Pandora 12/06/2021“Acho que quando era jovem carregava uma sensação constante de insuficiência social (...). Mas ao mesmo tempo albergava a secreta esperança, ou melhor, a secreta certeza, de que um dia acabaria de me transformar em mim mesmo; na imagem que durante anos tinha elaborado de mim mesmo. (...) Não sei explicar em que momento começou a se inverter o processo que eu imaginava linear e ascendente, e que finalmente resulta ser uma espécie de bumerangue desumano que retorna e lhe derruba os dentes, o entusiasmo e os culhões.” - pág. 85 (Owen)
Esta é, para mim, é uma das reflexões mais importantes deste livro. Sobre como, mesmo com o livre-arbítrio e o esforço de seguir numa determinada direção, aquilo que não controlamos intervém e modifica os resultados que esperamos. E por não viver o que queríamos, às vezes vivemos como fantasmas de nós mesmos. Foi um trecho me tocou demais. E embora eu tenha algumas ressalvas quanto a esta leitura, ela me surpreendeu positivamente.
O nome original de Rostos na multidão é Ingrávidos, que significa leve, tênue, sem gravidade. Como a alma. Ou um fantasma.
Aqui há três vozes narrativas: a de uma mulher na juventude, trabalhando como parecerista e tradutora numa pequena editora em Nova York e obcecada pelo poeta Gilberto Owen; esta mesma mulher nos dias de hoje, casada, com dois filhos, vivendo no México e escrevendo sobre aquela época nos EUA e a do escritor Gilberto Owen, vivendo no Harlem dos anos 20. É uma arquitetura de fragmentos muito bem construídos, que começam distintos e vão se mesclando até um final interessantíssimo.
E há os fantasmas. Aquele com quem o menino médio (o filho mais velho) conversa pela casa; o Owen que a jovem mulher vê no metrô e mesmo a jovem mulher vista por Owen. Há por aí os fantasmas das várias vezes que morremos em vida e os fantasmas dos que vivem como se não existissem, insatisfeitos com a própria vida.
“As pessoas morrem, deixam irresponsavelmente um fantasma de si mesmas por aí e depois continuam vivendo, original e fantasma, cada um por sua conta.” - pág. 126
Em certo momento, a narradora descreve o livro que está escrevendo como “um romance horizontal contado verticalmente. Um romance que se deve escrever de fora para se ler de dentro”. São como linhas do tempo paralelas, que sobem e descem até que se juntam.
O problema em Rostos na Multidão é a erudição. Sabe longos trechos de jazz? Agradam mais aos músicos. Aqui a inteligência e cultura de Luiselli, que morou em vários países e tem um doutorado pela Universidade de Columbia, ficam evidentes não só pelo domínio narrativo e sua escrita estruturada - neste que foi seu primeiro romance -, mas também nas citações de escritos, filmes, criadores e criações nem sempre conhecidos. O resultado disso é um distanciamento entre leitor e obra pela falta de identificação, o que torna alguns trechos enfadonhos.
O personagem de Owen também não ajuda.
Em contrapartida, o melhor personagem é o “menino médio”, que tem umas tiradas espontâneas e pontuais.
Nota: Gilberto Owen foi um poeta mexicano e diplomata.