spoiler visualizarIsa Beneti 25/12/2022
Alegoria da opressão e da força feminina
A história se passa no interior de Moçambique, numa pequena aldeia denominada Kulamani, onde estranhos ataques vêm ocorrendo: mulheres assassinadas por leoas.
A narração da história alterna em cada capítulo: em um a narradora é Mariamar, filha de Hanifa e de Genito Mpepe e irmã de Silência, a última vítima das leoas. No capítulo seguinte o narrador é Arcanjo Baleiro, caçador que vem de uma família de caçadores, e cujo pai fora morto pelo seu irmão mais velho, que sem querer (?) lhe deu um tiro.
Ambos os narradores tem sua história muito bem desenvolvoda ao longo do livro, visto que descobrem mais sobre si mesmos ao longo da jornada. Mesmo assim, o final do livro é muito aberto, com mais perguntas do que respostas.
Isso por que Mariamar possui uma história muito confusa, tendo como um dos personagens principais seu avô Adijiru, um dos seus únicos companheiros durante sua juventude. Mariamar, além de ser supostamente infértil (o que lhe dava uma posição inferior a de mulher na aldeia), foi acometida por uma paralisia infantil quando jovem. Por isso, ela viveu por muitos anos na Igreja, a fim de que sua enfermidade fosse curada. Depois de anos, sua paralisia de fato sarou, mas o livro nao deixa claro o por que: segundo Genito, foi Hanifa que, num ritual ntwangu, trocou a vida de um tamarindeiro pela saúde de sua filha. Fora a paralisia, Mariamar também sofria com abusos sexuais de seu pai, que eram ignorados por sua mãe.
Outras respostas também são deixadas em aberto na história. Arcanjo Baleiro, embora tenha sido contratado para caçar os leões, acompanhado por um célebre Escritor e pelo Administrador da aldeia, não consegue realizar essa tarefa, que só é concluída por Genito. Entende-se, pela narração, que Arcanjo não serivia mais para atuar como caçador.
Mas o maior mistério de toda a trama é a origem das leoas. Mariamar se acha responsável por isso, pois se identifica com as leoas, e sente que nasceu uma e, por isso, nasceu infértil, paralítico, portanto, é responsável pelos ataques. Mariamar até confessa, em certo ponto, que foi ela quem matara suas irmas mais novas. Entetanto, Adijiru, em uma visão de Mariamar, afirma que fora ele quem fabricara as leoas, a fim de atrair Arcanjo Baleiro para a aldeia, pois ele era um homem que tratava mulheres com dignidade (diferente dos outros homens de Kulamani), e seria o homem ideal para casar com ela. Entretanto, ao final do livro, Hanifa afirma ser ela mesma a leoa (e essa seria, portanto, a confissão da leoa). Não dá pra saber com certeza qual a origem, de fato, das leoas.
O que ficou para mim é que as leoas são uma alegoria da condição feminina na cultura moçambicana, representando sua condição de animal, inferior à humana, mas, ao mesmo tempo, sua força.
A evolução das personagens foi algo muito interessante de se acompanhar, principalmente a do escritor, que começa como um cara insuportável sem vivência e empatia nenhuma, e termina como uma pessoa muito mais entendida da vida e dos humanos. Arcanjo Baleiro também tem um arco interessante, sempre falando muito sobre a filosofia do ato de caçar, sobre quem é o caçado e quem é o caçador. Ao final, ele descobre que o suposto acidente que matara seu pai fora proposital, já que seu irmão descobriu que a morte de sua mãe fora ocasionada por um kusungabanga: quando o marido costura a parte íntima da mulher para que ela não a traia enquanto ele está fora. Essa foi, definitivamente, a parte mais difícil de ler de todo o livro.
Ao todo, fica claro que a obra discute bastante a cultura machista vigente na sociedade de Moçambique, dando ênfase a personagens femininas como Mariamar, Hanifa, Naftalinda (esposa do administrador) e as leoas.