Brunífero 30/03/2023
A luta gravada na alma
Desde que lia os livros didáticos de história do Ensino Fundamental II de forma autodidata, ficava fascinado pela luta antirracista americana não só pela presença no imaginário popular, mas também pelo seu oposto, isto é, a falta de informações e sua caricatura, e um dos que mais sofre com isso sem dúvida é Malcolm X. A narrativa sobre sua luta parecia muito mal detalhada nesses livros, especialmente se comparado com Martin Luther King e toda esse falso dilema de "pacifismo x autodefesa". Felizmente, isso vem mudando nos últimos anos, e um grande marco dessa mudança, ao meu ver, é esta biografia de Malcolm X por Manning Marable, que dedicou toda sua vida acadêmica a pesquisá-la (desde o fim da década de 60 até 2010!), e cuja jornada foi laureada com o Pulitzer de biografia de 2012 - infelizmente, um prêmio póstumo. E olha, foi um prêmio merecido.
A biografia é um verdadeiro tour de force no movimento negro estadunidense da primeira metade do século XX, mais precisamente no que se chamou de garveismo, movimento que daria luz ao pan-africanismo (ainda que profundamente anticomunista e com religiosidade que beira à despolitização), que por sua vez geraria a Nação do Islã, a igreja na qual Malcolm X militou durante boa parte de sua vida política, vida a qual é muito determinada pelo ambiente do século XX, como por exemplo o fascínio pelo jazz. Como um todo, a biografia é esplendidamente bem-escrita e todo aprofundamento é justificado, como a questão do trato da mulher negra da Nação do Islã. Mais fascinante ainda é perceber que a biografia é estruturada em meses quando chega na vida política de Malcolm X, mas o que poderia ser um preciosismo do autor se justifica pela importância do que é narrado e a vida de reinvenções, mencionada no subtítulo, é mais que justificada. A relevância da leitura da biografia se dá também em conhecer o pensamento de Malcolm X, visto que ele era mais orador do que escritor, e dessa forma suas intervenções acabam fluindo tanto pela narrativa quanto pelo aprendizado de seu pensamento. Também é interessante notar como Manning desconstrói a famosa autobiografia ao apontar as dissonâncias factuais e os interesses nos quais ela foi redigida.
Para além do aprendizado teórico ou da relevância social imediata em ter contato com o antirracismo, o livro é relevante para perceber o quanto o radicalismo de Malcolm X não surge do nada, e o quanto, mesmo depois de sua morte, ele ainda é visto como ameaça ao status quo - por bons motivos. Tanto no exagero quanto no esquecimento (não sabia que ele flertava com o marxismo no fim da vida), figuras históricas interessantíssimas podem ser estigmatizadas a ponto de serem afastadas do grande público, e são justamente essas as mais relevantes para a resolução dos nossos problemas sociais mais candentes. Nesse sentido, essa biografia é um passo decisivo para a revelação de Malcolm X para o grande público, exatamente como seu autor pretendia.
Como diz João Carvalho, rebelar-se é justo e necessário.
*Versão brasileira da Companhia das Letras. Inclui índice remissivo, fontes e bibliografia.