Kelvin 25/08/2021
Haruki Murakami e Thomas Mann: uma chave de interpretação
Nesta obra, acompanhamos a trajetória de Toru Watanabe, claramente um alterego do Haruki Murakami, até por cursar Arte Dramática e estar inserido num contexto universitário muito parecido. As conversas entre ele e a Naoko possuem sempre um quê de afeição com um misto de tristeza, ela parece querê-lo, mas não para sempre, e sim naquele momento específico, o que deixa no ar o entendimento de que eles estão unidos não pelo amor romântico, mas por outro tipo de afeição. A conversa dá a entender que ela sofre de algum problema e que ele se sente no direito de cuidar dela. Já no contexto da universidade, acompanhamos a rotina dele no alojamento, onde os demais personagens parecem ter comportamentos típicos de garotos, como ter o quarto bagunçado, não jogar o lixo fora e posteres de mulher pelada na parede, exceto, talvez, pelo seu colega de quarto, que foi apelidado de Nazista por ser tão certinho e esquisito, um personagem que se destaca comicamente. Percebemos nele, antes de Naoko, uma incapacidade para travar relações profundas, uma incapacidade para se identificar e se afeiçoar por garotas além do nível sexual. Vemos como a apatia diante dessas situações da vida e o significado da morte parecem surgir sorrateiramente aqui e acolá, prenunciando possíveis acontecimentos que virão.
Começamos a ver um pouco da base literária do Murakami através do seu personagem alterego, nomes como John Updike e F. Scott Fitzgerald aparecem como favoritos, em especial este último, por quem Watanabe tem uma preferência especial. É sabido que Murakami ficou conhecido por fazer uma tradução de "O Grande Gatsby" para o japonês, então mais uma vez aqui o autor se revela no personagem. Por ter esse gosto literário tão peculiar às pessoas da sua época, que em sua maioria preferiam autores japonese e franceses, Toru acaba criando amizade com um personagem muito interessante: Nagasawa.
Conhecido por ser arrogante e inteligente, Nagasawa prega uma visão de literatura que encarna o verdadeiro preconceito literário, considerando como "lixo humano" todos os demais que não liam literatura de boa qualidade (obras com mais de 30 anos e batizadas pelo tempo), identificando-se apenas com o próprio Toru, a quem considera como único igual naquele ambiente. Nagasawa também ficou conhecido por pegar várias mulheres e tentar arrastar Watanabe por muitas noitadas de sexo sem compromisso com garotas desconhecidas. Apesar de sentir um prazer passageiro, Watanabe confessa que acha aquilo muito vazio, o que Nagasawa até concorda, porém ressaltando que para ele já se tornou um vício, assim como os jogos de azar para Dostoiévski.
Na outra ponta do romance, acompanhamos um pouco da relação de Watanabe com Naoko, que ficaram muito mais próximos depois do suicídio de Kizuki. Nesses momentos, lembrei dos dois primeiros capítulos, em que ele comenta que não tinha muito papo para conversar com ela quando Kizuki ainda estava vivo, eles sempre saíam a três, mas ele ficava extremamente desconfortável quando ficava sozinho com ela. Com a morte de Kizuki, esse quadro se reverte um pouco e eles dois ficam mais próximos de uma forma bem mais interessante.
A vida de Watanabe é repleta de um sentimento de depressão e apatia, seguida por uma compulsão fútil por sexo como remédio para preencher algum vazio. Quando Watanabe se refere à universidade consigo me identificar perfeitamente, ele descreve o ensino superior como algo completamente "desprovido de significado". Watanabe parece ser alguém tão apático à sua realidade que é acostumado à sua própria mediocridade, não aspirando algo mais, isso fica nítido no diálogo em que, conversando com Nagasawa, confessa não sentir inveja nenhuma de quem ele é, exceto inveja do fato de Nagasawa ter uma namorada tão legal. Nesse contexto universitário padrão é que ele conhece Midori, uma garota cheia de energia e que contrasta com a personalidade cinzenta dele. Watanabe a descreve com as seguintes palavras "...a garota que eu naquele momento via sentada na minha frente parecia emanar de seu corpo a jovial vitalidade de um pequeno animal que acabava de surgir no mundo com a chegada da primavera. Parecendo dotados de vida própria, seus olhos exprimiam júbilo, riso, cólera, perplexidade, desespero". O capítulo é extenso e ocupado, em sua maior parte, por diálogos descontraídos entre os dois. O "gostar de solidão" do Watanabe é estranho para ela, assim como o seu jeito de falar, mas os dois parecem se dar muito bem, como se o contraste entre eles funcionasse da mesma forma que peças de encaixe. Por meio dessas páginas, Murakami consegue tornar interessante uma conversa sobre escrever textos para folhetos, sobre usar um único sutiã por um mês porque se economizou dinheiro para comprar uma panela, ao mesmo tempo em que nos apresenta sentimentos contraditórios como amar os pais e ao mesmo tempo admitir que ficou aliviado com a partida deles. A presença enérgica de Midori torna esses diálogos engraçadíssimos. Apesar de ser um capítulo longo, não é cansativo e é uma evolução e tanto com relação aos capítulos anteriores, onde o clima parecia ser um pouco mais pesado, apesar de o Nazista ter servido de alívio cômico. No entanto, é no final do capítulo que Watanabe recebe uma carta inesperada de Naoko que havia se recolhido numa casa de tratamento, e o capítulo assim termina em aberto, nos deixando um pouco roídos de curiosidade.
Em um capítulo mais à frente, vemos o Watanabe indo à casa de repouso onde Naoko se encontra. Logo de cara percebemos a referência ao livro "A Montanha Mágica", do Thomas Mann, desde a forma como ele se desloca até lá até as características do lugar em si são bem peculiares, parece ser um lugar afastado do mundo, um algo à parte, uma espécie de paraíso terreno, mas ilusório. Aqui percebemos a capacidade do Murakami de fazer referências de forma a deixar que o leitor as perceba sem que ele precise explicar, diferente do que aconteceria com um John Green, por exemplo. Mais do que isso, Murakami, ao esmiuçar o tema da morte e ao expor um personagem "outsider" (solitário, diferente, etc.) procura imprimir um tom parecido ao que o Thomas Mann se utiliza para compor não apenas o "A Montanha Mágica", mas a sua conhecidíssima novela chamada "Morte em Veneza".
[SPOILERS DAQUI PARA FRENTE]
Nessa casa de repouso ele aprofunda algumas experiências com Naoko, sendo válido ressaltar uma passagem peculiar em que ele consegue enxergá-la tão Bela que o desejo sexual por ela até desaparece, Naoko naquele momento vira algo transcendente. Conhecemos a personagem Reiko, uma amiga de Naoko de meia idade, mais madura e vivida, contando experiências no mínimo inusitadas. É interessante ver a interssecção entre as histórias que Naoko e Reiko contam ao Watanabe, em ambas a questão da genialidade perdidade é abordada, primeiro na história que a Naoko contou sobre a sua irmã super inteligente que entrou em depressão e se suicidou; depois, na história da Reiko, em que uma garota superdotada com manias sociopáticas desperdiça seu talento cedendo aos prazeres mais vis e prejudicando vidas. Percebemos a abordagem desses temas nas suas outras obras. No entanto, como inteligentemente já apontou a Tatiana Feltrin, a Reiko é uma personagem incógnita e paira a dúvida; será que ela é uma narradora confiável?
No sétimo capítulo, Watanabe volta à realidade do mundo cruel e o contraste entre esse mundo e o mundo platônico representado pela casa de repouso fica evidente. Além de ter que lidar com a saudade de Naoko, precisa continuar tocando o barco da vida. Felizmente, a figura enérgica de Midori aparece novamente para dar um colorido aos seus dias apáticos. Nesse capítulo, percebemos uma Midori um pouco mais ousada e pornográfica até, chegando a entrar em conversas e detalhes que deixariam qualquer homem excitado. A reação do Watanabe, no entanto, é de uma ataraxia estoica impressionante, chegando até a confessar em um momento que só se sentia excitado caso pensasse em Naoko, e em mais ninguém.
Percebemos que, longe de um mero desejo concupiscente, pornográfico e despersonalizado, ele não consegue mais enxergar as imperfeições do corpo de Naoko, como seios pequenos (outro tipo de imagem universal na obra do Murakami), ao mesmo tempo em que não consegue sentir desejo algum por Midori, mesmo ela tendo um corpo dentro de um padrão estetico mais bem-quisto entre os homens. Vale citar Roger Scruton para esmiuçar o que Murakami tenta demonstrar:
"A imagem pornográfica é como uma varinha mágica que transforma sujeitos em objetos e pessoas em coisas; assim, acaba por tirar-lhes o encanto e destruir a fonte de sua beleza. Ela faz as pessoas se esconderem por trás de seus corpos como marionetes manejadas por cordões ocultos".
E mais do que isso, Watanabe parece agir a todo momento como um gentleman com a Midori, jamais cedendo a nenhuma suposta investida e deixando bem claro seu amor e fidelidade a outra pessoa, estabelecendo um ótimo contraponto apolíneo ao temperamento dionisíaco dela. Watanabe é Platão, Midori é Nietzsche. Razão versus intuição. Outras passagens interessantes do capítulo, especialmente uma passagem em que Watanabe explica o conceito de 'deus ex machina' a um homem enfermo, casam perfeitamente com a conclusão do capítulo, onde não aparece um "deus" para intervir e salvar o dia e o pai de Midori vem a óbito. "Tudo seria mais simples se esse 'deus ex machina' existisse no mundo real, não concorda?", diz Watanabe ao pai de Midori, dias antes dele morrter, referindo-se provavelmente à morte de Kizuki, da irmã de Naoko e a todas as tragédias que estariam por vir.
No capítulo 8 percebemos como Murakami é cruel. "Tudo seria mais simples se esse 'deus ex machina' existisse no mundo real, não concorda?", diz Watanabe no final do capítulo anterior. Ao voltar ao contexto universitário, Watanabe encontra Nagasawa aprendendo idiomas e vale destacar aqui o diálogo que eles travaram sobre trabalho versus esforço. Segundo Nagasawa, a maioria das pessoas apenas trabalha, mas não se esforça, ou seja, no horário em que todo mundo está de pernas pro ar descansando do trabalho, ele está dominando o sétimo idioma. Percebemos, no entanto, um quê de arrogância na fala, o que nos leva aos capítulos anteriores, em que o Nagasawa fala que no alojamento todos eram lixos humanos, exceto ele e Watanabe.
Mas o incômodo com Nagasawa não pára por aí. Ao ser convidado para um jantar a três com Hatsumi e Nagasawa, ele acaba se lembrando dos episódios em que ia jantar a três com Naoko e Kizuki e sente um leve "deja vu". No entanto, o jantar, que começou agradável, acabou tomando um rumo estranho. A arrogância típica de Nagasawa acabou irritando Hatsumi. Os dois estão em um relacionamento aberto, mas esse esquema parece funcionar apenas para ele, que dorme com várias garotas enquanto a pobre Hatsumi sofre, ainda que consentindo. Ao ver o Nagasawa falar abertamente das garotas com quem dormiu na frente dela, sentimos o peso da cada palavra, a crueldade e a dor de não ser amado e de não se sentir suficiente.
Watanabe, ao entrar na conversa, firma o seu ponto de vista, deixa claro que em nenhum momento se sentiu bem com as noitadas que passou com Nagasawa atrás de garotas, pois tudo não passou de sexo sem compromisso e sem significado. Isso nos remete ao capítulo anterior, em que ele só conseguia sentir desejo genuíno por Naoko. Corpos vistos como objetos despersonalizados param de fazer sentido para Watanabe. A pornografia sucumbe ao poder do erotismo (o desejo personalizado e genuíno). Nagasawa entende, na cabeça dele, que se trata da mesma coisa, se trata de perseguir seus objetivos sem se importar com o que as outras pessoas pensem. Ele enxerga a si próprio e Watanabe como iguais, o que me leva a pensar até onde vai toda essa obsessão dele por Watanabe e como isso revela uma admiração secreta por um oposto. Se Watanabe é platônico, Midori é uma niilista passiva (ainda engatinhando), enquanto Nagasawa é um niilista completo (o último estágio, a transvalorização de todos os valores de "decadência").
O jantar termina em briga e Watanabe leva Hatsumi para casa, numa cena que muito se assemelha ao conto "A Missa do Galo", de Machado de Assis. Nesse momento, eles ficam mais íntimos e passam a noite jogando sinuca. Apesar da já mencionada quedinha do Watanabe pela Hatsumi (mais em tom de chacota), ele na verdade revela uma afeição por ela por meio de uma amizade profunda e preocupação sincera. Hatsumi é uma garota graciosa e amável, mas apaixonada por alguém que não valia a pena. Entretanto, resguardadas as semelhanças com o conto do Machado de Assis, Conceição, personagem de "A Missa do Galo", anos depois se separou do Menezes e viveu feliz com outra pessoa. Hatsumi, anos depois, casa-se com outra pessoa, mas infeliz e amargurada, sem conseguir superar Nagasawa, comete suicídio. Mais uma vez a tragédia aristotélica invade as páginas murakamianas e um "deus ex machina" não aparece para salvar o dia.
"O mundo todo estava tingido de vermelho. Minhas mãos, os pratos, as mesas, tudo diante dos meus olhos se revestia dessa cor [...]. Naquele momento consegui entender o significado daquela agitação que ela provocara em meu coração. Era algo como uma aspiração infantil que nunca havia sido saciada, e que jamais o seria. Inocente e inalcançável, eu a havia esquecido em algum lugar muito tempo atrás."
"Oh, my darling, Clementine..."
Como gosto de tipar personagens segundo a teoria junguiana, tive a liberdade de fazê-lo com Midori. A base que uso é o sistema de tipos de personalidade "Myers Briggs Type Indicator" (MBTI), que se inspirou fortemente na obra "Tipos Psicológicos" do psiquiatra Carl Gustav Jung. Sabemos que esse psiquiatra é uma referência para Haruki Murakami em vários livros seu, especialmente a trilogia 1Q84. A personalidade de Midori é classificada como ENFP. (E) - Extrovertida; (N) - Intuitiva; (F) - Emotiva; (P) - Perceptiva.
Percebemos traços desse tipo de personalidade em outras personagens marcates da ficção, como a Clementine (do filme "Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças"). Midori já de início, é descrita da seguinte forma: "......a garota que eu naquele momento via sentada na minha frente parecia emanar de seu corpo a jovial vitalidade de um pequeno animal que acabava de surgir no mundo com a chegada da primavera. Parecendo dotados de vida própria, seus olhos exprimiam júbilo, riso, cólera, perplexidade, desespero".
As pornografias que ela costuma dizer são, ao mesmo tempo, palavras impensadas, jogadas ao vento, a ponto dela dormir com Toru sem fazer sexo na mesma noite em que vão a um cinema pornô (onde, pela lógica dos fatos, a noite normalmente terminaria com sexo). Ao mesmo tempo em que diz barbaridades imensas, acaba completando "mentira, eu não faria isso". Percebemos que coisas que são normais para ela, não são normais para os outros, mas ela só consegue enxegar a sua própria normalidade, isso fica nítido na passagem em que ela acha esquisito que a sua irmã tenha surtado com ela pelada na frente do retrato do pai morto. É como se para ela só existisse esse aspecto da realidade e não existissem pessoas (a maioria) que achassem esquisito dizer ou fazer o que ela faz. Percebemos isso se repetir novamente quando ela leva uma briga que teve com o Toru para o namorado sem sequer conseguir conceber que ele obviamente ficaria enciumado. Ela rompe com o namorado por causa do Toru e aí tem a certeza de que na verdade o ama, e de verdade.
Outro aspecto da personalidade ENFP é ficar com raiva de uma pessoa por motivos muito particulares e não ter coragem de dizê-los. É precisar, também, de um tempo só seu para se livrar da raiva e perceber que a outra pessoa é importante. É não conseguir se atrair por estereótipos de "macho alfa" ao mesmo tempo que se sente magnetizada pela presença de Toru, um cara amável e carinhoso. Se eu pudesse retratá-la no cinema, ela apareceria a todo momento com uma cor de cabelo diferente, como uma Clementine atrás do seu Joel tímido, introvertido e amável.
No capítulo 9, conseguimos enxergar apenas um lado desagradável e pornográfico dela. Enquanto Toru boceja e se entendia com filmes pornôs, Midori parece se apegar a essa excentricidade, o que a torna menos Bela nesses momentos, pelo fato de ela enxergar o sexo despersonalizadamente, como algo que pudesse ser feito com qualquer pessoa, mesmo sem amor genuíno envolvido (o caso do namorado dela, por exemplo). É só quando vamos ao capítulo 10 que notamos ela personalizou o sexo em Toru Watanabe, e ao confessar que na verdade o ama, suplica para que ele pense só nela enquanto faz sexo. Midori foi convertida e a mudança parece ser radical. É como se antes ela acreditasse no diabo, mas agora acreditasse em Deus. Ela era pagã, mas agora é cristã. É um sentimento estranho. Ela não entendia a Beleza, mas agora consegue enxergá-la em Watanabe, "mesmo não sendo bonito".
Watanabe, por sua vez, também se sente confuso, ele não consegue pensar mais em Naoko da mesma forma. E, ao comparar os dois sentimentos, pensa: "meu amor por Naoko é muito calmo, meigo e inocente, bem diferente do tipo de sentimento que tenho por Midori. Meu amor por Midori anda sozinho, respira, palpita. Ele me faz vibrar todo por dentro. Estou confuso, sem saber o que fazer". A literatura descreve esse tipo de amor de várias formas, mas acho que uma série de Tv o descreveu da forma mais perfeita: "é algo que acontece instantaneamente. Atravessa você como a água de rio depois da tempestade; preenchendo você e esvaziando ao mesmo tempo. Você sente em todo seu corpo... Em suas mãos, em seu coração... No seu estômago, na sua pele." (How i met your mother).
Isso nos leva de volta ao primeiro capítulo, Toru ama Naoko, mesmo não sendo correspondido. Naoko sabe e valoriza o sentimento dele, mas deixa sempre claro que não é algo correspondido e o caminho estará sempre livre. Toru finalmente entende que o seu amor por Naoko não é o tipo de amor que Platão chamava de Eros, mas é aquilo que Kant chama de amor Ágape, um amor desinteressado pela humanidade do outro, o amor de Jesus na Cruz. Toru, de fato, carrega esse amor por Naoko como uma cruz, um imenso sacrifício por uma pessoa convalescida que não pode ser abandonada, um amor que, desde o primeiro capítulo do livro, não espera nada em troca. A depressão de Naoko se tornou mais profunda e a preocupação com ela só cresce ao longo dos capítulos. Ela se tornou absolutamente incomunicável, de modo que Toru tem dificuldades para conciliar a alegria de ter Midori e a infelicidade de ver Naoko padecendo a cada dia, desfalecendo nas garras dessa doença que hoje é considerada o "mal do século".
"Não explique, mostre". Este é uma regra geral entre contistas e romancistas experientes. O que seria da literatura sem esses livros em que, a cada leitura, extraimos sentidos e conexões diferentes entre cada fato ou palavra dita? Como eu afirmei, Toru Watanabe é um alterego do Murakami, então muito do que ele vive e expressa é reflexo do próprio escritor. Haruki Murakami se formou em Artes Dramáticas e traduziu para o japonês importantes clássicos da Literatura Ocidental. Logo, é de se esperar que ele tenha noções básicas de construção de um enredo, o que é evidenciado pela passagem em que Watanabe fala sobre o deus ex machina.
Dito isso, percebam que o capítulo final já abre sem nenhuma tentativa de surpreender, o que Murakami busca neste capítulo não é o plot twist gratuito. Recebemos a notícia do suicídio por enforcamento de Naoko, que acabou sendo levada pela depressão. Esse fato nos deixa, logo de cara, atônitos e sem ter ideia de como reagir. É como o próprio Watanabe também se sente. Watanabe passa a vagar sem rumo pelo japão e precisa de um momento de solidão. Ele telefona para Midori apenas para avisar que nesse momento não teria como correspondê-la e não teria como explicar tudo.
Ele dorme nas ruas e sofre ao lembrar de Naoko. Onde está o "Deus ex Machina"? Mais uma vez ele não apareceu para salvar o dia. Trechos impactantes desse último capítulo:
"A morte de Kizuki havia me ensinado uma coisa [...]: A morte não é o oposto da vida, mas uma parte intrínseca dela".
"No nosso mundo, no mundo dos vivos, eu fiz o melhor que pude por Naoko. Mas tudo bem, Kizuki, eu abro mão dela para você. Naoko escolheu você. Ela se enforcou no meio de um bosque escuro como as profundezas do seu coração. Sabe Kizuki, um dia você arrastou parte de mim para o mundo dos mortos".
Nesses momentos começamos a refletir sobre temas como a morte, a beleza, o sexo e a espiritualidade são encarados em Norwegian Wood. "Só há um problema filosoficamente sério: o suicídio", diz o filósofo e escritor Albert Camus. A morte de Kizuki arrastou Toru para o mundo dos mortos, ou seja, para o transcendente, o metafísico. Voltamos ao capítulo 2, antes de morte de Kizuki, em que Toru tinha uma namorada mas ela servia apenas como um recipiente de prazer. Toru se lembra dela nesse último capitulo, ao terminar com ela por não sentir verdadeiro amor ele recorda de como a deixou triste e se arrepende profundamente. No capítulo 2, aquele término não o afetou em quase nada, mas agora a sua consciência o atormenta. Nessa época da vida, Toru não vinculava o sexo a pessoas, mas a corpos.
É só no capítulo 3 que acontece uma mudança nessa concepção. Ao se encontrar com Naoko para lembrar de Kizuki, os dois transam e é a única vez que o fazem no livro inteiro. Naoko era uma garota com dificuldade para se sentir molhada, de modo que nunca fez algo do tipo com Kizuki. O curioso é como isso aconteceu justamente em um momento em que os dois se reuniram para lembrar da morte do amigo. É como se ali fosse criada uma ponte de Naoko com o Kizuki ja falecido. "Sabe, Kizuki, você arrastou parte de mim para o mundo dos mortos". Naoko, naquele momento, simbolicamente se ligou a Kizuki, de modo a poder oferecer a ele o que nunca pôde em vida.
"...uma coisa que veio e passou. E não vai voltar. É o tipo de coisa que só acontece uma vez na vida. Tanto antes quanto depois, eu não senti nada. Nunca pensei em fazer sexo de novo, nunca mais fiquei molhada assim".
Nos capítulos posteriores percebemos um Toru que não consegue mais enxergar garotas como meros objetos de prazer. Ele sai com Nagasawa para ficar com garotas, mas passa a enxergar isso como algo fútil. Depois de um tempo, ele estabelece uma relação não correspondida com Naoko a ponto de ficar meses, anos, esperando por ela, mandando cartas, se comunicando e até o ponto de não sair mais com nenhuma garota e ficar praticamente casto. Nenhuma garota o atrai, ele não consegue mais sentir desejos. A hiperssexualidade de Midori o entedia, ele é capaz de dormir em um cinema pornô. Toru se torna completamente apolíneo, enquanto vive rodeado de pessoas dionisíacas. Enquanto percebemos que Toru é voltado para algo transcendente (afinal, Kizuki o arrastou para esse lado), percebemos que personagens como Nagasawa e Midori são completamente materialistas e enxergam o sexo de forma casual e despersonalizada. Essa confluência entre opostos nos leva ao confucionismo, o yin e yang, o princípio da dualidade. A beleza, na visão do Toru, passa a não ser mais carnal, ele enxerga a beleza no corpo imperfeito de Naoko, no rosto não muito atrativo de Hatsumi. Assim como acontece em "O retrato de Dorian Gray" (Oscar Wilde), a beleza do corpo não é a beleza da alma. "De que vale ganhar o mundo inteiro e perder a própria alma?" (Marcos 8:36). Quando Midori se "converte", ela passa também a enxergar uma beleza especial em Toru, uma beleza que só o amor verdadeiro desperta.
Toru passa semanas afastado e perambulando, até que faz uma ligação para Reiko, a amiga mais velha da Naoko. Ela o chama para conversarem e insiste para que ele volte à vida real e não se deixe sucumbir pela morte de Naoko. Eles passam a noite trocando conversas sobre ela, as lembranças são dolorosas e eles se unem naquele momento para celebrá-la tocando suas músicas favoritas (como a própria Norwegian Wood). Percebemos a semelhança desse momento com o do capítulo 3, em que Watanabe se reúne com Naoko para celebrar a memória de Kizuki. Assim como acontece no capítulo 3, nos surpreendemos com o momento em que Watanabe acaba transando com Reiko e percebemos a ligação com o capítulo 3. Ou seja, mais uma vez Toru Watanabe, um rapaz para quem a carnalidade não fazia mais sentido, se liga ao mundo dos mortos por meio de Reiko, a única amiga verdadeira que Naoko teve. Assim como no capítulo 3, este é um momento que nunca mais vai acontecer na vida.
Nos momentos finais do capítulo, Toru está pronto para voltar ao mundo real. Mais uma vez ele sabe que precisa sair da "Montanha Mágica" e faz uma ligação para Midori, que já estava a meses esperando por ele e sem entender nada do que havia acontecido:
"? Preciso falar com você. Há muitas coisas que quero dizer. Muitas coisas sobre as quais precisamos conversar. Você é tudo o que eu desejo no mundo, e ninguém mais. Quero me encontrar com você para conversarmos. Quero recomeçar tudo com você desde o início ? disse-lhe eu.
Do outro lado da linha, Midori permaneceu um longo tempo calada. O silêncio prosseguiu exatamente como se toda a chuva fina do mundo caísse sobre todos os gramados do mundo. Enquanto isso, de olhos fechados, eu apertava a testa no vidro da cabine. Midori finalmente rompeu o silêncio. ? Onde você está agora? ? perguntou ela com a voz calma.
Onde eu estava agora? Ergui o rosto e olhei ao redor da cabine telefônica. Onde eu estava agora? Não saberia responder. Não fazia nenhuma idéia. Afinal, que lugar era aquele? Apenas a silhueta de inúmeras pessoas passando por mim a caminho de lugar nenhum se refletia nos meus olhos. Do centro sem vida desse lugar que não era lugar nenhum, eu continuava a chamar por Midori."
Onde Toru está? Por que ele só consegue enxergar as silhuetas das pessoas? Afinal, que lugar é esse que "não era lugar nenhum"? Toru teria cometido suicídio? Se sim, como ele conseguiu ligar para Midori? O que realmente aconteceu? Capitu traiu Bentinho? É aí que a referência ao "A Montanha Mágica" fica ainda mais escrachada. Em um ensaio de Anatol Rosenfeld sobre Thomas Mann, ele explica essa confluência entre o mundo platônico em que Hans Castorp imerge, seguindo a mesma trajetória de Toru Watanabe e depois retornando ao mundo de vida. No entanto, a ironia é que, ao descer da Montanha Mágica, Hans Castorp se defronta com uma Guerra Mundial. Ele apenas saiu de um mundo de mortos para entrar em outro mundo de mortos. Meu palpite é que este foi o mesmo fim de Toru Waranabe.
"A morte não é o oposto da vida, mas uma parte intrínseca dela". Haruki Murakami