jota 24/10/2023Towles exerce domínio absoluto sobre sua ambiciosa personagem e nos transporta para a efervescente Manhattan dos anos 1930Como em Um Cavalheiro em Moscou, segundo livro de Amor Towles (que li seis meses passados, uma das melhores obras que tive em mãos em 2023), aqui também predominam elegância, leveza, humor e erudição. Características da narrativa desse autor que alguns críticos dizem ter sido bastante influenciado por F. Scott Fitzgerald e Truman Capote nesse seu livro de estreia, Regras de Cortesia. Que seria assim uma espécie de cruzamento entre O Grande Gatsby (de Fitzgerald) e Bonequinha de Luxo (de Capote), mas aceitar isso implicaria, obviamente, negar o grande talento de Towles para contar histórias cativantes e criar personagens que seduzem o leitor.
Aqui eles são três basicamente – ou quatro, se aceitarmos como outra personagem a cidade de Nova York, onde quase tudo se desenvolve, e dentro dela seu bairro mais afamado, Manhattan –, duas moças da classe média baixa, uma delas a narradora Katey Kontent, a outra, sua amiga e companheira de pensão Evie Ross, e um rapaz bem-apessoado e aparentemente bastante rico, Tinker Grey. As coisas começam em 1966, mas voltam no tempo para aqueles anos depois da Grande Depressão americana (1929), em 1937, 1938, época de grande efervescência cultural e às proximidades da Segunda Guerra Mundial.
É o simpático, educado, cortês e aparentemente milionário Tinker Grey quem vai introduzir as duas garotas na agitada vida noturna da cidade, em círculos sociais que as duas jamais teriam oportunidade de conhecer se não fosse através ele. A vida dos três jamais será a mesma depois da noitada na véspera do Ano Novo de 1937, quando eles se encontraram pela primeira vez, por acaso. Muitas histórias virão, outros personagens nos serão apresentados e vai ficar cada vez mais difícil largar o livro no meio de um capítulo...
Bem, o título tem a ver com George Washington (1732-1799), primeiro presidente americano, que aos 16 anos escreveu um livrinho a que chamou de “Regras de Cortesia & Comportamento Decente em Convivência e Conversa”, reproduzido como apêndice no final do volume de Towles. São 110 regras, que podem ter sido escritas por padres jesuítas franceses do século XVI e que Washington condensou após conhecê-las, provavelmente durante seus estudos na adolescência. Cobriam toda a vida social de uma pessoa daqueles tempos e várias delas permanecem atuais.
Algumas regras são citadas durante a narrativa, como esta que tem muito a ver com o que vai se passar entre Katey e Tinker a certa altura da história: “Esforce-se para manter acesa em seu peito aquela pequena chama de fogo celeste chamada consciência.” Mas antes de chegar a esse ponto, muita coisa vai rolar entre Katey, Eve e Tinker. Muito jazz, muita bebida e cigarro, algum sexo e por vezes também muita cortesia e civilidade. Nem sempre, porém...
Regras de Cortesia tem muitas qualidades: você sabe o tempo todo que Towles é homem, um escritor, mas se deixa levar completamente pela narrativa de sua ambiciosa personagem, especialmente pelos diálogos afiados e espirituosos que pontuam aqui e ali, seus personagens fazendo observações cáusticas por vezes, uma trilha sonora irrepreensível se isso fosse possível para um livro, com Billie Holiday, Frank Sinatra, canções de Cole Porter, Irving Berlin etc. Há até mesmo uma pequena história sobre a canção de Vernon Duke que poderia ser, digamos assim, o tema de Kate, Autumn in New York, que é mesmo fabulosa, ou sedutora, como a personagem afirma.
Por tudo isso e muito mais, não à toa a estreia de Towles na literatura foi estrondosamente saudada pelos veículos de comunicação mais importantes de seu país e também da Europa. Penso que não exageraram nem um pouco, ainda que eu tenha sentido um tanto que o final poderia ser levemente modificado, melhorado, mas era necessário saber o destino dos principais personagens do livro, como eles terminam, claro. E foi isso que Towles fez.
Lido entre 10 e 23 de outubro de 2023.