Márcio 09/04/2015minha estante?Maldito Sertão?, do natalense Márcio Benjamin, ganha nova edição - Doze contos de terror são ambientados na geografia desolada do Brasil Profundo
Acordo às cinco da manha, após uma noite em que o vinho coordenou minhas ações. De ressaca, meio leso, é o que quero dizer. Ligo a luminária. Carol dá um pequeno estrebucho com o clique do botão, sem acordar. Pássaros fuleiros da aurora rasgam o silêncio do feriado santo. Junto com o crepúsculo, é a hora do dia que mais gosto. Ainda na paquera, pois se paquera com livro (ou quando a capa é bonita e o autor promissor, não olhamos constantemente, damos um jeito de estar sempre por perto, de tocar?), pego ?Maldito Sertão?, de Márcio Benjamin, brochura na segunda edição pela editora Jovens Escribas.
De uma tirada só, leio os três primeiros contos do potiguar, escritor, dramaturgo e advogado, ?nessa ordem?, como é dito na própria contracapa. E penso que não teria melhor situação para conhecer suas histórias de assombração, daquelas que povoam a mente de um matuto que se preze. Márcio deve ter feito um pacto com o fute, lá isso deve, porque sua habilidade com as palavras é incomum. Sua capacidade de gerar expectativa e manter o suspense é infernal. Sem digressões, sem divagações, como um conto tradicional, cada frase há sua razão de ser. Parei quando tudo acabou, na 12ª história, ?BR-101?.
A primeira edição de ?Maldito Sertão? surgiu em 2012, o que já é sabido por muita gente do meio literário local. Alguns estranharam a linguagem do narrador repetir o sotaque das personagens sertanejas, da ausência de norma culta na escrita de quem fala para o leitor. Alta ou baixa literatura? Popular ou erudita? Foram questões levantadas. É nessa hora que recorro a Émile Faguet, e seu ?A arte de ler?. Sobretudo ao capitulo sobre saber ler como crítico. Entendo que existem predileções temáticas ? eu mesmo não me apego a histórias de zumbis, matéria-prima do romance que Márcio planeja para ano que vem.
Aqui a questão é o terror. E para criar vigor dramático, o autor utilizou, com sucesso, recursos que convergem as doze narrativas para um único caminho: o sobrenatural que amedronta ou amedrontou qualquer um que tenha passado uma temporada longe da urbanidade ? a vida na cidade criou seus fantasmas, deixando as lendas de nossos avós no passado, quase risíveis. Pois a fala do narrador nada mais é do que o próprio Márcio apavorado, ainda menino, como testemunha chave dos ?malassombros? mitológicos de uma geografia surreal. Perde-se muito em buscar incongruência com uma lupa.
Ou falamos de um Edgar Allan Poe? De um Robert Louis Stevenson? O jovem escritor potiguar saltou na escuridão ficcional, aquela que apaixona feito amor inocente da fase virginal ? e inquieta pelo desconhecido. ?Maldito Sertão? foi indicado duas vezes ao Prêmio de Cultura Potiguar com suas doze frações decisivas, cheias de pormenores involuntários, em uma ambiência cinzenta. Velhas caducas, moleques travessos, meninas babás, tipos interioranos que pedem o tom adotado por Márcio, com sua voz de advogado ligado no mato.
Mato este que engoliu um homem, Manel, para desespero de sua mulher (?A Mata?). Ela entra em um bar silencioso, ocupado por homens que mantém ?uma tranquilidade meio aperreada, como se algo de muito ruim tivesse pra acontecer?. Entre cervejas mornas e uma radiola quebrada, a esposa desesperada pergunta pelo cônjuge. Seu Marcondes sentencia o desconhecimento geral. Ela menciona adentrar o matagal, enquanto os colegas ouvem um grito por socorro. Se passado e futuro quase sempre são descartáveis em um conto, o presente se tornou sufocante.
Ainda na abertura, em ?Casa de Fazenda?, um velho range dentes, juntas dos dedos e o juízo à espera por um bicho que comeu suas seis filhas e a mãe delas. Somente o filho homem escapou da carnificina. O patriarca, então, quer vingança a todo custo contra ?aquele satanás, uivando alto como um condenado?. Esbraveja contra Jesus, que nunca perdeu filho, nem mulher, antes do momento fatal. O conto cumpre o papel introdutório, preparativo para as histórias mais elaboradas ? casos de ?O Oratório?, ?À sombra da cruz?, ?Estradinha de barro?, ?A porca? e ?A mariposa negra?.
Terror matuto
No primeiro citado após o travessão, um menino vê uma espécie de bode preto entrar em seu quarto, ?peludo e fedorento [...] quase gente?. Nas noites de insônia, escuta discussões dos pais, com o chefe da família adoecido por 33 dias, triste com o prejuízo de umas sacas de café. A realidade espacial sertaneja, de noites enluaradas e silêncios sepulcrais, amplificam a tensão muito bem construída por Márcio Benjanin. Mesmo mistério de morte é que conduz ?Estradinha de barro?, com a tragédia do sumiço de crianças em um vilarejo. Os corpos aparecem boiando no açude, largados no matagal, com dinheiro ao lado.
Logo as famílias mais pobres alimentam o desejo de terem suas crias levadas pelo tinhoso, em troca do cacau. É possível forçarmos uma analogia com o Bolsa-Bucho do Governo Federal, mas a melhor seria com o filme ?O Silêncio dos Inocentes? e o pandemônio de Buffalo Bill. Pandemônio este que acomete um casal proveniente da capital; ele filho do interior, formado em ?medicina de bicho?; ela, moça bonita que ?só tinha visto vaca em televisão?. Em ?A Porca?, uma leitoa e seus sete filhotinhos trarão lembranças de uma bela escrava que abortou diversas vezes com a ajuda de um padre.
O amigo leitor deve pensar que li tudo isso aos raios iniciais da Sexta-Feira da Paixão (03), a mesma que enfeita e alegra o sertanejo tão religioso. Pois é o conflito da crença espiritual, alívio e prisão em Deus, o tormento de um padre envolvido com mulher, em ?À sombra da cruz?, belo titulo de um belo conto. Encaixar a lógica em sua vida de preconceito e culpa é tudo o que ele tenta, para tudo o que ele agoniza. O restante dos contos segue a balada do mistério, do enigma, do pavor diante de mitos folclóricos, como a mula sem cabeça, aqui transformados em seres inominados.
Eu não conheço Márcio Benjamin, natalense de 35 anos. Vi sua imagem em uma entrevista para a TV Assembleia, disponível no Youtube. Portanto, tive liberdade para curtir ou desgostar de seu ?Maldito Sertão?. Em demasia, fiquei com a opção mais simpática. Devorei as 87 páginas com a mesma gana que a besta fera estraçalhou as seis filhas do velho solitário de ?Casa de Fazenda?. Recomendo sobremaneira, para iniciados ou não nas conversas de lobisomem. A bonita arte da capa completa o pacote sedutor desta segunda edição à venda nas poucas livrarias que ainda restam em Natal. Compre, antes que o cão atente.
Conrado Carlos em http://jornaldehoje.com.br/maldito-sertao-natalense-marcio-benjamin-ganha-nova-edicao/