Antonio Luiz 02/10/2013
De volta ao imaginário brasileiro
Com a antologia "Brasil Fantástico: lendas de um país sobrenatural", o Clube de Leitores de Ficção Científica (CLFC, presidido por Clinton Davisson), quis promover, em parceria com a Editora Draco, a redescoberta do imaginário brasileiro. A edição, com ilustrações que lembram literatura de cordel, foi esteticamente criativa. O planejamento da antologia deixou, porém, a desejar. Na maioria, os contos vão de regulares a bons, mas um punhado deles se mostra um tanto repetitivo quanto às lendas escolhidas, os cenários e a abordagem. Em especial, um excesso de tentativas de transformar criaturas folclóricas tradicionais em monstros de terror trash, mesmo quando são muito inadequados para esse papel, como o curupira e o boto. O resultado é um painel do folclore brasileiro menos rico do que se poderia esperar de um conjunto de 11 contos.
O conto de abertura, "A Copa dos Mitos", se destaca de todos os outros em três aspectos: o cenário é urbano e moderno, a perspectiva é infantil e explora mitos menos batidos. Um garoto marginalizado pelos coleguinhas por se interessar pelo folclore brasileiro e não ter boas cartas de Pokémon e Yu-Gi-Oh é convidado pelo Barba Ruiva (papão do folclore do Piauí) a assistir à “Copa dos Mitos”, na qual diferentes mitologias se enfrentam numa arena até a morte virtual em nome de seus países. A equipe brasileira, com entidades como o Minhocão, Gorjala e o Arranca-Línguas, enfrenta o poderoso time da Noruega, que inclui Odin, Loki e Thor. Com poucas chances de vencer, os brasileiros aceitam a orientação técnica do menino. A maior ressalva a esse conto é ser mais ingênuo e ufanista que o necessário, apesar de o autor, o professor Christopher Kastensmidt, ser um estadunidense residente no Brasil. Amostra:
"Thor deu um olhar de desprezo para a Noiva de Branco, parecendo à beira de um ataque de risos. Ela, por sua vez, nem sequer tirava os olhos do chão. Por fim, jogou seu martelo sem olhar, num gesto teatral. O martelo produziu um estrondo enquanto voava em direção a seu alvo, mas a Noiva de Branco transformou-se em um ponto de luz brilhante no último momento e o martelo passou por ela, parando subitamente e retornando ao seu dono. A multidão gritou em aplausos, e Thor só pôde coçar o queixo e planejar sua próxima jogada."
"O Filho da Mata", da contadora (de créditos, débitos e histórias) sul-mato-grossense Andreia Kennen, tem um cenário também atual, mas rural, localizado no Mato Grosso do Sul. Um rapaz sensível, que sofre bullying de seu grosseiro meio-irmão agroboy ao se encontrarem para passar um feriado na fazenda do pai, tem um encontro com o Curupira, a figura mais recorrente desta antologia. Faltou habilidade para caracterizar os personagens de maneira mais viva, menos carregada de clichês e juízos de valor, mas o conto vale pelo tratamento simpático do mito e da homossexualidade. Amostra:
"Porém, para o irmão mais velho, a literatura, a música ou até mesmo a área de tecnologia eram conhecimentos inúteis para quem herdaria uma fazenda. Certa vez, chegou a argumentar que preferia seguir a área da mãe: ser educador. Aquilo eriçou o irmão mais velho, que imediatamente retrucou:
“Tá vendo, velho? Esse aí tá querendo ser a filha que o senhor não teve!”."
Do engenheiro português João Rogaciano, "Entre Conspirações e Monstros Mitológicos" é a única história a não se passar no Brasil, mas numa vinícola madeirense supostamente invadida por um Boitatá ou pelo Cavalum, uma figura do folclore local. Um detetive contratado para investigar os estragos descobre, por trás da suposta abantesma, uma conspiração contra uma conhecida figura da realeza europeia. À parte a pouca verossimilhança de um investigador misto de Sam Spade com Philip Marlowe prosperar na pequena, empobrecida e pacata Ilha da Madeira do final do século XIX, não é um conto policial ruim, mas o folclore brasileiro entra nela como Pilatos no credo: mero pretexto para se encaixar na antologia. Amostra:
"Aproveitei para lhe dar mais uns sopapos. Acabou por ter um avivamento de memória e informou ter ouvido falar de que iria ser assassinada uma visita real, num jantar no centro de produção do vinho Madeira. A ideia era arruinar a paz na Europa e, ao mesmo tempo, desacreditar a casa real portuguesa."
O doutor em computação gaúcho A. Z. Cordenonsi contribui com "A Mula do Cavaleiro Neerlandês". O conto é ambientado em 1829 numa imaginária “Holambra Sulista”, colônia holandesa na Serra Gaúcha. Todos os personagens, com exceção do protagonista, ex-escravo alforriado que prospera como tropeiro, são holandeses. Estranha opção, pois imigrantes holandeses só chegaram ao Brasil bem mais tarde e nunca nessa região. Esse e outros detalhes fora de lugar só fazem sentido quando o leitor se dá conta de que o que parece ser uma variação do tema da Mula sem Cabeça (incongruente, pois pastores da igreja reformada, ao contrário de padres católicos, não fazem voto de celibato) é uma adaptação de um conhecido filme de Tim Burton, baseado num conto de Washington Irving ambientado no interior do estado de Nova York (este sim, com forte colonização holandesa) em 1799. Amostra:
"E ali, no meio da Rua do Comércio, meio escondido entre as touceiras altas, havia alguém gemendo e babando, envolto em trapos, tão sujo quanto um cão sarnento. Não levou mais do que um segundo para Zé Tropeiro reconhecer aquele que fazia tão triste figura.
– Anton Van de Water! – gritou o velho Yohannes, irritado, segurando uma bengala de modo nada amistoso. –Bêbado desgraçado! Pra que tinha que acordar a Vila inteira, filho de uma mula?"
Deve-se ressalvar que a narrativa de Cordenonsi é convincente, viva e fluente o suficiente para que se perdoe o transplante forçado e mal aclimatado. Não é tanto o caso dos demais contos que apostaram no terror brutal, menos hábeis com a linguagem e a construção do suspense. O primeiro destes é "Amaldiçoado", do estudante paulista de computação Allan Cutrim (18 anos). Ambientado numa vila interiorana genérica e numa época indefinida, é uma história de ódio entre um menino e seu pai que envolve vários mitos – Pisadeira, Corpo Seco, Boto, Lobisomem e Xandoré (demônio indígena amazônico). A narrativa um tanto monótona e as situações e caracterizações pouco convincentes diluem a tensão e violência. Amostra:
"Meu pai chegou. O carrasco, cheirando a uísque. Isto parece acontecer desde sempre. Ele chega, minha mãe nos tranca e pede para não tentarmos sair e eles discutem. Não, discussão é pouco. Sempre gritam mesmo. Quando ele chega assim, parece que sempre tem algo pra ser discutido. Eu ouço uma pancada, parece ter acertado em mim mesmo e destruindo o pouco de calma que ainda tinha. Depois vêm os gritos, ainda mais altos".
Segue-se "Brasil, Terra Amaldiçoada", do psicólogo, escritor e roteirista paulista Mickael Menegheti, talvez o conto menos satisfatório da antologia. Descreve espanhóis que buscam o Eldorado em 1500 (embora na história real essa busca tenha começado décadas depois) e são brutalmente assassinados, juntamente com muitos índios, por um ser demoníaco que vem a ser o Curupira, embora haja muitas entidades mais adequadas a esse papel no folclore amazônico. A descrição dos indígenas, do rio Amazonas e da região são tão estereotipadas e imprecisas quanto poderia ser uma história escrita por um estrangeiro que jamais tivesse pisado no Brasil e a narrativa soa falsa, teatral demais para ser assustadora. Amostra:
"Ao ver que a margem direita do rio estava infestada de selvagens e a margem esquerda estava quieta, muito quieta, meu coração pressentiu o mal. Devia ter dado ouvidos às minhas intuições e avisado o capitão. Aquela margem estava quieta demais!"
A jornalista, escritora e artista plástica carioca Maria Helena Bandeira escreveu "A Sacola da Escolha". É mais um conto ambientado na Amazônia moderna, entre caboclos mais ou menos aculturados. A história envolve a Boiuna ou Cobra-Grande, iaras, amazonas, o Boto, o Curupira e o Saci e ao longo dela o protagonista recupera sua identidade indígena. É uma narrativa crível e bem trabalhada e faz um uso mais inteligente e apropriado do folclore, apesar de um tanto convencional no que se refere a comportamentos e padrões de beleza. Amostra:
"Nenhuma mulher resiste ao Boto, rei dos leitos amazônicos, senhor de todas as ximbicas em brasa, deflorador de donzelas, emprenhador de moças bonitas, caçador de corações. Quando sorri para uma cabocla, ela está perdida para sempre. Nunca mais achará prazer no leito conjugal, nunca mais achará um amante como ele, o inesquecível rei das madrugadas brancas da paixão.
As icamiabas ficaram como estátuas e os homens também pararam, enquanto o Boto, sempre rindo, veio se chegando para junto delas. Parou diante da diaba loura, e sem dizer palavra, acariciou seu cabelo curto de guerreira. Ela baixou a cabeça, uma lascívia imensa se apoderando do corpo, e gemeu, para espanto dos caboclos e temor das outras mulheres. O Boto segredou coisas ao seu ouvido, ela riu, e enquanto ele enlaçava sua cintura, ordenou em voz febril que soltassem os homens e deixassem Turuaçu levar o Muiraquitã."
Com "A Voz de Nhanderuvuçu", do profissional da computação paulista Marcelo Jacinto Ribeiro, se retorna à Amazônia e à violência. O contexto histórico é o ano de 1950 de uma história alternativa aparentemente Dieselpunk, alguns anos depois de uma Grande Guerra, no qual agentes a serviço de um grupo britânico usam um “dirigível mais pesado que o ar” e “cérebros eletrônicos” descritos com vagueza para tomar posse de uma jazida de platina descoberta em segredo perto de Almeirim, no Pará. Ao chegar, descobrem um obstáculo inesperado na forma de supostos curupiras e boitatás que assombram a cidade e sua vizinhança. Poderia ser mais interessante se os personagens não fossem tão chapados e se cada uma de suas falas não fosse um discurso longo, grandiloquente e inverossímil. Amostra:
"Jaguar manteve os olhos apertados, a face rígida como uma máscara. Falou com seriedade.
– Nasci e fui criado na selva, entre indígenas, mas isso é passado. Desde jovem estou nesta cidade, aprendi a ler e escrever com os padres, estudei e assimilei sua cultura. O índio dentro de mim está a serviço do branco, e não o contrário. Tudo o que disse na prefeitura foi para jogar um pouco mais de terror e medo no coração dos homens patéticos de Almeirim que me desprezam por ser um mestiço. Mas o senhor não sente isso, não é? Vejo que é um estudioso, conhecedor do mundo e suas maravilhas, está habituado com o diferente. Se continuar aqui em Almeirim, sei para sempre o mestiço, sempre marginalizado. Mas se puder ajudá-lo a resolver seu enigma, creio que ficará muito agradecido. E por que não me levar junto com vocês para outro lugar, onde posso conhecer novas maravilhas do mundo: Ninguém se preocuparia com a minha herança bastarda. Meu preço é baixo perto do que ofereço. Sou uma ponte, sr. Wesley, o único meio de atravessar de seu mundo para o outro. Então lhe pergunto pela última vez: quer fazer isso do jeito fácil ou difícil? Escolha!"
Vivian Ferreira, publicitária e escritora paulista que vive em Florianópolis, escolheu esta cidade, em tempos modernos, como cenário de "A Bruxa e o Boitatá". Recorre, é claro, a essas duas figuras folclóricas e trata-se de uma história menos violenta, que aposta, sem muito sucesso, no terror psicológico. O ponto mais fraco é a narradora e protagonista, uma figura pouco consistente e nada convincente. Supostamente é uma bióloga especializada em serpentes, mas isso é incompatível com sua idade de 23 anos (seria uma recém-formada sem experiência ou especialização, no máximo) e ainda mais com seu discurso, que soa quase todo o tempo como o de uma adolescente inculta e insegura.
"Seu Miro, desesperado, olhava-me com lágrimas nos olhos. Vi ali mais do que medo, via culpa, confirmada em suas palavras:
– Perdoe-me, não pude evitar! Sou um homem amaldiçoado! Ela me obrigou e...
– Ela quem? O que aconteceu? O que o senhor fez ao Thomas?
– Vou te contar tudo menina. O sol acabou de nascer e tenho mais alguns minutos de memória, livre das interferências da bruxa."
Com o conto "O Rapaz Misterioso", do estudante de letras mineiro Renan Duarte, voltamos à brutalidade e à Amazônia moderna ou de um passado relativamente recente, desta vez descrita de forma mais realista. O protagonista e narrador é um seringalista (senhor de seringais) que dominava um povoado, mas está morto desde o início. Sua história revela um Boto que ao contrário da figura simpática e sedutora do folclore, é um estuprador e assassino bestial. A linguagem é bem trabalhada, mas falha em criar um clima adequado, como a maioria dos contos deste volume que tentaram a abordagem do terror. Amostra:
"Desde então, a cada vinte e sete anos, a idade do rapaz que fora morto, o homem boto reaparece, arrancando as vísceras daquele que tem direito sobre a virgem para deixar nela um filho, que dará continuidade ao seu legado. Assim permanece viva a lenda, assim o povo diz, assim tem carne o mito, pela boca dessa gente, pelo quarto ciclo de vinte e sete anos que se cumpre agora, ao virar a meia-noite. Aqueles que acreditam, prepararam suas armas e guardaram suas filhas."
O conto "O Padre, o Doutor e os diabos que os carregaram", de Antonio Luiz M. C. Costa (o autor desta resenha) tem como cenário a mata atlântica da Bahia do final de um século XVI alternativo. Neste mundo paralelo, D. Sebastião é um soberano prudente e tolerante para com todas as religiões que transferiu sua capital para o Brasil. Ao participar de uma entrada em busca de riquezas no interior, o padre narrador e um médico judeu afastam-se da expedição para tentar contatar os misteriosos caaporas, que o primeiro teme se tratar de demônios e o segundo garante se tratar de um povo indígena ainda desconhecido. Ambos estão enganados e são forçados a recorrer a toda a sua dialética e engenhosidade para tentar entender com o que estão lidando e como poderão sair da encrenca em que se meteram. A linguagem procura emular a dos cronistas coloniais e o tom é de conto filosófico à maneira de Voltaire. Amostra:
"Estava eu ainda nessa posição quando senti uma mão no ombro. Mão de homem, não daquelas criaturas infernais. Era o doutor Sanches, de cócoras à minha frente, nu como eu.
– Como estás, padre Cardim? Elas te maltrataram? Estás ferido?
Suspirei.
– Enxovalharam-me o quanto puderam, doutor Sanches. Não me fizeram ao corpo nada que um médico tenha que curar, mas o que me fizeram à alma, só no outro mundo poderá ter consolação, que se Deus quiser, não há de tardar...
– Ora, ânimo! Não deixes teu espírito se abater, pois precisarás dele para sair destes perigos – tomou-me pela mão e fez-me levantar e caminhar. Os caaporas, ocupados com seus lazeres e afazeres, nos ignoravam ou olhavam sem interesse."