Henrique Fendrich 02/02/2023
Ao contrário de outros livros de João do Rio, em A alma encantadora das ruas há mais variação quanto à estrutura de suas crônicas, a começar pelo enorme texto que abre o livro, espécie de ensaio sobre a rua, mas cansativo, sem dúvida uma das principais razões para o alto índice de abandono de leitura do livro (8% no Skoob).
Tal ensaio, pela extensão, não se adéqua ao espaço jornalístico tradicional. Os demais textos são menores, mas, ainda assim, maiores do que as atuais crônicas. É que o espaço que João do Rio tinha nos jornais não era tanto o de cronista, mas o de repórter. E o que ele faz ao longo do livro é justamente uma crônica-reportagem, pois ele sai para a rua a fim de buscar as histórias e os ambientes com os quais irá preencher o espaço informativo que o jornal lhe oferece.
Às vezes, o resultado que encontra em suas explorações na rua é eminentemente humorístico: o material que reuniu nas crônicas “Orações” e “Tabuletas” é de fazer rir, a ponto de parecer até que ele, antecipando o nosso Stanislaw, organizava uma espécie de “festival de besteiras que assolam as ruas”. Por mais engraçado que sejam os exemplos e as conclusões a que João do Rio chega, porém, é interessante perceber que eles são argumentos desfavoráveis à rua.
João canta a rua no ensaio inicial, mas o conjunto das crônicas permite concluir que ele não é exatamente simpático ao que encontra nela – e, honestamente, há casos em que ele parece ser até hostil a ela, como ao desqualificar o tipo de literatura produzida na rua e o tipo de pessoa que lê esse material (há termos como “homens primitivos” e “gentalha”, por exemplo). A rua atrai e seduz o cronista, mas não necessariamente encanta ou deleita os seus sentidos.
É verdade que ele retrata muitas cenas e ambientes onde não poderia mesmo haver um sinal de deslumbramento. Que encanto poderia haver, por exemplo, entre os comedores de ópio, ou entre os miseráveis que abarrotam as hospedarias de má-fama? Grande parte daquilo que João do Rio registra em suas crônicas é composta de uma realidade dura, por vezes suficiente para desumanizar as suas vítimas, e o autor tem o mérito de chamar nossa atenção para isso.
Mas não significa que ele, necessariamente, simpatize com essas pessoas. A crônica de João do Rio é, também, a reportagem do jornal, não o texto descompromissado escrito em um rodapé da página, mas um material informativo de destaque, associado ao espírito noticioso, por mais que nele se sobressaiam os talentos literários do seu autor. Como um repórter, João do Rio é o “outro”, aquele que observa, registra, retrata, narra – mas não se confunde com seu objeto.
Algumas dessas reportagens são tão interessantes que mereciam ser reunidas em um livro próprio, como aquelas que escreveu sobre a vida dos presos. Mesmo nessas, porém, percebe-se o distanciamento do cronista em relação ao que retrata. É ele quem é capaz de apontar erros de ortografia em cartas de presos, ou de sugerir que algumas pessoas apresentam uma “visão superior do mundo” e que por isso estariam deslocadas no meio da “cloaca do crime”.
Essa sequência de crônicas sobre a prisão, se bem que apresente um painel que vale a pena conhecer, conta, aqui e ali, com alguns trechos que, no mínimo, envelheceram muito mal, com destaque para a insinuação, em “Crimes de amor”, de que as próprias mulheres vitimadas por maridos ciumentos seriam as “destruidoras” da vida dos homens. Pode-se alegar que essa era uma opinião da época, mas Lima Barreto já era muito mais simpático à causa das mulheres.
Também chama atenção, em sua crônica sobre pessoas em situação de rua, que praticamente não há, para ele, mendigos honestos, e mesmo os que eventualmente o sejam não deixam de ser, também, meros exploradores da própria miséria. De vez em quando, ele fala também em “massa ignorante” e chega a criticar os “versos falhos” das cançonetas populares, em opiniões que sugerem ser ele não apenas o “outro”, mas, na sua própria perspectiva, alguém “melhor”.
Mesmo assim, é claro, o autor pinta quadros interessantes e necessários, alguns bem tristes, como o dos velhos cocheiros, o das mariposas de luxo, o dos trabalhadores de estiva, nos quais, aí sim, sente-se que de alguma maneira ele se identifica ou se solidariza com as pessoas que retrata. Há ainda crônicas sobre pequenas profissões, sobre músicos ambulantes, sobre as pinturas das ruas, e nem sempre o estilo do autor permitiu que elas fossem de fácil leitura.