jota 06/09/2020Avaliação: 3,8/5,0 – BOM (confissões de um artista alemão quando jovem)O nome do personagem-título desta novela de 1903, lançada dois anos após a publicação do romance Os Buddenbrooks, vem de Antonio, nome do irmão de sua mãe, a exótica Consuelo, mulher do “sul” casada com um comerciante alemão. O nome dela parece espanhol, mas pode ser que tenha nascido em terras brasileiras, descendente de europeus e índios, talvez também de negros, de uma mistura de várias etnias. Assim como no romance de 1901, Tonio Kroger tem um pouco da vida do próprio Thomas Mann (1875-1955) e igualmente de sua família burguesa (eram comerciantes em Lubeck). Família que foi profundamente estudada pela escritora e psicanalista alemã Marianne Krull num ótimo e volumoso livro (que todavia se lê como um longo romance, tão bem escrito e interessante que é), Na Rede dos Magos: Uma outra história da família Mann (edição Nova Fronteira, 1991), que li já faz algum tempo.
Tonio Kroger cobre cerca de dezesseis anos da vida do personagem e se inicia com um leve homoerotismo: o rapaz está platonicamente apaixonado por um colega de classe, Hans Hansen, mais interessado em desenhos de cavalos do que em literatura ou poesia, coisas que Tonio aprecia profundamente. Ao mesmo tempo ele também é apaixonado pela loura Inge, Ingeborg Holm; com ela gostaria de se casar e ter um filho parecido com Hans, conforme vai confessar mais tarde. Numa outra confissão à amiga pintora Lisavieta Ivanova acerca de suas paixões Tonio escreve, após observar escondido Hans e Inge se divertindo pra valer num baile: “Meu mais profundo e recôndito amor pertence aos louros de olhos azuis, aos de vida radiosa, aos felizes, amáveis e triviais.” Assim eram Hans e Inge, ao contrário do melancólico, solitário e pensativo Tonio, o jovem alemão de negros cabelos (tal qual Mann) que queria ser escritor. E que, por suas origens, se via dividido entre dois mundos, o da arte e o da burguesia comercial, temas que Mann explorou mais detidamente no já citado Os Buddenbrooks.
Através de Mann, filho de uma brasileira de Parati e de um alemão de Lubeck, Tonio via na mistura familiar uma imensa gama de possibilidades e também de perigos. Ele escreve: “Meu pai era de temperamento nórdico: compenetrado, metódico, correto por puritanismo e com um pendor para a melancolia; minha mãe tinha um indefinido sangue exótico, era bonita, sensual, ingênua, ao mesmo tempo indolente e apaixonada, e de uma licenciosidade impulsiva.” Tudo isso resultou para Tonio que ele se via no mundo como um burguês desencaminhado pela arte e desse modo não se sentia confortável em seu meio. Parece entender que seu destino é mesmo a solidão de quem escreve. Decide então viajar para o exterior, não para o sul, a Itália, que já visitara uma vez, terra de calor, beleza e sensualidade, ao gosto da mãe. Parte então para o norte, mais ligado às características paternas, primeiro para a cidadezinha onde nasceu e ali constata que a casa da família foi transformada numa biblioteca pública, coisa que estranhamente o desagrada, uma vez que era ligado aos livros. Em seguida segue rumo à Dinamarca, seu destino final por uns tempos. Lá, antes de regressar à Alemanha, através de suas confissões abre a alma para a amiga Lisavieta. Para o leitor, na verdade.
Mas durante todo o tempo seu irrequieto espírito de artista burguês coloca-lhe questões ligadas à “profissão” de escritor, à marginalidade do artista vivendo em sociedade, caso dele, e outros questionamentos que vão surgindo em sua mente. Grande parte da novela é assim mesmo: são muitas páginas em que há bastante reflexão, queixas, confissões e bem pouca ação. Daí que encontramos pensamentos como o seguinte: “A felicidade (...) não é ser amado; isto é uma satisfação misturada com asco para a vaidade. A felicidade é amar e talvez colher pequenas aproximações ilusórias da pessoa amada.” E por aí vai; há alguns outros ditos como esse, que por vezes nos dão a impressão de que estamos a ler outro autor alemão, Hermann Hesse, conforme acertadamente apontou mais de um leitor.
Algumas edições brasileiras de Tonio Kroger trazem outra novela na sequência, a conhecidíssima A Morte em Veneza (1912), na qual muitos críticos igualmente encontram traços autobiográficos enquanto Mann vai retratando a paixão platônica de um homem mais velho por um adolescente (no livro de Marianne Krull há mais informações sobre isso). E onde Mann novamente enfoca com maestria as relações entre a arte, o artista e a sociedade burguesa. Na edição da Companhia das Letras de 2015 há uma boa fotografia de Mann em 1906, aos trinta e um anos, languidamente posando com um livro nas mãos, com seus bem penteados cabelos negros. Talvez nessa foto houvesse um pouco de Tonio Kroeger por volta dos trinta e poucos anos, idade com que estaria o personagem no momento em que a narrativa se encerra. Pode ser...
Lido entre 03 e 05/09/2020.