gleicepcouto 26/01/2013Quando a técnica encontra a sensibilidadehttp://murmuriospessoais.com/?p=5723
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1Q84 (Alfaguara) é o primeiro livro de uma trilogia do escritor e tradutor japonês Haruki Murakami. Escreveu o seu primeiro romance – Hear the Wind Swing – em 1979, livro ainda não traduzido para português, mas seria em 1987, com Norwegian Wood, que o seu nome se tornaria famoso no Japão. Outras obras lançadas no Brasil: Do que eu falo quando eu falo de corrida, Após o anoitecer, Minha Querida Sputnik, Kafka à beira-mar, Dance Dance Dance e Caçando Carneiros.
Aomame, uma mulher que esconde a profissão de assassina, em uma tarde no início de abril, está parada em um táxi, em meio ao trânsito de uma via expressa de Tóquio. Temendo não chegar a tempo de resolver uma pendência, ela se vê diante de uma opção inusitada proposta pelo motorista: descer do veículo e seguir por uma escada de emergência em plena avenida. Apesar do aviso do taxista, que diz que as coisas à volta dela se tornarão estranhas, Aomame segue a sugestão inicial. Após descer a escada e seguir seu caminho, ela repara aos poucos que certos aspectos da realidade se tornaram diferentes. Em paralelo à essa trama, o professor de matemática e aspirante a escritor Tengo se envolve em um misterioso projeto de refazer um romance fantasioso e enigmático escrito por uma jovem de 17 anos. Mas, para isso, deve conhecer antes a autora, a estranha Fukaeri. À medida que as histórias vão se alternando, Aomame continua a perceber diferenças sutis na realidade. Ela se dá conta que, ao descer a escada de emergência da via expressa, passou de alguma forma a habitar um mundo discretamente distinto – que batiza de 1Q84. Já Tengo, aos poucos, passa a reparar em estranhas semelhanças entre a ficção fantasiosa de Fukaeri e a realidade, além de perceber que parece correr algum tipo de perigo quando se vê envolvido com uma misteriosa seita. (Fonte: Sinopse oficial do livro.)
"Muitas vezes ela se perguntava o que significava conquistar a liberdade, e se isso não seria o mesmo que escapar habilmente de uma jaula e cair numa outra maior ainda."
A narrativa de Murakami é técnica, mas também deliciosa. É muito clara e simples, mas não de um modo depreciativo. É apenas uma atitude evidente de quem sabe o que quer dizer e como dizer. Mas isso não significa que perde seu caráter lírico. A expressão de emoções é encontrada em cada parágrafo, às vezes explícito, mas, em sua maioria, nas entrelinhas. É como se ele deixasse aberto ao leitor a opção de escolher entre ler a história ou vivenciá-la ao máximo.
Os capítulos, intercalados entre os pontos de vista de Tengo e Aomane, são bem trabalhados e demonstram as particularidades dos dois personagens. A princípio, é difícil identificar a relação entre as histórias deles, mas, aos poucos, bem sutilmente, Murakami vai nos mostrando; expandindo a história, à medida em que vamos conhecendo Tengo e Aomane. As semelhanças deixam de ser meras coincidências.
Aqui, não há preocupação com tempo. O importante é conhecer tanto os personagens, como se sentisse vontade de convidá-los para tomar um café e papear sobre o que está se passando na vida deles. Isso tudo é “culpa” da ótima construção dos personagens. São ambíguos imprevisíveis e genuínos. Essas qualidades se estendem também aos secundários, tão relevantes para a trama como Tengo ou Aomane.
Ao longo das páginas, percebe-se a influência do livro 1984, de George Orwell. Mas para por aí. Muraki consegue dar voz própria e personalidade ao seu livro. O mundo criado por ele é único; ao mesmo tempo que indiscutivelmente real, há um leve (bem leve) toque de surrealismo.
1Q84 é um livro inteligentíssimo e o leitor tem que prestar atenção aos detalhes. Não há informação desnecessária no livro. De alguma forma, tudo acaba se interligando: pessoas, lugares, fatos, ideologias. É interessante ver como o autor aborda esse último item. Sensatamente, ele expõe opiniões diversas (algumas tabus em nossa sociedade) sem rodeios – um convite a pensarmos sobre certas questões.
A série é ambiciosa e não por se tratar de uma trilogia. Mesmo que algumas questões tenham ficado sem respostas, não é nada que deixe o leitor com cara de tacho – apenas aguça a curiosidade para os próximos livros. A ambição está em ser corajosa. Além de ter com influência declarada um clássico, 1Q84 é o tipo de livro que, se o leitor não estiver em um momento de sensibilidade, passa batido pela obra – somente a lê e diz “Bacana, bem escrito”. Mas, se vista de mais de perto e com cuidado, a genialidade de Murakami se faz nítida e o leitor se vê refém do mundo criado pelo autor.
A Alfaguara (selo Objetiva) fez um ótimo trabalho. A capa é lindíssima e a diagramação interna, agradável aos olhos. Em relação à tradução, eles trabalharam em cima do original em japonês – um dos motivos da obra ter demorado a sair por aqui (no Japão, os livros 1 e 2 foram lançados em 2009 e o 3, em 2010). Isso, porém, trouxe benefícios, uma vez que o risco de ocorrência de discrepância com o original tende a ser consideravelmente menor do que uma tradução de outra tradução.