spoiler visualizarAbduzindolivros 16/06/2023
Algo terrível aconteceu numa casa, e o véu que separa o mundo dos vivos e dos mortos afinou. Nas paredes em ruínas, os mortos deixam suas mensagens: fragmentos de histórias, obscenidades, recados, assuntos mal-acabados. Mary Florescu, uma professora universitária, busca provas de que existe vida após a morte utilizando os serviços de um médium charlatão, o jovem McNeal, suposto intermediário dos mortos.
E, se querem mesmo saber, existe vida após a morte, e na pele do jovem McNeal os mortos escreveram seu livro, um livro feito de sangue, e nós podemos ler suas histórias.
Esses são os Livros de Sangue do Clive Barker, coletâneas de contos de horror divididos em seis volumes, que é para fazer o leitor entrar num esquema de pirâmide desgraçado porque a gente simplesmente não consegue parar de olhar para o indizível, o formidável, o desnude dos segredos dos mortos. No Vol. 1, temos seis contos que não são interligados entre si, exceto pela ideia de estarem marcados na pele de McNeal, e contarem histórias que transcendem o mundo banal que conhecemos, histórias que trazem a interação dos humanos com demônios e seres muito antigos, tudo regado a muito sangue, torturas, sexo.
Eu tenho gostado muito da escrita do Barker, que entrega o horror de uma forma poética, levando-nos a não conseguir desgrudar os olhos das vísceras e corpos virados do avesso, a sentirmos nas nossas veias essa dicotomia entre o belo e o terrível. É como parar numa autoestrada perto de um acidente de carro: você sabe que terá pesadelos, mas é incapaz de tirar os olhos dos destroços moídos e dos miolos grudados no asfalto. São contos que falam sobre violências cotidianas (abusos, guerras, sistema opressor, etc.) nos quais não prestamos mais atenção, a menos que venham com essa roupagem sobrenatural que dá um tranco na nossa mente embotada.
A repulsa não te faz virar a cabeça e correr para o outro lado, ela atrai, como fez com Kaufman no Trem de Carnes da Meia-Noite. Alguns contos dessa coletânea são obras-primas, como ?O Livro de Sangue? e ?Nas Montanhas, as Cidades?; começam mostrando as banalidades de uma vida comum e suas paixões, e terminam revelando o que há por baixo dos panos da realidade, situações que alteram a sanidade dos personagens e os fazem morrer de loucura. Não é mais possível voltar para uma vida comum depois de ver certas coisas: você muda para sempre, ou acolhe a morte porque não há outra salvação.
Outra característica que gosto muito é o humor sarcástico do Barker. Ele sabe equilibrar muito bem a violência dos temas com piadas ácidas e muito engraçadas pelo meio. Contos como ?O Yattering e Jack? me arrancaram umas gargalhadas, apesar de ser uma história sinistra; esse foi meu conto favorito. A mesma coisa aconteceu em algumas partes de ?Sexo, Mortes e Estrelas?, com uns trechos fabulosos elevando o tom do conto, que é meio previsível e morno (apesar de ter pegado fogo no final), mas compensa porque narrou um dos melhores boquetes que já li na vida.
Um conto que não me agradou muito foi ?O Blues do Sangue de Porco?, porque o tempo todo ele prometeu algo realmente repulsivo e perturbador, num nível que eu estava esperando já no primeiro parágrafo e que foi reforçado a partir de uma descrição sexualizada de uma porca (o animal, mesmo), mas não entregou. Com certeza eu me sentiria muito mal se as coisas estivessem descambado para os horrores que eu esperava, porém, era o que eu esperava. E o Barker deixou a crítica dele ali, no limite, e não entregou o choque que eu senti que viria.
No geral, é um livro muito bom, rápido de ler, tem aquele horror bagaceira que eu amo, é nojento, perturbador, formidável e bem-humorado (assim como foi a leitura de Evangelho de Sangue). Os contos capturam a atenção logo no início; tem uns começos feitos para serem lidos em voz alta de tão bonitos que são, por causa da escolha de palavras, do ritmo, da criatividade das ideias e, óbvio, do humor.
É gostoso demais, com certeza vou querer ler os próximos livros de sangue, até porque eu espero um desfecho para a história iniciada com McNeal e Florescu. Essa ideia de histórias gravadas na pele de alguém me remeteu ao Homem Ilustrado do Bradbury, o qual teve início e fim no livro de contos; então, de alguma forma, eu tenho a expectativa de ver mais sobre esse garoto marcado pelos mortos e a mulher que o acolheu para ler as histórias em seu corpo. Espero que role nos próximos, porque eu caí no esquema de pirâmide kkkkk agora terei que comprar e ler todos os outros Livros de Sangue (são 4 publicados no Brasil pela Darkside, por enquanto), então estou lascada, mas vamos que vamos kkkkk
É um livro lindíssimo, muito bem diagramado, com detalhes e ilustrações caprichados, uma fonte que considero confortável, foda. Cada história também conta com uma ilustração e uma frase de algum autor célebre remetendo ao tema ? detalhes que enriquecem a experiência. Só achei a primeira página de cada conto um pouco desconfortável para ler, por serem vermelhas com a fonte branca, mas nada que não dê para relevar em nome da beleza.
Recomendo, recomendo sim, galera, vão fundo que é bagaceira das boas. Foi muito legal ter lido, ainda mais que não li sozinha ? a companhia da @ladybook.me deixou tudo melhor, então pegue aí sua duplinha e bora ler também!