no risco da Queda não faria com que o próprio “céu” (estado final) pudesse ser novamente corrompido? A propósito, esse próprio estado final é colocado como céu, mas há pouca ênfase à ressurreição e a visão do céu bem como do inferno, em alguns momentos, é bastante desumanizada - no sentido de não parecer uma fruição de um homem ressurreto e vivo, e sim de uma alma. Aí encontramos problemas também, quando Lewis fala do inferno como algo distinto de um prolongamento temporal, e concede aos mesmos humanistas que negam a plausibilidade e racionalidade da clássica teoria da punição retributiva a ideia de que não poderíamos suportar o fato dos maus e o mal em si estarem sendo severa e eternamente punidos. Esses últimos aspectos, no entanto, podem ser perfeitamente contornados sem causar maiores danos ao argumento como um todo.
Incomoda-nos, também, a pouca ênfase dada à soberania de Deus, embora em algumas porções encontremos excelentes momentos para que ela se encaixe. Mas o assunto, em si, não é abordado. Lewis prefere evadir-se dessa perspectiva mais ‘metafísica’ para abordar a questão de uma forma mais vivencial. Entretanto, em alguns momentos precisaríamos disso. É claro, temos o autor tratando da questão metafísica em outros lugares, como no CPS ou mesmo no DnBR. De todo modo, valeria o autor mencionar que não lidaria com essas questões aqui, quem sabe até mesmo nos dando uma explicação para isso.
Há ainda outro problema metafísico que o autor não trabalha. Não seria intrinsecamente impossível que Deus criasse criaturas cuja liberdade trouxesse alguma novidade ao seu conhecimento? Poderia Deus correr riscos, como o autor tantas vezes assume? Isso não se oporia à sua onisciência, bem como proporia uma noção de autonomia ontológica para as coisas?
Por outro lado, de positivo é possível destacar igualmente muitos aspectos. Por exemplo, independente de como Lewis explica a origem do mal, suas considerações sobre como a maldade humana é obliterada em nossas mentes modernas e como isso faz com que nos rebelemos contra Deus são muito interessantes. É digno de menção, também, como Lewis explica nosso sofrimento como formas de Deus nos desiludir das falsas alegrias e falsas seguranças que usualmente experimentamos por alguns momentos e que nos afastam de Deus. Mais significativo ainda é como o autor vincula a negação do egocentrismo à origem da virtude e da piedade, bem como a forma como ele relaciona o enclausuramento do eu ao próprio inferno! Essas são, certamente, reflexões muito profundas e úteis. O paradoxo do louvor ao sofrimento e a busca por saná-lo também encontra aqui uma ótima resolução. O filósofo também é muito sagaz ao questionar nossas concepções levianas sobre o amor, o qual costumamos conceber como pura benevolência. Lewis também é muito criativo ao buscar conciliar a evolução a Gênesis. É claro que é um trabalho mais rudimentar, mas há excelentes insights originais aqui. Apreciamos, também, a questão da singularidade da perspectiva experiencial de cada um em relação a Deus.
REFERENCIAL TEÓRICO
Lewis mesmo admite não ter feito uma vasta pesquisa sobre o assunto. E a maioria das referências nem mesmo dizem respeito a investigações sobre o tema. Lewis se vale de William Law e Hooker, por exemplo, para propósitos alternativos. Aqui e acolá, Platão e Aristóteles são mencionados, bem como, sem o mencionar pelo nome, Darwin - ou, pelo menos, os darwinistas. A tradição cristã de uma maneira geral e as Escrituras certamente são influências importantes. Montaigne e Pascal também são mencionados. E assim por diante, alguns autores aparecem de forma bastante tímida. O filósofo não deixa transparecer claramente o vínculo de suas idéias. O texto não está formatado de forma acadêmica, de modo que não há preocupação com tais identificações.
RECOMENDAÇÃO
Embora, como observamos, Lewis se prive de adentrar reflexões metafísicas mais técnicas e teóricas, não deixa de tecer profundas reflexões, inclusive de cunho metafísico. Por isso, a obra pode encontrar barreiras no desenvolvimento da leitura de pessoas com menos treinamento filosófico - e que queiram levar a sério cada argumento apresentado pelo autor. Não obstante, ainda que essas porções não sejam devidamente consideradas, há muitas porções mais acessíveis e que são extremamente edificantes - dentre elas, algumas das que mencionamos na parte positiva da crítica. Como o tema é de interesse universal, o livro pode ser útil para todo mundo. Apologistas e filósofos da religião que querem ouvir uma abordagem mais libertariana encontrarão aqui um expoente genial. Mas filósofos morais, analistas da natureza humana, bem como do drama humano e da existência, lucrarão com a leitura. Quem lida com aconselhamentos e afins também poderão extrair lições valiosas da leitura, tanto para si quanto para aqueles que receberão suas instruções e conselhos.