Henrique 20/12/2009
Watchmen e a valorização da nona arte
Grande parte do que faz um bom artista - sendo ele um pintor, escultor, escritor, cineasta e até mesmo um game designer - é a forma como ele vai te apresentar sua história, a mídia ideal para transmitir sua idéia; mais que isso, o que faz um grande artista é ele saber usar bem sua própria mídia, em construi-la, em reinventa-la, em aproveita-la em seu máximo. Todos os grandes artistas hoje reverenciados são de alguma forma inventores não só de suas próprias obras, mas sim inventores (ou então reinventores) de suas próprias mídias, dos métodos que usaram para transformar suas obras em realidade. Allan Moore é, conseguinte, um grande artista. Se me perguntarem um único exemplo da verdadeira valorização da nona arte, direi: Watchmen.
Cultuada por fãs de quadrinhos ao redor do globo, Watchmen é uma graphic novel lançada em 1986 que foi uma das grandes responsáveis por trazer o público adulto para o mercado de histórias em quadrinhos. Fez isso justamente por redefinir a própria nona arte. Existe agora a era pré-Watchmen e a era pós-Watchmen.
A obra de Allan Moore e Dave Gibbons é um enorme exercício de metaficção. Sua história é, para todos os fins, uma ficção científica envolvendo super-heróis; mas seu enredo é tão ligado aos acontecimentos históricos, aos dramas que realmente existiram, que Watchmen torna-se imediatamente crível para qualquer leitor. Começando pela seguinte pergunta: "se o super-homem tivesse existido, não teria ele mudado completamente o mundo em que vivemos?" Moore vai além: Como seriam os jornais? As revistas? Os costumes? A guerra-fria? O pensamento das pessoas?
De qualidade literária rara, Watchmen evita clichês. Não apenas isso, Allan Moore evita arquétipos de personagens. Dificilmente um leitor conseguirá identificar mentor, pícaro, herói e vilão. Ao mesmo tempo, evita todos os chamados "vicios" da nona arte. Poucas histórias em quadrinhos possuem um nível tão grande de elementos contidos na imagem - o que é uma característica notável também nas outras obras de Moore -, frequentemente existem mais informações na imagem no que nas próprias falas. Posso dizer que li a obra mais de dez vezes, e em cada vez eu encontro um novo detalhe anteriormente ignorado.
Watchmen apresenta um notável uso da metaficção. Moore dá vida ao seu mundo não apenas através de desenhos e balões, mas também por meio de jornais, revistas, livros e opiniões de seus próprios personagens, como se eles próprios fossem críticos de sua obra, de seu mundo e de suas personalidades.
É incrivel o alcance do pensamento de Moore. Alcance esse bem explicito na concepção de seus personagens: O super-humano Dr Manhattan - distante da humanidade, solitário - diz sobre a vida e a Terra "Eu considero a vida um fenômeno exageradamente valorizado (...) Eu vi eventos tão rápidos que mal pode-se dizer que ocorreram (...) Meu mundo vermelho é mais valioso que o seu azul". A forma como cada personagem interpreta seu meio e tem opiniões diversas é um dos pontos chaves da obra.
O simbolismo é outro recurso densamente usado. Toda a história é de alguma forma impulsionada por um certo simbolismo. Os elementos, por vezes, nem estão presentes no quadrinho de uma forma literal, mas metafórica, servindo para dar um sentido simbólico a um fato ou mesmo para passar uma mensagem. Maior exemplo disso é a história paralela que acompanha a história principal, Contos do Cargueiro Negro, servindo não só de exemplo da mudança cultural ocasionada pelos "vigilantes", mas como uma enorme metáfora para a loucura que aqueles tempos estavam vivendo.
Watchmen cria uma nova forma de fazer histórias em quadrinhos, atrai o público adulto, mais critico, para dentro dessa mídia e faz o que um grande artista precisa: evoluir seu método de expressão. É o reconhecimento literário da nona arte.