spoiler visualizarGabriel Capelin 26/01/2023
Essencial
Vou começar dizendo que esse é de longe um dos melhores livros que eu já li na vida.
Mark Twain foi brilhante em sua forma de se expressar e passar praticamente uma navalha no ego humano. Ele conseguiu aqui unificar a ideia de alguns vários outros autores e criticar de forma precisa dois grandes pontos que sempre rodaram em torno da humanidade, sendo eles o nosso senso de moralidade individual e social e, por consequência, nossas religiões e suas necessidades.
Tudo começa quando o personagem Satan é apresentado. Esse que inicialmente é um arcanjo, um ser livre do mau e de qualquer tipo de pecado. Esse que é capaz de ver o futuro de tudo é todos tão facilmente quanto consegue criar qualquer coisa com um simples pensar. Esse personagem, pouco a pouco, vai mostrando para o nosso protagonista o quão simples e frágil tudo relacionado a nossa vida e ambições são. Ele muda destinos, mata e condena pessoas, enriquece umas e empobrece outras, tudo para provar o seu ponto. Ele mostra que o homem é humanamente incapaz de diferenciar o que de fato é bom e o que é ruim. Que o homem é incapaz de admitir a própria efeméridade, vulnerabilidade e insignificância. Coloca-nos perante a meros e minúsculos animais e mostra-nos o quão distante estamos um do outro. Mostra que o homem é para o divino tão distante quanto uma formiga é para um imenso elefante.
"Inspirado por esse seu abastardado Senso Moral! Um senso cuja função é a de distinguir entre o certo e o errado, com liberdade de escolher qual deles praticará. Agora, que vantagem ele tira disso? Ele está sempre escolhendo, e nove vezes em cada dez ele prefere o errado. Não deveria haver nenhum errado. E, sem o Senso Moral, não haveria. Ainda assim, o homem é uma criatura tão irracional que não é capaz de perceber que o Senso Moral o degrada à camada mais baixa dos seres vivos e é uma posse vergonhosa.
[...] Eu disse que aquilo era uma coisa animalesca.
? Não, era uma coisa humana. Você não deve insultar os animais com o uso errado dessa palavra, eles não o merecem. [...] ? É como a sua raça mesquinha, sempre mentindo, sempre clamando virtudes que não possui, sempre negando essas virtudes aos animais superiores, que são os únicos que as possuem. Nenhum animal jamais fez uma coisa cruel... isso é monopólio daqueles que têm o Senso Moral. Quando um animal inflige dor, ele o faz inocentemente. Ele não está errado. Para ele não existe o errado. E ele não inflige dor pelo prazer de inflingi-la, só o homem faz isso."
Pouco a pouco após ir mostrando seu ponto relacionado a nossa modalidade, ele também ataca a nossa capacidade de nos mantermos fiéis aos nossos reais ideais e estarmos sempre inclinados a seguir a multidão. Sempre entrando em guerras e matanças, desonrando povos e tirando do outro coisas que nós não nos importamos verdadeiramente. Isso tudo simplesmente por seguirmos o barulho daqueles que gritam mais alto.
"? Nunca houve uma só guerra justa, nunca houve uma guerra honrosa por parte de quem a começa. Posso ver um milhão de anos no futuro e essa regra nunca mudará senão em meia dúzia de casos. O pequeno grupelho barulhento, como sempre, vai gritar por guerra. O clero, de início, vai objetar, desconfiado e cauteloso. O grosso da nação, imenso, grande e tolo, vai esfregar os olhos sonolentos e tentar imaginar porque deve haver uma guerra e vai dizer, sério e indignado: ?A guerra é injusta e desonrosa, e não temos necessidade dela.? Aí o grupelho vai gritar mais alto. Uns poucos homens justos no lado oposto vão argumentar e raciocinar contra a guerra, com discursos e palavras impressas, e de início terão plateias e aplausos. Mas isso não dura muito. Aqueles outros vão gritar mais alto do que eles e logo as plateias antibélicas minguam e perdem popularidade. Antes de muito tempo, você verá esta coisa curiosa: oradores apedrejados nas tribunas e a liberdade de palavra estrangulada por hordas de homens furiosos que, no segredo de seu coração, ainda estão em unidade com aqueles oradores apedrejados, como antes, mas não ousam dizer isso. E agora toda a nação, clero e tudo, aceitará o grito de guerra e gritará até ficar rouca, atacando qualquer homem honesto que se atrever a abrir a boca. E logo tais bocas deixarão de se abrir. Depois os políticos inventarão mentiras baratas, jogando a culpa na nação que será atacada e cada homem ficará feliz por essas falsidades que lhe tranquilizam a consciência, as estudará diligentemente e se recusará a examinar qualquer outro ponto de vista. Assim, pouco a pouco, se convencerá de que a guerra é justa e agradecerá a Deus pelo sono melhor que desfruta depois desse processo de grotesco auto-engano."
E com toda essa crítica precisa sobre nossa existência, Satan também traz o magnífico plot do final, mostrando que, por mais que nós fingimos acreditar no divino, não existe uma real lógica por traz disso. Tudo sempre foi uma roda de punição para os seres humanos criada pelo próprio ser humano. É uma roda que sempre nos joga para baixo.
"Estranho, na verdade, que você nunca tenha suspeitado que este Universo e seu conteúdo fossem apenas sonhos, visões, ficção! Estranho, porque eles são tão franca e histericamente insanos, como todos os sonhos: um Deus que pudesse fazer bons filhos com tanta facilidade quanto os faz maus, e ainda assim preferisse fazer os maus. Que pudesse tornar feliz cada um deles e, ainda assim, nunca fizesse feliz um só deles. Que os fizesse dar valor à sua vida amarga e, ainda assim, a encurtasse dolorosamente. Que deu a seus anjos uma imerecida felicidade eterna e, no entanto, exige que seus outros filhos se tornem merecedores dela. Que deu a seus anjos uma vida sem dor e, contudo, amaldiçoou seus outros filhos com amargas tristezas e doenças da mente e do corpo. Um Deus que fala de Justiça, e inventou o Inferno. Fala de Misericórdia, e inventou o Inferno. Fala das Regras de Ouro e do perdão multiplicado por setenta vezes sete, e inventou o Inferno. Fala de Moral para os outros e não tem nenhuma Ele próprio. Franze o cenho diante dos crimes, mas comete todos os crimes. Que criou o homem sem lhe ser pedido, e depois tenta transferir a responsabilidade dos atos humanos ao homem, em vez de honradamente colocá-la no lugar que lhe cabe: em Si mesmo. E finalmente, com absoluta obtusidade divina, convida esse pobre e abusado escravo a adorá-lo!...
[...]
É verdade o que eu lhe revelei. Não há nenhum Deus, nenhum Universo, nenhuma raça humana, nenhuma vida terrena, nenhum Paraíso, nenhum Inferno. É tudo um sonho, um sonho grotesco e tolo. Nada existe a não ser você. E você nada mais é que um pensamento. Um pensamento andarilho, um pensamento inútil, um pensamento sem lar, peregrinando desesperado pelas vazias eternidades!"
E assim termina essa essencial obra.