Antonio Cesar 19/10/2020
Meu primeiro contato com a autora deu-se ao final da leitura da obra do teólogo espanhol Andrés Torres Queiruga, Repensar o mal, que já ao seu final reproduz um trecho do diário de Etty relativo ao dia 12 de julho de 1942. Mesmo não conhecendo nada a respeito da autora, e envolvido pela árdua leitura do teólogo espanhol, Chorei. Reli o trecho diversas vezes e até hoje me emociona sua leitura. Fiquei naquele momento muito impressionado, de como aquelas poucas linhas tornaram cristalinas para mim a mensagem central que teólogo desenvolveu em sua obra. Chega a me dar uma tristeza saber que uma obra tão importante, tanto para saber um pouco mais sobre o tema holocausto, apesar de o diário de Etty não tratar especificamente desta questão, como para acessar a profundidade da espiritualidade da autora, ser, salvo melhor juízo, tão pouco conhecida e divulgada. E, para incentivar aos que lerem estas linhas procurem ler todo o diário de Etty, transcrevo aqui o que ela escreveu em seu diário:
Do Diário de Etty Hillesum.....
Oração da manhã de domingo.
[12 de julho de 1942]
São tempos assustadores, meu Deus. Esta noite, pela primeira vez, fiquei acordada, deitada no escuro com os olhos ardendo e muitas imagens do sofrimento humano passavam diante de mim. Uma coisa eu prometo, Deus, uma insignificância: não deixarei que minhas preocupações com o futuro pesem sobre o dia de hoje; isso, no entanto, exige certa prática. Cada dia agora já é bastante em si mesmo. Hei de ajudar-te, Deus a que não me abandones, mas não posso assegurar nada com antecedência. Mas uma coisa se torna cada vez mais clara para mim: Que tu não podes nos ajudar, mas que nós mesmos temos de te ajudar e com isso ajudamos a nós mesmos. E essa é a única coisa que podemos salvar nestes tempos e também a única coisa que importa: um pedacinho de ti dentro de nós, Deus. E talvez também possamos ajudar a exumar-te nos corações aflitos de outros. Sim, meu Deus, parece que não podes fazer muito em relação às circunstâncias, elas afinal também são parte desta vida. Também não te chamo à responsabilidade, tu poderás nos chamar a responsabilidade mais tarde. E torna-se mais claro para mim a quase cada batida de coração: que não podes nos ajudar, mas nós devemos te ajudar e que temos de proteger até o último instante a marada onde resides em nós. Há pessoas, é bem verdade, que até o último momento colocam aspiradores de pó e talheres de prata em segurança, em vez te ti, meu Deus. E há pessoas que querem pôr em segurança seus corpos, que são apenas alojamento de milhares de medos e amarguras. E dizem: “A mim eles não terão em suas garras”. E esquecem que ninguém está nas garras de ninguém quando está nos teus braços. Já começo a ficar mais calma de novo, meu Deus, graças a esta conversa contigo. No futuro próximo ainda terei muitas conversas contigo e dessa forma te impedirei de fugir de mim. Uma hora ou outra terás tempos mais minguado sem mim, meu Deus, em que não serás tão vigorosamente alimentado por minha confiança, mas acredita-me, continuarei a trabalhar para ti e te serei fiel e não te expulsarei do meu torrão.
Tenho forças suficientes para o grande sofrimento heroico, meu Deus, no entanto são mais os milhares de preocupações diárias que às vezes saltam sobre nós como parasitas implacáveis. Enfim, por enquanto coço um pouco e digo a mim mesma todos os dias: para o dia de hoje está tudo em ordem, as paredes protetoras de uma casa hospitaleira cobrem seus ombros como uma peça de roupa muito usada, familiar, há comida suficiente para hoje e sua cama com lençóis brancos e cobertas quentes está outra vez esperando para esta noite, portanto, hoje você não pode perder nem um átomo de energia com suas pequenas preocupações materiais. Use e gaste cada minuto deste dia e transforme-o num dia produtivo, mais uma pedra forte na fundação sobre a qual nossos futuros dias de privação e medo ainda possa se apoias um pouco.
O jasmim atrás de casa agora está completamente destruído pelas chuvas tempestades dos últimos dias, a floração branca flutua espalhada pelas negras poças lamacentas sobre o teto baixo da garagem. Mais em algum lugar dentro de mim o jasmim continua a florescer imperturbável, tão exuberante e delicado como sempre floresceu. E espalha seu perfume pela morada onde habitas, meu Deus. Vês como cuido bem de ti? Não te trago apenas minhas lágrimas e apreensões, trago-te nesta manhã de domingo tempestuosa e cinza até mesmo o perfume de jasmim. E te trarei todas as flores que encontrar no meu caminho, meu Deus, e realmente são muitas. Estarás tão bem quanto possível comigo. E apenas para citar agora um exemplo ao acaso: quando eu estiver trancada numa cela e uma nuvem pairar diante da pequena janela gradeada, então eu te trarei aquela nuvem, meu Deus se ao menos ainda tiver forças para isso. Não posso assegurar nada antecipadamente, mas as intenções são as melhores, isso tu percebes.
Agora vou me abandonar a este dia. Vou encontrar muitas pessoas hoje e os rumores maldosos e ameaças voltarão a me assaltar assim como soldados inimigos a uma fortaleza inexpugnável.