Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo

Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo David Foster Wallace




Resenhas - Ficando Longe do Fato de Já Estar Meio Que Longe de Tudo


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Gabriel Leite 28/04/2014

Possuí e Perdi Alguma Coisa Infinita
Dois mil e catorze e eu acabo de descobrir esse gênero chamado ensaio. Claro que já tinha lido alguns ensaios na minha vida, mas nunca tinha me dado conta de que o nome daquilo era ensaio. Enfim. Acabei viciando. Gastei dinheiro no Kindle, investi tempo e saúde e conheci David Foster Wallace, o autor de Ficando Longe do Fato de Já Estar Meio que Longe de Tudo.

Quando eu digo conheci, é conheci realmente. E isso é uma das coisas legais de se ler uma coletânea de ensaios (principalmente a coletânea de ensaios de um cara que tem a cabeça como a do David Foster Wallace). O mergulho na mente, na capacidade narrativa e descritiva do autor é tão profundo que, por vezes, você se pega pensando como um D. F. Wallace em plena praça de alimentação do Conjunto Nacional, o que torna a vida inviável. Por outro lado, você, de certa forma, faz um amigo (vomitem, ridículos). Você passa horas numa conversa sem volta com esse homem que te faz rir e te faz pensar e quase te faz dormir, antes de te assaltar com uma construção genial e te fazer acordar. É um pouco estranho, mas você se acostuma (e no final, até ama).

O livro reúne alguns ensaios sobre, por exemplo, cruzeiros de luxo, a problemática de se cozinhar lagostas ainda vivas e as razões pelas quais Federer é o melhor ser humano que já pisou neste planeta. Todos muito bem escritos. Cheios de detalhes precisos, jornalísticos e, ao mesmo tempo, completamente descompromissados com as coisas "naturalmente" primordiais. Uma das coisas mais legais do D. F. Wallace é essa capacidade de enxergar aquele detalhe que, à primeira vista, não parece muito digno de nota, mas que cresce com o texto e encontra correspondentes muito íntimos na nossa própria memória. Daí talvez a certeza de ter conhecido um ensaísta que se matou há seis anos. Seu texto tem a capacidade de nos ensinar algumas coisas fantásticas e, ao mesmo tempo, deixar a sensação de que, no fundo, nós sempre soubemos essas coisas.

Fiquei um pouco angustiado do meio pro final. Não pela qualidade do texto (até porque o texto é realmente impecável), mas porque Wallace tem uma visão muito pessimista, cíclica e perdida da existência humana. No meu ensaio preferido dessa coletânea (Isto É Água, que na verdade é um discurso de formatura que Wallace teve que fazer para alguma turma) ele descreve, com precisão, esse ciclo de fracassos e fala sobre a única alternativa possível. Só por esse trecho, o livro já valeria a pena.

"A única verdade com V maiúsculo é que quem decide como vai tentar ver as coisas são vocês mesmos. Essa, a meu ver, é a liberdade de uma educação autêntica, de aprender a ser bem ajustado: poder decidir conscientemente o que tem significado e o que não tem. Poder decidir o que venerar…

Pois aqui está uma outra verdade. Nas trincheiras cotidianas de uma vida adulta, não existe isso de ateísmo. Não existe isso de não venerar. Todo mundo venera. Nossa única escolha é "o que" venerar. E se existe uma ótima razão para talvez venerar algum tipo de deus ou coisa espiritual - seja Jesus Cristo ou Alá, yhwh ou uma deusa-mãe wiccan, as Quatro Verdades Nobres ou algum conjunto inviolável de princípios éticos - é que provavelmente todas as outras coisas vão devorar vocês vivos. Quem venerar o dinheiro e os bens materiais, quem buscar neles o sentido da vida, nunca terá o suficiente. Nunca terá a sensação de que tem o suficiente. É a verdade. Quem venerar o próprio corpo, beleza e encanto sexual sempre vai se achar feio, e quando o tempo e a idade começarem a deixar marcas morrerá um milhão de mortes antes de finalmente ser enterrado por alguém. (...) Quem venerar o poder vai se sentir fraco e amedrontado, e precisará de cada vez mais poder para conseguir afastar o medo. Quem venerar o intelecto, ser visto como inteligente, vai acabar se sentindo burro, uma fraude na iminência de ser desmascarada. E por aí vai.

Essas formas de venerar são traiçoeiras não por serem malignas ou pecaminosas, mas por serem inconscientes. São configurações padrão. É o tipo de veneração pelo qual nos deixamos levar gradualmente, dia após dia, e que nos torna cada vez seletivos em relação ao que vemos e a como atribuímos valor às coisas, sem jamais termos plena consciência do que é isso que estamos fazendo. E o suposto 'mundo real' nunca desencorajará vocês de operarem nas configurações padrão, porque o suposto 'mundo real' dos homens, do dinheiro e do poder avança tranquilamente movido pelo medo, pelo desprezo, pela frustração, pela ânsia e pela veneração do ego. Nossa cultura atual canalizou essas forças de modo a produzir doses extraordinárias de riqueza, conforto e liberdade pessoal. A liberdade de sermos senhores de reinos minúsculos, do tamanho dos nossos crânios, sozinhos dentro de toda a criação. Esse tipo de liberdade tem seus méritos. Mas é óbvio que há liberdades dos mais variados tipos, e no vasto mundo lá de fora, onde o que importa é vencer, conquistar e se exibir, vocês não ouvirão falar muito do tipo mais precioso de todos. O tipo realmente importante de liberdade requer atenção, consciência, disciplina, esforço e a capacidade de se importar genuinamente com os outros e de se sacrificar por eles inúmeras vezes, todos os dias, numa miríade de formas corriqueiras e pouco excitantes. Essa é a verdadeira liberdade. Isso é ter aprendido a pensar. A alternativa é a inconsciência, a configuração padrão, a 'corrida de ratos' - a sensação permanente e corrosiva de ter possuído e perdido alguma coisa infinita."

site: http://amortemecaibem.blogspot.com.br/2014/04/possui-e-perdi-alguma-coisa-infinita.html
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Priscila.Gontijo 14/03/2015

ENSAIOS E AS MELHORES NOTAS DE RODAPÉ
O livro de ensaios de David Foster Wallace é tão intrigante quanto ácido. Uma das marcas do escritor são suas longas notas de rodapé - que devem ser lidas com atenção. O ensaio sobre Kafka é magistral e me ensinou muito sobre como dar aulas de literatura, o mundo contemporâneo e a superficialidade cotidiana que nos esmaga em hábitos aterradoramente mesquinhos e desesperadores, além de sua visão sobre o humor em Kafka. Crítico contundente da sociedade estadunidense, Wallace escreveu um ensaio chamado: "Isto é água" - discurso de paraninfo - que "viralizou" na internet. À partir desse ensaio escrevi uma peça breve intitulada: "Esse reino minúsculo" porque Wallace é um escritor inspirado e inspirador. Ler os seus textos nos faz olhar para o contemporâneo com um olhar mais arguto, sensível e crítico. Pena que a sua luta contra a depressão tenha levado esse artista genial tão cedo. Mas seu legado é grande e deve ser vivido com dedicação. Atenção para o ensaio: "Pense na lagosta".
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aarrgh 01/05/2015

Sabe quando você tá conversando com uma pessoa e no final você fala, sabe como é?, e ela responde que não, não sabe, ou porque não faz ideia do que você tá falando, ou porque não quer nem ter ideia.

Ehh, David Foster Wallace sabe.

São coisas simples da vida, que todo mundo de alguma forma sente, mas não consegue colocar em palavras.

Se me perguntassem as profissões mais importantes para a sociedade, além dos óbvios como gari, médicos etc., eu diria escritores, porque o que seria do mundo sem livros? Não só os escritores de ficção, mas principalmente os escritores de ficção. O que seria de nós sem os livros para nos mostrar que não estamos sozinhos?

Conversando com um amigo sobre “Isto é água”, ele disse Como uma pessoa que possui tamanho discernimento sobre a vida foi se matar?

Eu disse que a resposta estava na pergunta.


Mais um blog literário pra você ignorar:


site: https://treslendo.wordpress.com/
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Mari 14/05/2015

Há dois peixes jovens nadando ao longo de um rio, e eles por acaso encontram um peixe mais velho nadando na direção oposta, que pisca para eles e diz, “Bom dia, rapazes, como está a água?”. E os dois peixes jovens continuam nadando por um tempo, e então um deles olha pro outro e diz, “Que diabos é água?”.

Se você está preocupado pensando que eu estou planejando me apresentar aqui como o peixe velho e sábio explicando o que é água, por favor não fique. Eu não sou o peixe velho e sábio. O ponto imediato da história dos peixes é que as realidades mais óbvias, ubíquas e importantes são frequentemente as mais difíceis de se ver e discutir. Declarada como uma frase, é claro, isso é só um lugar-comum banal – mas o fato é que, nas trincheiras diárias da existência adulta, lugares-comuns banais podem ter importância de vida ou morte.


É claro que o principal requerimento de discursos de formatura como esse é que eu devo falar sobre o significado da sua educação de Ciências Humanas, tentar explicar por que o diploma que você acabou de receber tem algum valor humano real ao invés de apenas compensação material. Então vamos falar do maior clichê do gênero do discurso de formatura, que é que a educação de ciências humanas não tem o propósito de te encher de conhecimento, mas sim de ensiná-lo a pensar. Aqui vai outra historinha didática:

Tem dois caras sentados juntos num bar numa região remota do Alaska. Um dos caras é religioso, o outro é ateu, e os dois estão discutindo sobre a existência de Deus com a intensidade especial que vem depois da quarta cerveja. E o ateu diz: “Olha, não é como se eu não tivesse razões verdadeiras pra não acreditar em Deus. Não é como se eu nunca tivesse experimentado essa coisa toda de Deus e oração. Mês passado uma nevasca terrível me pegou longe do acampamento, eu tava completamente perdido, e não conseguia ver nada, e tava 25 graus negativos, então eu tentei: eu caí de joelhos na neve e gritei ‘Ó Deus, se existir um Deus, eu tô perdido nessa nevasca, e eu vou morrer se você não me ajudar.'” E agora, no bar, o cara religioso olha pro ateu confuso. “Bem, então você deve acreditar agora”, diz ele. “Afinal, aqui está você, vivo.” O ateu rola os olhos. “Não, cara, o que aconteceu é que dois esquimós por acaso apareceram por lá e me mostraram o caminho do acampamento.”

É fácil fazer uma análise literária dessa história: A mesma exata experiência pode significar duas coisas completamente diferentes para duas pessoas completamente diferentes, considerando os diferentes modelos de crença e as diferentes formas de construir significado de uma experiência. Porque nós valorizamos tolerância e diversidade de crença, não queremos na nossa análise literária afirmar que a interpretação de um cara é verdadeira e a interpretação do outro cara é falsa ou ruim. O que não tem problema, só que nós também acabamos nunca falando sobre de onde vêm esses modelos e crenças diferentes.

Quero dizer: de onde eles vêm dentro dos dois caras? É como se a orientação ao mundo mais básica de uma pessoa, e o significado de sua experiência, fossem de alguma forma simplesmente impressos nos genes, como altura ou tamanho do sapato – ou automaticamente absorvidos da cultura, como linguagem. Como se a forma em que construímos significado não fosse uma questão de escolha pessoal e intencional. Além disso, há toda a questão de arrogância. O cara não-religioso está completamente certo na sua rejeição da possibilidade de que os esquimós tiveram qualquer coisa a ver com sua oração e pedido de ajuda. Verdade, existem também muitas pessoas religiosas que parecem arrogantes e certas de suas próprias interpretações. Elas provavelmente são muito mais repulsivas do que os ateus, pelo menos para a maioria. Mas o problema do religioso dogmático é exatamente o mesmo do descrente da história: certeza cega, uma mente fechada que representa um aprisionamento tão completo que o prisioneiro nem sabe que está encarcerado.

O ponto aqui é que isso é uma parte do que me ensinar como pensar significa. Ser um pouco menos arrogante. Ter um pouco de consciência crítica sobre mim e minhas certezas. Porque uma grande porcentagem das coisas sobre as quais eu costumo automaticamente ter certeza é, na verdade, totalmente errada ou ilusória. Eu aprendi isso do jeito difícil, e eu aposto que vocês também vão.

Aqui vai um exemplo de algo completamente errado que eu costumo automaticamente ter certeza: tudo na minha experiência apóia minha crença profunda de que eu sou o centro absoluto do universo, a pessoa mais real, vívida e importante que existe. Nós raramente falamos sobre esse tipo de egocentrismo natural e básico, porque ele é tão socialmente repulsivo, mas é basicamente o mesmo para todos nós, no fundo. É a nossa configuração padrão, impressa nos nossos circuitos desde o nascimento. Pense nisso: você nunca teve uma experiência da qual você não foi o centro absoluto. O mundo como nós o vemos está bem na sua frente, ou atrás de você, ou à sua esquerda ou à sua direita, na sua TV, no seu monitor, ou o que for. Os pensamentos e sentimentos de outras pessoas precisam ser comunicados pra você de alguma forma, mas os seus próprios são tão imediatos, urgentes, reais… você entendeu.

Mas por favor, não se preocupe pensando que eu estou me preparando pra pregar pra você sobre compaixão ou desprendimento ou as supostas “virtudes”. Isso não é uma questão de virtude, é uma questão de eu escolher fazer o trabalho de alterar ou me livrar da minha configuração padrão natural, que é ser profundamente e literalmente egocêntrico, e ver e interpretar tudo pela lente do eu. Pessoas que conseguem ajustar sua configuração padrão natural dessa forma são geralmente descritas como “bem ajustadas”, o que eu lhe sugiro que não é um termo acidental.

Como vocês devem saber, é extremamente difícil se manter alerta e atento, ao invés de se hipnotizar pelo monólogo constante dentro da sua próprio cabeça (pode estar acontecendo agora). Vinte anos depois da minha gradução, eu cheguei à conclusão de que o clichê sobre a educação de Humanas sobre te ensinar como pensar é na verdade uma simplificação de uma idéia muito mais profunda e séria: aprender como pensar significa como exercer controle sobre como e o que você pensa. Significa estar ciente e consciente o suficiente para escolher no que você presta atenção e escolher como você constrói significado de uma experiência. Porque se você não exercitar esse tipo de escolha na vida adulta, você está lascado.

Pense no velho clichê sobre a mente ser “um ótimo servo mas um terrível mestre.” Esse, como vários outros clichês, tão bobo e broxante na superfície, na verdade expressa uma grande e terrível verdade. Não é mera coincidência que adultos que se suicidam com armas de fogo quase sempre atiram na cabeça. Eles atiram no terrível mestre. E a verdade é que a maioria desses suicídas estão mortos muito antes de puxarem o gatilho. E eu sugiro que esse é o verdadeiro valor da educação de Humanas: como evitar viver sua confortável e próspera vida adulta morto, inconsciente, um escravo da sua cabeça e da sua configuração padrão natural de ser unicamente, completamente, imperialmente sozinho, dia após dia. Isso pode soar como hipérbole ou baboseira abstrata. Vamos deixar mais concreto.

O fato é que vocês jovens graduados não fazem idéia do que realmente significa “dia após dia”. Há por acaso partes enormes da vida adulta americana sobre as quais ninguém fala nesses discursos de formatura. Uma dessas partes envolve tédio, rotina e frustrações triviais. Seus pais vão saber muito bem do que eu estou falando.

Por exemplo, digamos que é um dia comum, e você acorda de manhã, e você vai pro seu trabalho exigente, e você trabalha duro por nove ou dez horas, e no fim do dia você está cansado e estressado, e tudo que você quer fazer é ir pra casa e jantar e talvez relaxar por algumas horas e então cair na cama cedo porque você tem que acordar no dia seguinte e fazer tudo de novo. Mas aí você lembra que não tem comida em casa – você não teve tempo de fazer compras essa semana, por causa do seu trabalho exigente – e então agora, depois do trabalho, você tem que entrar no seu carro e dirigir até o supermercado. É o fim do expediente, e o tráfego está horrível, então chegar no lugar demora muito mais do que deveria, e quando você finalmente chega lá, o supermercado está muito cheio, porque, é claro, é a hora do dia que todas as outras pessoas com emprego também tentam espremer um tempo pra fazer compras, e a iluminação da loja é fluorescente e medonha, e no som toca algum pop corporativo ou Muzak que destrói a alma, e é basicamente o último lugar que você quer estar. Mas você não pode entrar e sair rapidamente: você tem que vagar pelos corredores lotados dessa loja enorme e exageradamente iluminada para achar as coisas que você quer, e você tem que manobrar o seu carrinho de compras enferrujado por todas essas outras pessoas cansadas e apressadas que também empurram carrinhos, e é claro que também estão lá as pessoas idosas se movendo num ritmo glacial e as pessoas espaçosas e as crianças que bloqueiam os corredores e com as quais você tenta ser educado quando pede para elas deixarem você passar – e finalmente, você pega tudo que precisa pro jantar, só que agora não tem caixas abertos suficientes apesar de ser a correria do fim do dia, então a fila do caixa está incrivelmente longa, o que é estúpido e irritante, mas você não pode despejar sua fúria na moça agitada trabalhando no caixa, que está sobrecarregada num emprego cujo tédio diário e insignificância ultrapassam a imaginação de qualquer um de nós nessa faculdade prestigiada.

De qualquer forma, você finalmente chega na frente do caixa, e paga pela sua comida, e espera receber seu cartão autenticado pela máquina, e então desejam-lhe “um bom dia” numa voz que é a absoluta voz da morte, e então você tem que levar seus sacos de plástico frágil no seu carrinho através do estacionamento cheio, esburacado e sujo, e você tenta colocar os sacos no seu carro de forma que tudo não caia das sacolas e role pelo seu porta-malas no caminho para casa, e então você tem que dirigir para casa no tráfego lento de hora do rush, cheio de SUVs e picapes, etc, etc.

O ponto é que merda trivial e frustrante desse tipo é exatamente onde entra o trabalho de escolher. Porque os engarrafamentos e corredores lotados e longas filas do caixa me dão tempo para pensar, e se eu não tomar uma decisão consciente sobre como pensar e no que prestar atenção, eu vou ficar enfezado e miserável toda vez que eu for comprar comida, porque minha configuração padrão natural é a certeza de que situações como essa são na verdade só sobre mim, sobre minha fome e meu cansaço e meu desejo de chegar em casa, e vai parecer que todos os outros estão no meu caminho, e quem é esse povo, mesmo? E olha o quão repulsivo é boa parte deles, e como aqui na fila do caixa eles parecem estúpidos, olhos mortos, não-humanos, como vacas, ou o quão irritante e rude são as pessoas que estão falando alto no celular no meio da fila, e olha como isso é profundamente injusto: eu trabalhei duro o dia inteiro e estou faminto e cansado e não posso nem chegar em casa para comer e relaxar por causa de todo esse maldito povo idiota.

Ou, se eu estou na forma mais socialmente consciente da minha configuração padrão, eu posso passar o tempo no engarrafamento do fim do dia ficando irritado e enojado com todos esses SUVs e picapes e caminhonetes enormes, idiotas, que bloqueiam pistas, queimando e desperdiçando seus tanques egoístas de 40 galões de gasolina, e eu posso considerar o fato de que adesivos religiosos ou patrióticos costumam estar pregados nos veículos maiores e mais egoístas, dirigidos pelos motoristas mais feios, imprudentes e agressivos, que geralmente estão falando no celular enquanto cortam os outros pra avançar 10 metros idiotas num engarrafamento, e eu posso pensar sobre como os filhos dos nossos filhos vão nos desprezar por gastar todo o combustível do futuro e provavelmente estragar o clima, e quão mimados e estúpidos e nojentos nós somos, e como a sociedade consumista moderna é um saco, e assim por diante. Você entendeu.

Se eu escolher pensar assim na loja ou na rua, tudo bem, muitos de nós pensam – só que pensar dessa forma costuma ser fácil e automático e não precisa ser uma escolha. É a minha configuração padrão natural. É a forma automática de como eu vivo as partes chatas, frustrantes e lotadas da vida adulta quando eu estou operando na crença automática, inconsciente de que eu sou o centro do mundo, e que minhas necessidades imediatas e sentimentos são o que deve determinar as prioridades do mundo.

A questão é que, é claro, há formas completamente diferentes de se pensar sobre esses tipos de situações. Nesse trafego, todos esses veículos parados no meu caminho, não é impossível que algumas dessas pessoas nas caminhonetes já estiveram em acidentes de carro horríveis no passado e agora acham dirigir tão aterrorizante que seus terapeutas praticamente ordenaram que elas comprem uma caminhonete grande e pesada para que se sintam seguras o suficiente para dirigir novamente. Ou que a picape que acabou de me cortar talvez esteja sendo dirigida por um pai cujo filho esteja ferido ou doente no banco de passageiros, e ele está tentando levar essa criança pro hospital, e ele está numa pressa maior e mais legítima que a minha – ou seja, sou eu que estou no caminho dele. Ou eu posso me forçar a considerar a possibilidade de que todo mundo na fila do supermercado está tão entediado e frustrado quanto eu, e que algumas dessas pessoas tem uma vida mais difícil, tediosa e dolorosa que a minha.

Novamente, por favor não ache que eu estou dando conselho moral, ou que estou dizendo que você deve pensar dessa forma, ou que qualquer um espere que você automaticamente faça isso. Porque é difícil. Requer determinação e esforço, e se você é como eu, alguns dias você não vai conseguir fazê-lo, ou simplesmente não vai querer.

Mas na maioria dos dias, se você está ciente o bastante para se dar uma escolha, você pode escolher outra forma de olhar para essa senhora obesa, de olhos mortos e maquiagem exagerada, que acabou de gritar com o filho na fila do supermercado. Talvez ela não seja assim, geralmente. Talvez ela esteja acordada três noites seguidas segurando a mão do seu marido que está morrendo de câncer ósseo. Ou talvez essa mesma senhora seja a atendente do departamento de veículos motorizados, que ontem mesmo ajudou a sua esposa resolver algum problema chato através de um pequeno ato de bondade burocrática.

É claro, nada disso é provável, mas também não é impossível. Só depende do que você quer considerar. Se você tem certeza automática de que sabe o que a realidade é, e você está operando na sua configuração padrão, então você, como eu, provavelmente não vai considerar possibilidades que não são irritantes ou miseráveis. Mas se você realmente aprender como prestar atenção, então você saberá que existem outras opções. Estará dentro da sua capacidade vivenciar uma situação lotada, lenta e quente como não só significante, mas sagrada, uma chama como a que criou as estrelas: amor, companheirismo, e a unidade mística de todas as coisas, no fundo.

Não que essa coisa mística seja necessariamente verdade. A única coisa que é Verdade com v maiúsculo é que você decide como vai tentar vê-la.

Essa, eu afirmo, é a verdadeira educação, a de aprender como ser bem ajustado. Você vai conscientemente decidir o que tem significado e o que não tem. Você decide o que venerar.

Porque aqui está algo que é estranho mas real: nas trincheiras diárias da vida adulta, não existe algo como o ateísmo. Não existe “não venerar”. Todo mundo venera. A única escolha que temos é o que venerar. E a razão convincente para talvez escolher venerar algum tipo de deus ou coisa espiritual – seja JC, Alá, ou a Deusa Mãe dos Wicca, ou as Quatro Nobres Verdades, ou algum conjunto de princípios éticos invioláveis – é que praticamente qualquer outra coisa que você venerar vai te comer vivo.

Se você venera dinheiro e coisas, se é aí que você encontra significado verdadeiro na vida, então você nunca terá o suficiente. É a verdade. Venere o seu corpo e beleza e atração sexual, e você sempre vai se sentir feio. E quando o tempo e idade começarem a aparecer, você vai morrer um milhão de mortes antes de finalmente te enterrarem. De certa forma, nós já sabemos dessas coisas. Elas já foram codificadas em mitos, provérbios, clichês, epigramas, parábolas – o esqueleto de toda grande história. O truque é manter a verdade evidente na consciência diária..

Venere o poder, e você vai acabar se sentindo fraco e medroso, e você vai precisar de ainda mais poder sobre os outros para entorpecer o seu próprio medo. Venere seu intelecto, ser visto como esperto, e você vai acabar se sentindo estúpido, uma fraude, sempre à beira de ser descoberto. Mas a coisa insidiosa sobre essas formas de veneração não é que elas são más ou perversas – é que elas são inconscientes. Elas são a configuração padrão. São o tipo de veneração em que você gradualmente se acomoda, dia após dia, ficando mais e mais seletivo sobre o que você vê e como você mede valor sem jamais estar totalmente ciente do que está fazendo.

E o suposto mundo real não irá te desencorajar de operar na sua configuração padrão, porque o suposto mundo real de homens e dinheiro e poder cantarola alegremente numa piscina de medo e raiva e frustração e desejo e veneração de si mesmo. Nossa própria cultura atual canalizou essas forças de formas que geraram extraordinária riqueza e conforto e liberdade pessoal. A liberdade de sermos senhores dos nossos pequenos reinados individuais, do tamanho de nossas caveiras, sozinhos no centro de toda a criação. Esse tipo de liberdade tem vários méritos. Mas é claro que há vários tipos diferentes de liberdades, e no grande mundo lá fora de querer e conseguir, você não irá ouvir muito sobre o tipo mais precioso. O tipo realmente importante de liberdade envolve atenção e consciência e disciplina, e ser capaz de realmente se importar com outras pessoas e se sacrificar por elas repetidamente numa miríade de formas triviais e pouco excitantes.

Essa é a verdadeira liberdade. Isso é ser educado, e saber como pensar. A alternativa é a inconsciência, a configuração padrão, a corrida maluca, a constante e torturante sensação de ter tido, e perdido, alguma coisa infinita.

Eu sei que essas coisas não soam divertidas ou joviais ou grandiosamente inspiradoras como um discurso de formatura deve soar. O que isso é, até onde eu sei, é a Verdade com v maiúsculo, com uma porção de sutilezas retóricas removidas. Você está, é claro, livre para pensar disso o que você quiser. Mas por favor não o rejeite como algum sermão hipócrita. Nada disso é realmente sobre moralidade ou religião ou dogma ou questões fantasiosas sobre vida após a morte. A Verdade com v maiúsculo é sobre vida antes da morte. É sobre o valor real de educação real, que não tem quase nada a ver com conhecimento, e tudo a ver com simples consciência – consciência daquilo que é real e essencial, tão escondido na obviedade ao nosso redor, o tempo todo, que nós temos que continuar relembrando repetidamente:

“Isto é água.”

“Isto é água.”

É inimaginavelmente difícil fazer isso, se manter consciente e vivo no mundo adulto dia após dia. O que significa que mais um grande clichê acaba sendo verdade: sua educação realmente é o trabalho de uma vida toda. Eu lhes desejo muito mais que sorte.
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Raony 21/07/2015

Não sei se foi o Daniel Galera no prefácio, ou sei lá quem em alguma resenha, mas seja quem for que tenha dito que parece que os editores de revistas norte-americanas se divertiam mandando o David Foster Wallace com um bloco de notas por aí estava correto em sua impressão, quer dizer, não que eu tenha comprovado que eles se divertiam, mas diversão é a palavra. E se eu fosse pagar um cruzeiro de luxo para alguém, com o intuito de obter um texto, com certeza seria para esse autor (embora, convenhamos, esse seja um modo bem caro de obter um texto). Enfim, meus preferidos, na ordem:

1) “Uma coisa supostamente divertida que eu nunca mais vou fazer”: o famoso "texto do navio". Realmente hilário e tirando as piras com o banheiro e com tubarões eu realmente me vi lá. Essa sensação de ser intensamente paparicado me deu calafrios de longe.

2)“Federer como experiência religiosa”. Não manjo de tênis, nunca assisti um jogo do Federer, mas que texto, que texto.

3) "Pense na lagosta". Sempre penso na lagosta, e nas vacas, frangos e etc, mas no fim como mesmo assim (digo, nunca comi lagosta, mas comeria)

4) “Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo”. O melhor ponto do texto é quando o título faz sentido. Uma reflexão bem interessante mesmo, tem várias outras partes dignas de nota, mas intercaladas com descrições nem tanto. Um pouco mais irregular que os de cima esse, mais ainda muito bom.

5) Prefácio. Não que o Galera tenha roubado espaço do autor, pelo contrário, a forma com que ele apresenta é um Prefácio com P maiúsculo, discreto, instigante e com direito a "spoiler alert"

6) “Alguns comentários sobre a graça de Kafka dos quais provavelmente não se omitiu o bastante”. Bom discurso, curto, leve e educativo, digamos assim.

7) "Isto é água". Se eu fosse formando logicamente iria adorar ouvir esse discurso, mas no livro achei deslocado, além do que tem cópia a rodo na internet. Legal, mas desnecessário.
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Coruja 02/04/2016

Fui atrás desse livro por indicação de um leitor do blog, que me fez a propaganda comparando-o ao Terry Pratchett. Não tinha como eu resistir a uma analogia como essa, não é verdade? Fora que o título estava sob medida para meu tema de abril no Desafio Corujesco.

Comecei a lê-lo de noite, num dia em que estourou o gerador do meu prédio e ficamos sem energia por quase o dia todo. Só não o terminei no ato porque, para meu azar, tinha esquecido de carregar a bateria do tablet e de repente, não mais que de repente tudo se desligou e eu fiquei no escuro.

A energia voltou pouco antes das onze, deixei tudo que tinha de carregar carregando e fui dormir. No dia seguinte, acordei antes das seis porque precisava continuar a ler esse livro.

Ficando Longe do Fato de Já Estar Meio que Longe de Tudo apresenta uma série de ensaios do David Wallace com temas dos mais variados - de viagens que ele cobriu como jornalista, a partidas de tênis, há um pouco de tudo. Alguns são extraordinariamente bem humorados, mesmo quando o autor se encontra em grandes apuros, outros chegam a ser poéticos em suas reflexões.

Foi muito fácil me identificar com o autor e me colocar nas situações pelas quais ele passa - Wallace não hesita em tirar sarro de si mesmo quando a ocasião é propícia, e tampouco se esquiva de temas espinhos ou de análise crítica. Talvez exatamente por isso eu tenha sentido tão compulsivamente a necessidade de continuar lendo a despeito das dificuldades que foram ocorrendo por causa da falta de energia: esse não é um livro que você possa deixar inacabado.

Eu agradeço muito a recomendação que recebi para buscar esse título. Agora, o que posso fazer é passar a febre adiante. Leiam também e venham depois me dizer o que acharam, ok?

site: http://owlsroof.blogspot.com.br/2016/04/desafio-corujesco-2016-um-livro-com.html
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Felipe Novaes 23/01/2017

David Foster Wallace consegue tornar informativo até a chatice de um artigo sobre tênis (com direito a descrições de jogadas e da indumentária dos jogadores).

Um dos méritos do último capítulo em particular, sobre esse tema, é que ele fala de maneira muito fluida sobre o que diabos faz um jogador afinal ser bom em remexer o corpo como se estivesse dançando tchatchatchá ao mesmo tempo em que golpeia bolas que chegam ao outro lado da quadra em menos de um segundo.

Tem algo a ver com uma habilidade cinestésica incomum, tanto fruto de alguma propensão já que se revela no início da vida quanto de treinamento intenso.

E isso me lembra meus tempos de futebol quase diários no colégio.

É engraçado descrever o que ocorre com jogadores que dependem de altos graus de reflexo. Eu era goleiro, jogava futsal, então reflexo era como a vassoura de um jogador de quadribol. Sem isso não dá nem pra entrar em quadra.

Do lado de fora as pessoas só vêem um goleiro defendendo o gol de bolas bem colocadas e chutes fortes, mas elas não sabem exatamente como isso se dá para a própria pessoa envolvida.

Um goleiro não vê a bola vindo super rápido e então pensa em se mover pro lado certo de maneira tão rápida quanto a bola. Da perspectiva de primeira pessoa é mais ou menos como se a bola parecesse ser mais lenta do que pareceria para os observadores.

Você não pensa, seu corpo simplesmente começa a se ajustar. Se houvesse tempo suficiente você apenas perceberia que seu corpo está fazendo algo sozinho que você não tem ideia do que é. Mas aí você começa a perceber que na verdade tudo isso é o início do movimento que vai te levar até a bola vindo a toda velocidade.

É um exemplo visceral e quase cotidiano de que a nossa racionalidade não importa muito nos momentos realmente rápidos da vida. Você simplesmente faz o que está treinado para fazer, mesmo que nunca tenha percebido que o modo como você conduz sua vida cotidiana, sua atitude mental em relação às coisas que acontecem ou como você leva os esportes, são sim um treinamento -- embora possa não envolver clubes, muito dinheiro e empresários.

E isso me leva diretamente ao conteúdo da maioria dos outros artigos de Wallace, principalmente o sobre água.

Wallace tem uma habilidade impressionante para mostrar percepções que talvez todos tenham, mas que estão tão debaixo dos nossos olhos que às vezes fica difícil ver:

(i) Vivemos num sistema engraçado ao ponto de cultivarmos hábitos degenerativos -- como o entretenimento que nos leva à desatenção permanente, entretenimento e humor como fuga do que realmente interessa --, mas esses hábitos são o combustível para o consumo, que sustenta o conforto superficial (mais entretenimento) e profundo (mais conforto, mais saúde etc).

É como uma máquina que produz jardins às custas de muita sujeira -- sujeira não criada naturalmente, mas em parte produzida justamente pra alimentar esse Uroboros, até que você não tem mais condições de saber como parar a máquina, de saber o que veio primeiro.

(ii) Estamos usando o humor para ficarmos mais burros e distraídos. É como ratos alimentados experimentalmente com cocaína, para correrem cada vez mais na rodinha da gaiola e esquecer do fato de que estão ali presos numa gaiola.

(iv) Cultivamos hábitos mentais (falando num sentido amplo aqui). Desconstruir esses hábitos é tão difícil quanto ser obeso e se engajar numa dieta. Mas é necessário. MUITO.

(v) LEIAM ESSE LIVRO
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