gleicepcouto 10/09/2012Fios de Prata: onde a fantasia encontra a realidadewww.murmuriospessoais.com
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Raphael Draccon, além de autor, é roteirista e responsável pelo selo Fantasy (da Editora Casa da Palavra, Grupo LeYa). Como escritor, é mais conhecido pela trilogia fantástica Dragões de Éter (LeYa), que já vendeu milhares de exemplares. Suas obras também já foram publicadas fora do país.
Dessa vez, ele 'ataca' com Fios de Prata - Reconstruindo Sandman (LeYa), contando a história do jogador de futebol brasileiro mega famoso, Mikael Santiago, mais conhecido como Allejo. O atleta, que está prestes a fechar uma negociação de valor estratosférico com o Paris Saint-Germain, conhece a ginasta, também brasileira Ariana, e logo se apaixonam. O que Allejo não fazia ideia, entretanto, era que os dois fariam parte, cada um à sua maneira, de uma batalha onírica nunca antes vista.
Tudo porque Morpheus, ao passar a perna em Madelein, Senhora dos Sonhos Despertos, ganhou a atenção dos sonhadores terrestres, causando rebuliço entre outras entidades, inclusive os próprios irmãos Phobetor e Phantasos. Madelein aproveita esse desequilíbrio para levar adiante um desígnio que não somente era seu, mas que também fazia parte de um propósito maior.
O problema é que, em meio a tantas divergências, uma iminente guerra irrompeu pelo Sonhar, e Allejo embarcou em uma viagem à procura de sua amada, mas também do seu próprio eu, enfrentando suas várias facetas e medos. Além, claro, de alguns demônios no meio do caminho.
A leitura de Fios de Prata foi uma experiência diferente. Sabe quando você começa um livro pensando A e termina pensando B? Foi exatamente isso que aconteceu comigo. Uma história que, para mim, começou um pouco intricada; mais para frente, começou a fluir.
Acredito que parte dessa resistência inicial à história tenha relação direta com o casal protagonista. A escolha de retratar atletas, eu achei até interessante (diferente), assim como suas personalidades bem elaboradas. O que não vi em Mikael e Ariana, entretanto, foi química. Não consegui visualizá-los como um casal apaixonado. Na verdade, a história de amor deles se desenvolveu em uma velocidade/intensidade que me incomodou. Mas vá lá, o amor motiva as pessoas a lutarem contra as oposições e, "irem até o inferno" por elas; como propõe o livro.
Mas ainda bem que o Fios de Prata não é apenas um romance entre um jogador de futebol e uma ginasta. Não somente. Então, o foco é outro. E esse 'outro', Draccon desenvolveu muito bem.
Não dá para passar despercebida a estrutura milimetricamente pensada em Fios de Prata. No livro, além de encontrarmos os estágios da 'Jornada do Herói' (Um 'viva' a Joseph Campbell, por favor.) , percebemos a organização do plot com bastante clareza. (Vocês não fazem ideia de como quase choro de alegria quando vejo esse cuidado em livros nacionais.) Os pontos de virada também estão lá, bonitinhos. O (plot) twist ending, inclusive, merece uma menção honrosa. (Olha eu aí, já imaginando uma adaptação para a tela grande.)
Se consigo visualizar uma adaptação, com certeza, é porque a narrativa é eficiente. Draccon é minucioso nas descrições, às vezes, parecendo ter algum tipo de TOC. Particularmente, não me incomodo. Gosto de descrições apuradas, que tenham a capacidade de nos transportar para aquele mundo. Na verdade, em fantasia, considero esse atributo indispensável. A única ressalva que faço aqui tem relação com as cenas da guerra em Sonhar. Considerei a batalha, em si, extensa, na medida que Mikael ainda se preparava para entrar em cena. Apesar de entender as razões dessa narrativa, por vezes, a impressão que tive era de que a guerra não saia nunca do lugar, na mesma proporção que Mikael demorava a aparecer pra resolver a situação. (Ansiedade. Oi?)
A parte de pesquisa de Fios de Prata é algo monstruoso e aqui, um momento pra palmas. (Clap, clap, clap!). Draccon, visivelmente, dedicou muitas horas para pesquisar mitologia, filosofia japonesa, cristianismo, cultura pop, fatos reais. Pode parecer confuso, né? Mas não é, e acho que deu muito certo. Gostei do modo como os elementos tradicionais de mitologia (Deuses como Hypnos, Thánatos, Morpheus, Phobetor e Phantasos), cristianismo (Jesus Cristo, Dimas, Agesta) e cultura japonesa (Masamune) se 'fundiram' a assuntos contemporâneos e reais, tanto no âmbito cultural (U2, J K Rowling, Neil Gaiman) quanto no social (através das diversas menções a catástrofes – uma delas, por exemplo, o caso do índio queimado vivo por playboys, em Brasília). Draccon conseguiu harmonizar realidade com a fantasia e como esses mundos interagem, sem soar esquizofrênico, e isso é pra poucos. Como a batalha é travada entre os irmãos que representam todas as personificações dos sonhos, tudo pode acontecer e todo tipo de seres participam dela. Então há elfos, dragões, feiticeiras, orcs, basilisco e guerreiros para todos os gostos.
Sobre a linguagem na obra, considerei interessante o uso de recursos gráficos como onomatopeias e negrito, itálico e caixa alta, para dar ênfase em algumas palavras. (Confesso que não me habituei ao uso de reticências para indicar silêncio nos diálogos.) Por outro lado, o ‘sotaque’ sulista da ginasta, demonstrado através de certas expressões, me irritou. Entendo que é interessante sair do eixo RJ-SP, que o Brasil é enorme, que mostrar as diferenças é bacana e todo esse blablabla. Não é questão de preconceito linguístico meu, mas de achar que o modo da personagem se expressar deu um ar caricato à Ariana.
Em relação à parte gráfica, sem comentários. A capa é belíssima, ilustração do genial Kentaro Kanamoto - responsável também pela ilustração da capa de Ruas Estranhas (Fantasy). Simplesmente é a capa mais bonita dentre os livros nacionais lançados esse ano. Fato.
Mas não só de uma capa bonita se faz um bom livro, certo? E Draccon sabe disso. Tanto que Fios de Prata é um livro coeso, com início, meio e fim; enredo atraente, com estrutura e pesquisa impecáveis. Falem bem ou mal dessa nova geração de autores nacionais, o fato é que os itens aqui expostos, para mim, somente confirmam que o autor merece o lugar de destaque que tem na literatura nacional atual.
Avaliação: (Muito Bom)
Autor(a): Raphael Draccon
Editora: LeYa
Ano: 2012
Páginas: 352
Valor: $25 a $40