@garotadeleituras 07/03/2018
Um bom romance português sobre guerra, destino e pinceladas de filosofia.
A filha do capitão, livro de José Rodrigues dos Santos foi uma surpresa agradável numa escolha aleatória e totalmente desconhecida. Procurando algo leve para ler caiu-me ás mãos um livro sobre guerra, e quando cito a guerra imagine um relato pormenorizado das tropas e ataques baseados numa extensa pesquisa realizada pelo autor, que faz questão de apresentar ao leitor realidade e ficção entremeada, resultado interessante já que nada tinha lido sobre Portugal na primeira guerra mundial.
Estruturado nas estórias alternadas dos protagonistas – Ágnes e Afonso, o livro pode ser dividido em dois momentos: o inicio onde se constrói os personagens com informações e acontecimentos que os levam para o encontro e a guerra, e o segundo momento onde se encontram e como essa guerra definirá o futuro, além de informações históricas sobre Portugal no combate.
Afonso Brandão da Silva sempre foi um questionador sobre os mistérios do universo, começando pela data do nascimento e o sobrenome divergente entre que os pais nunca souberam explicar ao certo. Oriundo de uma família pobre da Carrachana, um lugar ermo à entrada da vila ribatejana de Rio Maior, foi o sexto filho da velhice da mãe, nascido para substituir o irmão falecido. Como os demais, Aos cinco anos, foi destinado como ajudante do pai, lavrador. Numa infância difícil, onde não existiam sapatos e higiene precária, fez uma única viagem para Lisboa, onde conheceu o futebol, uma paixão que alimentaria por toda a vida. Aos seis anos, o pároco convenceu os pais do pequeno a envia-lo para escola primária. Afonso acabou por considerar essas horas um descanso do trabalho pesado e o incitou a gostar de estudar. Aos dez anos, o pequeno deixou a escola para trabalhar nas serrarias com os irmãos. Descobriu rapidamente que não tinha jeito para o trabalho e certo dia, decidiu tentar uma ocupação na casa Pereira, onde se vendia artigos de costura e queijadas. Afonso tinha na época doze anos, e desde então esteve sob a proteção da maquiavélica Dona Isilda, que percebendo a desvantagem do namoro com a filha, decide pagar os estudos para o empregado ingressar no seminário e afastá-lo da sua Carolina.
Dessa época, levaria as lembranças da amizade com padre Álvaro, irmão de Dona Isilda, ou quando aos quatorze anos, já no seminário dividia seu tempo em estudar as disciplinas, chutar pedrinhas no recreio imaginando-se em um campo de futebol, as conversas com o único amigo Américo e se deleitar nas questões filosóficas com o Padre Nunes que conforme o tempo, se tornariam mais complexas. Afonso não saberia o quanto essa época lhe deixaria marcas no caráter, já que aos dezessete foi definitivamente dispensado do seminário. Ao voltar para a casa materna, já não se sentia a vontade entre seus, não tinha mais lugar no trabalho antigo, mas logo reatou o namoro escondido com Carolina. A mãe prática como sempre, logo arranjou pretexto para nova separação: dessa vez o envio foi para a escola militar para que o genro tivesse uma formação e trabalho em Lisboa, onde conheceria seus companheiros de guerra e ganharia o apelido de “aprumadinho” pelos hábitos pudicos.
Em 1908 começaria os primeiros movimentos contra a monarquia com a morte de D. Manuel, agitando o cenário político da época. Ao regressar para Rio Maior, Afonso descobrira que Carolina estava noiva, sem uma posição política madura e formado, escolheu Braga em virtude das ligações passadas para exercer a função de tenente. Em 1914, a Alemanha declararia guerra à França, as tropas de Portuguesas foram recrutadas para ajudar o aliado, entretanto somente em 1916 à lista com os trinta e dois regimentos recrutados seriam publicados, - a instabilidade política interna e a revolta nas colônias ocuparam os militares até então.
O autor fez questão de descrever o clima estranho entre as tropas que estavam se preparando para o combate: enquanto Afonso colocava a oitava divisão para se exercitar, muitos dos colegas tentavam frear o entusiasmo com pilherias e conspirações. A eterna briga entre republicanos e monarquistas também estava presente no exercito. O Corpo Expedicionário Português (CEP) enviou os primeiros regimentos no inicio de 1917, porém uma sublevação revelou que a maioria dos homens convocados para partir estavam envolvidos nas conspirações. Foi assim que com inúmeros postos desocupados Afonso se tornou capitão. Na frança, ao ser hospedado na casa do Barão Jacques Redier, já que as mansões albergavam pessoas que tinham cargo elevado no exercito em nome do dever patriótico, Afonso conheceria Agnès, e claro, ambos acabariam desenvolvendo um relacionamento.
A segunda de quatro filhos, Agnès Chevallier nasceu em 1981, em Lille, na França. Oriunda de uma família de burgueses de origem flamenga admirava o pai, um enólogo apaixonado pelo negócio da família que logo ensinaria os segredos para a filha predileta. Ainda na infância decidiu ser uma Florence Nightgale e aos nove anos começou a frequentar a escola para posteriormente ingressar na medicina. Tinha ainda da infância recordações preciosas sobre uma viagem à Paris e a Torre Eiffel, bem como as maravilhas contempladas por lá. Aos vinte anos, a jovem segue novamente para a capital para cursar medicina na Sobornne. Aos vinte três anos se apaixonaria perdidamente por um estudante de direito, Serge e rapidamente se casaria em 1914. E já que acontecimentos precipitados era a normalidade na vida da jovem senhora, entusiasmado pela comoção de Paris com o inicio da guerra, Serge se alistou na guerra, deixando uma jovem viúva de vinte e três anos e três meses após o casamento. Sem recursos, impedida de voltar para Lille devido aos bloqueios da guerra, nenhum contato com a família do esposo e sem recursos para continuar na universidade, acabou casada novamente com o Barão Jacques Redier, um velho amigo do pai, um apoio importante em tempos difíceis. Ao conhecer Afonso, que suscitou lembranças do primeiro esposo, se sentindo irremediavelmente atraída por sua inteligência e personalidade.
Além do encontro entre Agnès e Afonso, os diálogos entre os soldados e a forma como os dados sobre as tropas portuguesas foram inseridos na narrativa deixa a leitura bem dinâmica. A ideia que se tem lendo o livro é que o exercito enviado para as trincheiras foram praticamente sacrificadas: não existiam condições mínimas de higiene ou alimentação ou vestes e sapatos adequados; as valas eram encharcadas de água e parasitas, a comida de péssima qualidade e muitas vezes intragável; as tendas de descanso não protegiam do frio e das ratazanas e não houve revezamento dos extenuados soldados durante a participação no conflito. As revoluções em Portugal manteve o governo preocupado e o exercito não tinha motivação para lutar, exceto voltar para casa. O clima era de insatisfação e revolta; eles não compreendiam o papel efetivo do exercito português no combate, já preparação e armamento adequado não existia; ao comparar os meios de sobrevivência e armamento dos Boches (alemãos) sentiam-se abandonados para morrer. Cada companheiro que caiu ao lado foi um grotesco lembrete que os soldados portugueses foram marionetes indefesas no teatro da guerra. Afonso, mesmo capitão com suas regalias, reconhece as condições extenuantes e tem lá sua cota de sofrimento quando é enviado para os campos de prisioneiros. É um bom livro porque, acima de protagonistas bem desenvolvidos e carismáticos, a tragédia, o referencial literários e filosóficos nos diálogos, serve como fonte histórica, de uma época turbulenta para Portugal e para as forças armadas. A escrita do autor mesmo com os inúmeros detalhes sobre os personagens e a guerra é fluida sem quebra do ritmo. Se você gosta de um romance bem desenvolvido, história e guerra isso aqui é um prato cheio. O único “porém” é o spoiller do titulo, mais ainda sim recomendo demais!
Sabe meu capitão, descobri que o mais duro não é fazer a guerra, murmurou o antigo cabo. "O mais difícil é sobreviver a ela, é viver com ela depois de ter vivido nela. Percebe o que eu quero dizer?" Afonso respirou fundo. Então não percebo, Matias? Todas as noites sonho com isso. Fez uma pausa. "Nem sei mesmo se sobrevivi. Olha, por exemplo, às vezes sonho que estou nas trinchas rodeado de mortes, viro um corpo para cima para lhe ver a cara e descubro que o cadáver sou eu". (...) Levei muito tempo para perceber este sonho, mas acho que já entendi. Ele significa que uma parte de mim morreu nas trinchas e estou de luto pela minha própria morte. "É isso mesmo, meu capitão. Estamos de luto por nós mesmos"