Arsenio Meira 13/07/2013
Memória, Perplexidade e Reflexão
O escritor chileno Roberto Ampuero tinha vinte anos em 1973, militava nas Juventudes Comunistas do Chile – a Jota – e sua escola política tinha sido a férrea defesa do governo da Unidade Popular, liderada por Salvador Allende.
Em setembro, o golpe liderado por Augusto Pinochet liquidou seus sonhos, causou a morte de milhares de chilenos, mas ele conseguiu escapar dos fuzilamentos.
Em 1974, foi para a Alemanha Oriental. Lá, teve um relacionamento com a filha do embaixador cubano em Moscou. Era um homem forte do regime de Fidel. Tão forte, que comandou dezenas de fuzilamentos e só andava com uma penca de seguranças, armados até os dentes.
As tramas do destino o levaram para a nova e abastada vida em Havana, nos braços da filha do comandante Ulises Cienfuegos. Viveu os primeiros anos nas entranhas do regime. Aos poucos, foi vendo o que não deveria ter visto e o desencanto o levou a colecionar inimigos.
Esses anos em Cuba se transformaram em um romance autobiográfico primoroso: "Nossos anos verde-oliva."
Ao ler, me veio à lembrança a blogueira e dissidente cubana Yoani Sánchez, que enfrentou hostilidades em sua recente passagem pelo Brasil. O livro de Ampuero é uma excelente oportunidade de ver uma outra Cuba, menos fascinante e revolucionária, com seu azeitado serviço de espionagem, capaz de identificar a menor fagulha crítica, além de episódios trágicos, como a perseguição aos homossexuais, artistas, escritores.
Outro item precioso é a descrição da vida cotidiana, os personagens, os impasses, como nos trechos abaixo transcritos:
“No apartamento reinava uma austeridade extrema: cama e criado-mudo nos dormitórios, dos sofás, quatro cadeiras, televisão e uma mesa na salinha, e geladeira chinesa, forninho e um rádio Zenith na cozinha. Mais nada. Como não havia lojas de produção para o lar, os cubanos equipavam suas casas com o que herdaram dos familiares – bens adquiridos em sua grande maioria antes da revolução”.
“(…) era difícil compreender a atitude de desprendimento de um povo que vivia em uma pobreza franciscana. Também para mim era difícil entender isso, principalmente quando me lembrava da atitude dos dirigentes, empenhados em tomar posse das mansões dos antigos ricos, conseguir melhores cargos e viajar para o exterior para desfrutar do consumo proibido na ilha”.
O livro começou a ser escrito em 1981, mas as anotações iniciais são dos anos 1970, quando Cuba era um país tão misterioso quanto a Coreia do Norte, quando não havia o grande fluxo de turistas de todo o mundo e o regime controlava rigidamente a população, para identificar qualquer ação da oposição no exílio.
Pela memória de Ampuero, conhecemos personagens como Heberto Padilla, o poeta maldito, silenciado e marginalizado, “cujos poemas eram lidos em segredo pelos jovens cubanos”, que foi resgatado da prisão por uma “montanha de telegramas de intelectuais do mundo inteiro”. Foi Heberto quem convenceu Ampuero a não cair na tentação de voltar ao Chile para aderir _a luta armada e tentar derrubar Pinochet.
Enquanto relia o manuscrito, o autor se pergunta o que leva um ser humano – “melhor dizendo, o que leva tantos seres humanos a condenar uma ditadura de direita e a celebrar ao mesmo tempo uma ditadura de esquerda?”.
“Que retorcido mecanismo mental os conduz a denunciar o abuso, a tortura, a marginalização, o escárnio, o exílio, a repressão e o assassinato daqueles que pensam de modo diferente sob uma ditadura de direita, mas os faz justificar essas mesmas medidas contra aqueles que se opõem a uma ditadura de esquerda? O que leva uma pessoa a condenar um general que dirige durante 17 anos um país andino com mão de ferro e a elogiar em contrapartida um comandante que 50 anos comanda de igual modo uma ilha? Será que isso se deve à ignorância, à hipocrisia ou ao oportunismo, ou a uma lealdade mal entendida em relação a bandeiras ideológicas, à postergação da realidade diante da utopia e do individualismo em relação à massa, ou simplesmente à exacerbação extrema de nossos dias?”
No livro, a realidade sobre Cuba: “Aqui é proibido tudo aquilo que não esteja expressamente permitido, meu amigo.” (
(Gostaria de ver o escritor e pseudo esquerdista Fernando Moraes, autor de Olga e Chatô, debater tal assunto com Ampuero. Moraes é um ferrenho defensor de Cuba, um louco, totalmente desprovido do mais elementar bom senso no tocante ao assunto.)
Mesmo proibido em Cuba, o romance continua circulando em bibliotecas independentes, por meio de engenhosas listas de espera.
Desde a publicação do livro, em 1999, Roberto Ampuero está proibido de entrar em Cuba. Ele narra esta covardia:
“É uma represália dolorosa, pois me impede de ir à terra onde passei uma etapa decisiva de minha juventude, onde tenho amigos, familiares e colegas, onde palpitam raízes de minha criação literária, e que continuam habitando parte de minha memória. É uma represália cruel, que me impede de voltar a um país que aprendi a amar e do qual, como seria de esperar, sinto saudades. Uma represália que me une à diáspora de milhões de cubanos que perambulam pelo planeta privados de sua pátria."
Sem meias palavras. É um livro emocionante. As 486 páginas nos levam do sonho à ilusão, da perplexidade à reflexão. A memória, neste caso, se tornou um campo fértil para a grande literatura.