João 16/12/2020
Por que ler Dante – Eduardo Sterzi.
O título desse opúsculo de Eduardo Sterzi é quase uma pergunta retórica.
Por que ler Dante?
Ora, o simples fato de se tratar de uma obra que compõe o cânone literário há mais de 700 anos é razão suficiente para conhecê-la.
Daí que o ensaio de Sterzi aponta mais para o "como" ler Dante, do que "por que" ler Dante.
Antes de tratar da obra dantesca propriamente, Sterzi faz o “retrato de Dante”, isto é, traça o seu perfil autobiográfico.
Nascido em 1265, na cidade-Estado de Florença, Dante pertencia a uma família nobre decadente, os Alighieri. Teria sido educado com primor. Aos nove anos teria visto pela primeira vez Beatriz, que também contava com nove anos à época, e cuja imagem inspiraria em Dante a expressão da mais alta poesia, bem como as meditações filosófico e teológicas que o acompanhariam por toda a vida. Dante participou da vida política de Florença, pela facção dos guelfos, tendo ocupado funções eminentes como a de prior. Após uma conspiração protagonizada pelo Papa Bonifácio VIII e Carlos de Valois, que resultou na ingerência sobre o governo de Florença, os guelfos brancos foram expulsos da cidade. Começou aí o exílio de Dante, que nunca mais voltaria para sua cidade natal.
No tocante ao método de leitura de Dante, Sterzi parece sugerir um encontro prévio com as obras iniciais de Dante, ainda que através de noções básicas acerca de seus temas e de suas características, a fim de que a sua obra máxima – a Comédia – possa ser melhor compreendida.
Assim, o autor começa com a apresentação da obra inaugural de Dante – “Vita Nuova” – que consiste na compilação de seus primeiros poemas líricos, entremeados por comentários em prosa que tratam desde o “fazer poético” até os elementos autobiográficos que influíram sobre a produção dos poemas.
A “Vita Nuova” constitui, portanto, importante fonte biográfica acerca de Dante. Aliás, os poemas ali reunidos evocam o amor do poeta por Beatriz. Embora não se saiba até hoje se Beatriz de fato existiu, importa mais percebê-la enquanto personificação do Amor, e, mais tarde, como alegoria da teologia no pensamento de Dante.
A “Vita Nuova” permite ainda visualizar a evolução do estilo poético de Dante, que de início ainda sofria os influxos do trovadorismo de origem provençal (sul da França) baseado numa lírica devotada ao amor cortês, cavaleiresco, de cariz eminentemente sensual e dirigido a uma dama geralmente inalcançável. Sua evolução passa então para o “doce estilo novo”, que abandona a pura descrição das sensações do poeta em relação à amada, de conteúdo sensual, para encetar uma canção elevada, descritiva das virtudes da amada. Chega-se então a uma “canção nova”, e a uma “vida nova”. Por isso, a “Vita “Nuova” pode ser lida também como uma ‘teoria da lírica”, entendia como o despertar de uma consciência do sujeito lírico.
Além disso, “Vita Nuova” é considerada o primeiro livro em prosa vernacular, dado que na época de Dante ainda predominava o latim na literatura europeia. E mais, trata-se de um marco e, talvez, do próprio nascimento da lírica moderna.
Após a “Vita Nuova”, Dante escreveria ainda “O Convívio”, que consiste numa série de comentários a algumas canções (canzoni) por ele também compostas, e que assume caráter tratadístico, dado a sua orientação erudita para as reflexões de natureza filosófica, teológica, moral, polícia e linguística.
O poeta florentino ainda escreveu o “De vulgari eloquentia”, um ensaio acerca da linguagem poética, onde a preocupação maior parece gravitar em torno da identificação das formas e dos estilos linguísticos mais apropriados à criação poética. Dante investiga, entre outras coisas, qual seria o idioma mais adequado à poesia, que ele conclui se tratar do florentino, mas um florentino que ainda viria a ser, a partir de uma contribuição que partiria de sua própria literatura.
Por fim, Dante redigiu o “De Monarchia” em língua latina. Trata-se de um tratado de ciência política, onde a tese principal recai sobre a necessidade de o mundo ser governado por um único imperador, ao qual estariam subordinados os príncipes de cada estado, o que levaria ao fim das guerras, dado que todo o território conhecido estaria sob o jugo de um único imperador, não havendo motivo disputas territoriais. Além disso, o poder espiritual deveria ser a única competência da Igreja, ao passo que o poder temporal seria destinado ao Imperador.
O conhecimento das obras de Dante que precederam a Comédia permite ver a evolução do estilo e dos temas enfrentados pelo poeta ao longo de sua vida. Esse constante aperfeiçoamento resultou em um estilo elevado, eminentemente figurativo e profundamente reflexivo, cuja expressão máxima é a “Comédia”.
A “Comédia” mostra que Dante dominava quase todo o saber sistematizado durante a Idade Média, que nada mais era do que um amálgama entre a sabedoria produzida pelos clássicos e pelos cristãos eruditos. Fala-se que a Comédia representa a “suma poética do conhecimento da época”.
O fato de Dante ter nascido em uma época de efervescência cultural, política e econômica, em uma das cidades mais ricas e cosmopolitas da Europa, marcou profundamente o caráter vanguardista de sua obra. A sua poesia reafirma, sim, o mundo medieval e toda a sua cultura, sem dúvida. Mas certamente é também um germe para a modernidade, e constitui-se em verdadeira expressão do renascimento italiano, sobretudo se admitirmos (como fazem importantes historiadores) que o renascimento foi um “fato medieval”.
Por fim, ler Dante passa necessariamente por ler a “Comédia”.
A “Comédia” é muitas coisas. O seu caráter multifacetado, infinito e indefinível não permite conceituá-la sem o risco de negligenciar as suas muitas “beiradas”.
Ela pode ser vista como uma catedral gótica - metáfora muito comum quando se trata da “Comédia” - dada a sua grandeza monumental e sua arquitetura precisamente calculada.
Mas a sua estrutura revela muito pouco acerca do “enigma” nela contido. Seria ela uma “profecia”? Trata-se de ficção ou realidade? Foi um sonho ou um lampejo de lucidez?
O próprio Dante apontou para um possível sentido meramente literal da “Comédia”: “o estado das almas depois da morte”. Entretanto, também indicou o seu poder alegórico enquanto poesia moralizante (cf. epístola endereçada a Cangrande Della Scala).
Borges afirma que “Há uma primeira leitura da Comédia; não há uma última, já que o poema, uma vez descoberto, segue-nos acompanhando até o fim; o mais gasto e repetido dos tercetos pode, uma tarde, revelar-me quem sou ou o que é o universo. (Jorge Luis Borges, em “Obras Completas”).
A Comédia é uma ponte entre o terreno e o divino. Traduz bem o braço humano indo ao encontro do braço de Deus na pintura de Michelangelo sobre o teto da Capela Sistina. Há um amálgama entre formas inferiores e formas superiores, entre o chão e o sublime. Nessa medida, parece flertar com a doutrina origenista. Orígenes apregoava a apocatástase, isto é, um processo de aperfeiçoamento espiritual que se estenderia por eternidades rumo a uma unidade absoluta com Deus: esse parece ser o caminho de Dante pelos três mundos, e, numa imagem mais ampla, o de toda a humanidade.
Boas leituras!