Antônio Junior 27/09/2020
Este texto contém spoilers da trama.
Segismundo, assim como Édipo, é um sujeito com um fado a ser cumprido; o qual envolve não somente a si próprio e seus familiares, mas também todo um reino. O drama, no entanto, não se concretiza enquanto tragédia, pois o destino do personagem não se cumpre na totalidade devido a necessidade teológica do fator moralizante inerente ao teatro Barroco, e a trajetória individual de Segismundo é, então, radicalmente alterada. Há, inclusive, uma atualização cristã do tema mitológico do conflito geracional entre Pai e Filho que, ao invés de terminar com a aniquilação de um ou de outro (cf. Teogonia, de Hesíodo), termina de forma catártica com reconciliação entre ambos.
Na peça há o constante jogo de contrastes típico do Barroco: Homem x Animal, Divino x Humano, etc., a dualidade de potencias contrárias é um elemento muito presente no texto de Calderón de la Barca. Uma das características do período é o homem levantar questionamentos a Deus, como podemos ver logo no início da primeira jornada, quando Segismundo aparece acorrentado dizendo seu monologo/lamentação: “Ai, misero de mim! Ai, infeliz! / Descobrir, oh Deus, pretendo, / já que me tratas assim /que delito cometi / fatal, contra ti, nascendo.” (LA BARCA, 2009: 37) Assim, o Humano se opõe ao Divino ao questioná-lo sobre os motivos ocultos do seu sofrimento.
A Vida é Sonho não atende ao princípio aristotélico de unidade de ação pois, mesmo o foco sendo em Segismundo e sua trajetória de ascensão ao poder, também há a ação secundária de Rosaura, que age em prol de si própria, para a restauração de sua honra. Assim sendo, o dramaturgo aborda duas ações distintas que convergem em um fim comum e ambas se estendem do encontro entre Rosaura e Segismundo na torre, ao anoitecer, na primeira jornada, e se concluem com o final da batalha e a rendição de Basílio, nas cenas finais.
La Barca utiliza o recurso dramático do deus ex-machina na terceira jornada para resolver o conflito da peça, com isso o direcionamento que o drama toma é contrário, como dito acima, ao que se desenha durante toda a primeira, segunda e parte da terceira jornada, pois aqui o deus ex machina é a mudança radical de caráter que Segismundo sofre, contrariando o vaticínio dos astros revelados ao Rei Basílio.
Sigismundo questiona a todo tempo se o que ele está vivendo é sonho ou realidade, neste sentido a metateatralidade da peça se dá por este questionamento que perpassa a obra que, enquanto ficção, põe em dúvida as instâncias do real em que o próprio drama se insere. Há, na segunda jornada, uma fala muito interessante de Segismundo em que o personagem, sonhando, diz “Surja na espaçosa praça do grande teatro do mundo este valor primordial: para realizar a vingança vejam o príncipe Segismundo que derrota o próprio pai.” (LA BARCA, 2009: 72), ou seja, em seu próprio sonho o personagem faz alusão ao fazer dramático, ao palco do mundo, comparando a realidade ao drama e vice-versa. Outro elemento metateatral importante é o personagem Clarim, que possui consciência de sua condição enquanto sujeito ficcional, ele sabe que é um personagem e só existe naquele universo dramático, e em certo ponto nos diz em um aparte: “Por Deus, parece que é sério. Será costume neste país prenderem uma pessoa num dia, consagrá-la como príncipe no outro e despachá-la no terceiro outra vez para a prisão? Sim, é, porque estou vendo. Preciso desempenhar meu papel. (LA BARCA, 2009: 78. Grifo nosso), confirmando para a audiência sua consciência dramática.
Há a evocação de dois tipos de espaço em A vida é sonho, os miméticos, que se referem à locais concretos, tais como a torre-prisão, o palácio, etc. e os espaços diegéticos que se referem às ações ocorridas, mas não encenadas diante do público, como por exemplo a batalha entre Segismundo e seu pai que é apenas cantada por um soldado (LA BARCA, 2009: 89-90)
A influência da obra de Calderón, desta peça em especifico, perpassou séculos e deixou marcas profundas em importantes obras do Cinema e Literatura da nossa época, aqui posso citar dois filmes em especifico, os quais trazem grande semelhança com A vida é Sonho, são eles: O Enigma de Kaspar Hauser, filme de 1974 o cineasta Werner Herzog, sobre a aquisição da linguagem e a absorção do real; e o celebrado Matrix, de 1999, das Irmãs Wachowski, que, assim como a peça calderoniana, traz como seu motivo principal este mundo fraturado entre Real e Ilusório. Leituras que talvez lançassem mais luz sobre as questões levantadas na peça seriam os livros Simulações e Simulacros, do filosofo e sociólogo francês Jean Baudrillard, e O Príncipe de Nicolau Maquiavel.
Em última análise, talvez o conflito mais importante presente na peça de la Barca seja o embate Medievo x Modernidade que se expressa na batalha em que os defensores da legitimidade política de Segismundo derrotam o obscurantismo supersticioso de Basílio, este conflito não é outra coisa senão a expressão da dualidade Barroca por excelência; ou seja, o Cristianismo católico do ocidente que derrota a astrologia e suas crenças; na divisa entre Ocidente e Oriente, aqui representada pela Polônia, marcando a resistência da fé católica romana na contrarreforma.