Paulo 28/06/2022
Gênio do teatro
Li este livro logo após “O Tartufo” e achei-o superior. Com tradução fluida e rimada de Bárbara Heliodora, a peça é dividida em 5 atos.
O misantropo Alceste é uma personagem quixotesca, de moral rígida, radical, que só fala a verdade e não respeita sequer as regras básicas de convivência social, por entendê-las hipócritas. Paradoxalmente, é apaixonado pela viúva rica Célimène, de caráter oposto ao seu, dissimulada e mentirosa, que se diverte recebendo e tapeando seus diversos pretendentes. Devido à grande incompatibilidade de gênios, Alceste termina sozinho e decide banir-se da sociedade para viver no deserto.
Em contraste, o relacionamento entre Philinte e Éliante termina com um final feliz. Philinte, amigo de Moliére, é o raisonneur, que acompanha a trama com suas observações justas e razoáveis: “sofra menos com a moda da semana, perdoe um pouco mais a natureza humana; vamos examiná-la com menos rigor, sejamos mais gentis até com o pecador”. É o representante da burguesia futura, que sabe se adaptar ao meio para prosperar. Éliante, a personagem mais sensata da peça, é prima de Célimène e aceita se casar com Philinte no final.
Em um dos vários diálogos geniais da peça, Alceste recusa-se a elogiar, apenas por conveniência, um péssimo soneto declamado por Oronte. Essa passagem ilustrou para mim o atual fetiche das pessoas em querer se entregar à vida intelectual, ainda que sem qualquer vocação, e a abundante e medíocre produção textual que daí advém. Segue: “Qual a necessidade que tem de rimar? Que raios o levam a querer publicar? Perdoa-se o mau livro apenas, pode crer, aos infelizes que publicam para viver. Creia-me, e resista enfim à tentação de revelar a todos tal ocupação; não chega a abandonar, manchando todo o resto, a fama que na corte tem de homem honesto, para receber da mão de um ávido editor a de homem risível e péssimo autor.”
Em outro brilhante diálogo, Cèlimène e Arsioné (uma fingida amiga) conversam sobre a reputação e fama de ambas perante a sociedade. É um diálogo ferino de acusações e ofensas mútuas, disfarçadas sob juras hipócritas de amizade … um primor.
Como já dizia Aristóteles, o homem é um animal político. Por meio do caráter inabalável de Alceste, Molière mostra na peça que a sinceridade incondicional impossibilita o convívio social e que as regras de trato social existem para permiter o funcionamento da sociedade. O êxito do casal Philinte e Éliante, que sabem como viver (“sofra menos com a moda da semana, perdoe um pouco mais a natureza humana; vamos examiná-la com menos rigor, sejamos mais gentis até com o pecador”), em oposição ao destino de Alceste, inadequado ao meio social, reforça a percepção de que é necessária pequena dose de hipocrisia para o convívio humano.
Não obstante, durante toda a narrativa, a pena de Molière desnuda com maestria as idiossincrasias da vida de aparências da sociedade francesa, marcada pela hipocrisia social e pela fatuidade. Alceste, por ser sincero, moral e correto, destoa do meio em que vive, arruma confusão com todos ao redor e é um sujeito difícil de lidar, mas deve-se reconhecer que ele apresenta algumas verdades que não deveriam ser ditas por incomodar os demais e perturbar a paz social.
Ao ler essa segunda peça, entendi porque Carpeaux disse ser Molière o maior comediógrafo de todos, comparando-o a Homero, objeto de admiração unânime.