Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo

Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo David Foster Wallace




Resenhas - Ficando Longe do Fato de Já Estar Meio Que Longe de Tudo


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Vilto 13/11/2012

Resenha: Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo – David Foster Wallace
Adquiri um novo vício literário: ler livros de ensaios. Estranho? Não! Se você é um curioso daqueles que vivem querendo saber de vários assuntos ao mesmo tempo; ler ensaios se torna um hábito muito rápido.

Veio a calhar então a leitura de Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo, de David Foster Wallace, publicado pela Companhia das Letras. Por que não misturar filosofia com bom humor? Wallace faz isso com maestria. O livro é composto de uma seleção de seis textos do autor; e ainda vem com o prefácio escrito por Daniel Galera (a tradução também é dele).

Entre os textos, há três reportagens, digamos, sem um compromisso jornalístico real. É na verdade um escritor colocando-se no papel de jornalista. Logo de cara, o leitor acompanha Wallace numa incursão por uma feira no interior americano; mas o que poderia parecer apenas um diário de bordo, torna-se uma experiência de questionamentos sobre a vida, a posse sobre ela, entre outros; juntamente com uma amiga a quem o autor chama de “acompanhante nativa” – este ensaio dá título ao livro. Agora imagine-se viajando num cruzeiro pelo Caribe, mas olhando tudo através da refinada lente de um observador que surpreende por sua minuciosidade; e assim você passa pelas páginas do ensaio “Uma coisa supostamente divertida que eu nunca mais vou fazer”. Nem bem saiu do cruzeiro, o leitor já acompanha Wallace noutra feira americana, mas desta vez focada na venda, produção e consumo de lagostas. O título “Pense na Lagosta” não é por acaso. Então pondo na mesa todos os argumentos, Wallace questiona até que ponto podemos acabar com uma vida, em virtude de atender o nosso paladar. E assim, depois da deliciosa reflexão, ou não, dependendo de cada estômago, surge uma palestra ministrada por Wallace sobre Kafka; onde ele analisa o porquê de a sociedade atual, pautada num humor instantâneo, não conseguir ver graça nos textos de Kafka. “Isto é água”, o texto que vem a seguir, é um discurso que o escritor proferiu como paraninfo; e que acabou se tornando um viral na internet. Fechando o livro, vem a crônica jornalística “Federer como experiência religiosa”, em que Wallace discorre sobre sua paixão pelo tênis, refletindo nos atributos esportivos do jogador suíço Roger Federer.

E finalmente, por que ler Wallace?
Se depois de tudo isso, você ainda não se convenceu; então aí vai mais um argumento. Para quem gosta de saber sobre o autor que existe por trás do texto; este livro cumpre com todas as expectativas. David Foster Wallace se suicidou em 2008, deixando um romance incompleto; porém se você conferir o livro, na minha opinião, já começa a notar alguns indícios desta possibilidade quando ele fala sobre a solidão de estar num cruzeiro. É só uma pitadinha a mais para despertar a sua curiosidade, mas acho que pode surtir efeito.

Como nada é perfeito, penso que ouve um equívoco em relação a escolha da capa do livro; pois algumas pessoas que me viram com ele na mão, chegaram a perguntar “que livro de adolescente era este que eu estava lendo”. Eu não me incomodo com isto, mas vale dizer que é um livro para quem gosta de pensar e se divertir ao mesmo tempo; e como tal, cumpre muito bem o seu papel.


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Geisa 09/01/2013minha estante
Olá, Vilto.

Achei bem bacana sua resenha. Comprei em ebook esta edição por estar estudando ensaios.
Nunca li nada deste autor e pelas notas e indicações vou começar a ler logo.

Já que gosta de ensaios, teria outros título a indicar? Fui no teu site, mas não encontrei uma tag ou indicações sobre ensaios.

Obrigada!


Vilto 09/01/2013minha estante
Olá, Geisa.

Não sei se é muito do teu interesse, mas há o livro "O zen e a arte da escrita - Ray Bradbury", que na verdade é de ensaios, apesar do título. Outro livro que quero ler ainda este mês é "O que eu falo quando falo sobre corrida - Haruki Murakami", que também é um ensaio.

É o que me ocorre em mente no momento.

Obrigado pelo comentário.




Julyana. 16/03/2013

This is water! ♥
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Guilherme Lopes 16/02/2020

Ah como é bom ler um livro do David, comecei com Graça infinita, depois breves entrevistas com homens hediondos e pra finalizar essa antologia de textos. Com humor ácido e provocativo David nos leva para uma reflexão sobre nosso estilo de vida e nossa atribuição do que tem e o que não tem valor. Essa é uma resenha bem superficial mas a experiência de ler David deve ser apreciada pra quem ama literatura e gosta de ser provocado durante a leitura.
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Rics 08/06/2020

Belo, na definição do próprio autor
Todos os ensaios são maravilhosos.
Estou amando sua escrita de ficção também, mas esses ensaios me agradaram mais.
Lê-los foi uma experiência/alegria idêntica à que ele descreve em Federer como experiência religiosa.
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aarrgh 01/05/2015

Sabe quando você tá conversando com uma pessoa e no final você fala, sabe como é?, e ela responde que não, não sabe, ou porque não faz ideia do que você tá falando, ou porque não quer nem ter ideia.

Ehh, David Foster Wallace sabe.

São coisas simples da vida, que todo mundo de alguma forma sente, mas não consegue colocar em palavras.

Se me perguntassem as profissões mais importantes para a sociedade, além dos óbvios como gari, médicos etc., eu diria escritores, porque o que seria do mundo sem livros? Não só os escritores de ficção, mas principalmente os escritores de ficção. O que seria de nós sem os livros para nos mostrar que não estamos sozinhos?

Conversando com um amigo sobre “Isto é água”, ele disse Como uma pessoa que possui tamanho discernimento sobre a vida foi se matar?

Eu disse que a resposta estava na pergunta.


Mais um blog literário pra você ignorar:


site: https://treslendo.wordpress.com/
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Angelo 05/01/2013

Excelentes ensaios de David Foster Wallace
Este livro reúne uma série de ensaios escritos pelo escritor norte-americano David Foster Wallace. O primeiro deles, que dá título ao livro, envolve a cobertura de uma feira agrícola no estado de Illinois, a qual termina por ser uma descrição crítica de parte importante da sociedade norte-americana. Já o segundo ensaio, o meu preferido do livro, aborda um cruzeiro marítimo pelo Caribe para o qual David Foster Wallace foi mandado e o qual ele define como uma atividade supostamente divertida da qual ele nunca mais participará. O terceiro ensaio é a transcrição de uma pequena palestra por ele proferida a respeito de Kafka, da qual extraí esta pequena pérola: "a jornada interminável e impossível rumo a nosso lar é, na verdade, o nosso lar". Pense na Lagosta, o quarto ensaio, contém as suas reflexões sobre a eticidade de ferver este crustáceo vivo para nosso exclusivo deleite gastronômico. O quinto texto, Isto é Água, é a reprodução de seu já famoso discurso como paraninfo, o qual pode ser encontrado em vários sítios da internet e em vídeos do youtube. Por fim, no último ensaio, o autor traça um paralelo entre a experiência de assistir a partidas de tênis de Federer e o fenômeno religioso.

Em resumo, o texto de David Foster Wallace é fluido, repleto de observações instigantes, profundas e que são, a exemplo do próprio Kafka objeto de um dos ensaios, ao mesmo tempo cômicas e trágicas. A minha impressão de que este é um grande livro que merece sinceras recomendações pode ser melhor avaliada sabendo-se não ser o ensaio um dos meus gêneros literários favoritos.

A experiência da leitura só não foi melhor em razão das notas de rodapé e do Kindle. É sabido que David Foster Wallace usa notas de rodapé em grande volume e que elas são parte importante de seus textos. Ocorre, contudo, que ler notas de rodapé não é das coisas mais fáceis quando se está com o Kindle. É necessário usar os botões direcionais até o ponto do texto em que está a nota e apertar o botão central por duas vezes para ser direcionado ao final do capítulo. Após ler a nota de rodapé, deve-se apertar o botão de retorno para voltar ao texto. Como a minha paciência rapidamente se esgotou com esse vai-vém, terminei consultando apenas as notas que, por instinto, achava que seriam mais interessantes.

Ao final, saio com vontade de ler Infinite Jest e com um grande dilema: compro um exemplar físico, com todos os problemas de ler um livro com essa extensão e esse peso, ou compro o ebook e sofro com a leitura de grande número das notas de rodapé?
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Carina 13/09/2013

Ensaios sarcásticos e alguma filosofia
A coletânea começa com um ensaio longo e altamente mordaz sobre uma feira agropecuária no interior dos Estados Unidos. Por mais que o foco do escritor pareça ser atacar cada elemento que compõe o cenário, o pessimismo não impede a diversão do leitor. As ironias no texto são muito bem construídas, por meio de um discurso que sequer passa perto do politicamente correto. Para quem mora em cidades do interior, não há como não identificar alguns estereótipos delineados por Wallace - as filas enormes em busca de comida, os concursos de Miss Morango (ou coisa que o valha), as pessoas suadas e carregadas de compras, as apresentações de grupos principiantes de dança country...

No segundo ensaio, porém, começamos a perceber algo além do sarcasmo de David Foster - suas reflexões, ainda que permeadas de ironias, são profundas. Ao analisar a tripulação viajante em um cruzeiro de luxo, por exemplo, o autor questiona se a vontade de registrar cada momento com câmeras, de participar de todas as atividades oferecidas pelo navio, de comprar lembranças inúteis com os nativos não são atitudes que revelam o desespero de quem não quer passar a vida em branco, uma espécie de autoafirmação diante da morte:

"Algumas semanas antes (…), um rapaz de dezessete anos se atirou do convés superior de um meganavio (…), um suicídio. Segundo a versão noticiada, foi um caso adolescente de amor frustrado, um romance a bordo que terminou mal etc. Creio que em parte foi outra coisa (…). Existe algo de insuportavelmente triste num Cruzeiro de Luxo comercial. Como a maioria das coisas insuportavelmente tristes, parece incrivelmente esquivo e complexo em suas causas e simples em seu efeito: a bordo do Nadir – especialmente à noite, quando cessam as diversões organizadas, as gentilezas e o barulho animado no navio – eu senti desespero. Desespero é uma palavra que foi desgastada até se tornar banal, mas é uma palavra séria e estou usando-a com seriedade. Para mim, ela denota uma mistura simples – um estranho anseio pela morte combinado com um sentimento esmagador da minha pequenez e da minha futilidade, que se apresenta como um medo da morte. Talvez seja algo próximo daquilo que as pessoas chamam de pavor ou angústia. Mas é bem outra coisa. É como desejar morrer para escapar da sensação insuportável de compreender que sou pequeno e fraco e egoísta e que sem a menor dúvida vou morrer. É querer se atirar do navio (…). Eu, que antes desse cruzeiro nunca estivera no oceano, sempre associei o oceano com pavor e morte."

O discurso de paraninfo "Isto é água" é absolutamente antológico. Indo na contracorrente do clima de euforia da formatura, o escritor alerta seus alunos para as pequenas tristezas que os esperam na vida adulta. Segundo Wallace, é preciso força para aguentar as decepções do cotidiano sem dar um tiro na cabeça (um triste discurso, se lembrarmos o fato do escritor ter se suicidado alguns anos depois).

"Pense na lagosta" é um ensaio sobre nossa necessidade de não pensar na carne enquanto proveniente de um ser vivo. O discurso da falta de ética no tratamento com os animais é especialmente tocante por vir de alguém que não milita pela causa vegetariana, mas que consegue enxergar as contradições de seu próprio discurso.

Por fim, o texto sobre Federer é voltado para quem entende das técnicas do jogo de tênis, mas não deixa de ser interessante.



Isto é água


Dois peixinhos estão nadando juntos e cruzam com um peixe mais velho, nadando em sentido contrário. Ele os cumprimenta e diz:

- Bom dia, meninos. Como está a água?

Os dois peixinhos nadam mais um pouco, até que um deles olha para o outro e pergunta:

- Água? Que diabo é isso?

Não se preocupem, não pretendo me apresentar a vocês como o peixe mais velho e sábio que explica o que é água ao peixe mais novo. Não sou um peixe velho e sábio. O ponto central da história dos peixes é que a realidade mais óbvia, ubíqua e vital costuma ser a mais difícil de ser reconhecida. Enunciada dessa -forma, a frase soa como uma platitude - masé fato que, nas trincheiras do dia-a-dia da existência adulta, lugares comuns banais podem adquirir uma importância de vida ou morte.

Boa parte das certezas que carrego comigo acabam se revelando totalmente equivocadas e ilusórias. Vou dar como exemplo uma de minhas convicções automáticas: tudo à minha volta respalda a crença profunda de que eu sou o centro absoluto do universo, de que sou a pessoa mais real, mais vital e essencial a viver hoje. Raramente mencionamos esse egocentrismo natural e básico, pois parece socialmente repulsivo, mas no fundo ele é familiar a todos nós. Ele faz parte de nossa configuração padrão, vem impresso em nossos circuitos ao nascermos.

Querem ver? Todas as experiências pelas quais vocês passaram tiveram, sempre, um ponto central absoluto: vocês mesmos. O mundo que se apresenta para ser experimentado está diante de vocês, ou atrás, à esquerda ou à direita, na sua tevê, no seu monitor, ou onde for. Os pensamentos e sentimentos dos outros precisam achar um caminho para serem captados, enquanto o que vocês sentem e pensam é imediato, urgente, real. Não pensem que estou me preparando para fazer um sermão sobre compaixão, desprendimento ou outras "virtudes". Essa não é uma questão de virtude - trata-se de optar por tentar alterar minha configuração padrão original, impressa nos meus circuitos. Significa optar por me libertar desse egocentrismo profundo e literal que me faz ver e interpretar absolutamente tudo pelas lentes do meu ser.

Num ambiente de excelência acadêmica, cabe a pergunta: quanto do esforço em adequar a nossa configuração padrão exige de sabedoria ou de intelecto? A pergunta é capciosa. O risco maior de uma formação acadêmica - pelo menos no meu caso - é que ela reforça a tendência a intelectualizar demais as questões, a se perder em argumentos abstratos, em vez de simplesmente prestar atenção ao que está ocorrendo bem na minha frente.

Estou certo de que vocês já perceberam o quanto é difícil permanecer alerta e atento, em vez de hipnotizado pelo constante monólogo que travamos em nossas cabeças. Só vinte anos depois da minha formatura vim a entender que o surrado clichê de "ensinar os alunos como pensar" é, na verdade, uma simplificação de uma idéia bem mais profunda e séria. "Aprender a pensar" significa aprender como exercer algum controle sobre como e o que cada um pensa. Significa ter plena consciência do que escolher como alvo de atenção e pensamento. Se vocês não conseguirem fazer esse tipo de escolha na vida adulta, estarão totalmente à deriva.

Lembrem o velho clichê: "A mente é um excelente servo, mas um senhorio terrível." Como tantos clichês, também esse soa inconvincente e sem graça. Mas ele expressa uma grande e terrível verdade. Não é coincidência que adultos que se suicidam com armas de fogo quase sempre o façam com um tiro na cabeça. Só que, no fundo, a maioria desses suicidas já estava morta muito antes de apertar o gatilho. Acredito que a essência de uma educação na área de humanas, eliminadas todas as bobagens e patacoadas que vêm junto, deveria contemplar o seguinte ensinamento: como percorrer uma confortável, próspera e respeitável vida adulta sem já estar morto, inconsciente, escravizado pela nossa configuração padrão - a de sermos singularmente, completamente, imperialmente sós.

Isso também parece outra hipérbole, mais uma abstração oca. Sejamos concretos então. O fato cru é que vocês, graduandos, ainda não têm a mais vaga idéia do significado real do que seja viver um dia após o outro. Existem grandes nacos da vida adulta sobre os quais ninguém fala em discursos de formatura. Um desses nacos envolve tédio, rotina e frustração mesquinha.

Vou dar um exemplo prosaico imaginando um dia qualquer do futuro. Você acordou de manhã, foi para seu prestigiado emprego, suou a camisa por nove ou dez horas e, ao final do dia, está cansado, estressado, e tudo que deseja é chegar em casa, comer um bom prato de comida, talvez relaxar por umas horas, e depois ir para cama, porque terá de acordar cedo e fazer tudo de novo. Mas aí lembra que não tem comida na geladeira. Você não teve tempo de fazer compras naquela semana, e agora precisa entrar no carro e ir ao supermercado. Nesse final de dia, o trânsito está uma lástima.

Quando você finalmente chega lá, o supermercado está lotado, horrivelmente iluminado com lâmpadas fluorescentes e impregnado de uma música ambiente de matar. É o último lugar do mundo onde você gostaria de estar, mas não dá para entrar e sair rapidinho: é preciso percorrer todos aqueles corredores superiluminados para encontrar o que procura, e manobrar seu carrinho de compras de rodinhas emperradas entre todas aquelas outras pessoas cansadas e apressadas com seus próprios carrinhos de compras. E, claro, há também aqueles idosos que não saem da frente, e as pessoas desnorteadas, e os adolescentes hiperativos que bloqueiam o corredor, e você tem que ranger os dentes, tentar ser educado, e pedir licença para que o deixem passar. Por fim, com todos os suprimentos no carrinho, percebe que, como não há caixas suficientes funcionando, a fila é imensa, o que é absurdo e irritante, mas você não pode descarregar toda a fúria na pobre da caixa que está à beira de um ataque de nervos.

De qualquer modo, você acaba chegando à caixa, paga por sua comida e espera até que o cheque ou o cartão seja autenticado pela máquina, e depois ouve um "boa noite, volte sempre" numa voz que tem o som absoluto da morte. Na volta para casa, o trânsito está lento, pesado etc. e tal.

É num momento corriqueiro e desprezível como esse que emerge a questão fundamental da escolha. O engarrafamento, os corredores lotados e as longas filas no supermercado me dão tempo de pensar. Se eu não tomar uma decisão consciente sobre como pensar a situação, ficarei irritado cada vez que for comprar comida, porque minha configuração padrão me leva a pensar que situações assim dizem respeito a mim, a minha fome, minha fadiga, meu desejo de chegar logo em casa. Parecerá sempre que as outras pessoas não passam de estorvos. E quem são elas, aliás? Quão repulsiva é a maioria, quão bovinas, e inexpressivas e desumanas parecem ser as da fila da caixa, quão enervantes e rudes as que falam alto nos celulares.

Também posso passar o tempo no congestionamento zangado e indignado com todas essas vans, e utilitários e caminhões enormes e estúpidos, bloqueando as pistas, queimando seus imensos tanques de gasolina, egoístas e perdulários. Posso me aborrecer com os adesivos patrióticos ou religiosos, que sempre parecem estar nos automóveis mais potentes, dirigidos pelos motoristas mais feios, desatenciosos e agressivos, que costumam falar no celular enquanto fecham os outros, só para avançar uns 20 metros idiotas no engarrafamento. Ou posso me deter sobre como os filhos dos nossos filhos nos desprezarão por desperdiçarmos todo o combustível do futuro, e provavelmente estragarmos o clima, e quão mal-acostumados e estúpidos e repugnantes todos nós somos, e como tudo isso é simplesmente pavoroso etc. e tal.

Se opto conscientemente por seguir essa linha de pensamento, ótimo, muitos de nós somos assim - só que pensar dessa maneira tende a ser tão automático que sequer precisa ser uma opção. Ela deriva da minha configuração padrão.

Mas existem outras formas de pensar. Posso, por exemplo, me forçar a aceitar a possibilidade de que os outros na fila do supermercado estão tão entediados e frustrados quanto eu, e, no cômputo geral, algumas dessas pessoas provavelmente têm vidas bem mais difíceis, tediosas ou dolorosas do que eu.

Fazer isso é difícil, requer força de vontade e empenho mental. Se vocês forem como eu, alguns dias não conseguirão fazê-lo, ou simplesmente não estarão a fim. Mas, na maioria dos dias, se estiverem atentos o bastante para escolher, poderão preferir olhar melhor para essa mulher gorducha, inexpressiva e estressada que acabou de berrar com a filhinha na fila da caixa. Talvez ela não seja habitualmente assim. Talvez ela tenha passado as três últimas noites em claro, segurando a mão do marido que está morrendo. Ou talvez essa mulher seja a funcionária mal remunerada do Departamento de Trânsito que, ontem mesmo, por meio de um pequeno gesto de bondade burocrática, ajudou algum conhecido seu a resolver um problema insolúvel de documentação.

Claro que nada disso é provável, mas tampouco é impossível. Tudo depende do que vocês queiram levar em conta. Se estiverem automaticamente convictos de conhecerem toda a realidade, vocês, assim como eu, não levarão em conta possibilidades que não sejam inúteis e irritantes. Mas, se vocês aprenderam como pensar, saberão que têm outras opções. Está ao alcance de vocês vivenciarem uma situação "inferno do consumidor" não apenas como significativa, mas como iluminada pela mesma força que acendeu as estrelas.

Relevem o tom aparentemente místico. A única coisa verdadeira, com V maiúsculo, é que vocês precisam decidir conscientemente o que, na vida, tem significado e o que não tem.

Na trincheira do dia-a-dia, não há lugar para o ateísmo. Não existe algo como "não venerar". Todo mundo venera. A única opção que temos é decidir o que venerar. E o motivo para escolhermos algum tipo de Deus ou ente espiritual para venerar - seja Jesus Cristo, Alá ou Jeová, ou algum conjunto inviolável de princípios éticos - é que todo outro objeto de veneração te engolirá vivo. Quem venerar o dinheiro e extrair dos bens materiais o sentido de sua vida nunca achará que tem o suficiente. Aquele que venerar seu próprio corpo e beleza, e o fato de ser sexy, sempre se sentirá feio - e quando o tempo e a idade começarem a se manifestar, morrerá um milhão de mortes antes de ser efetivamente enterrado.

No fundo, sabemos de tudo isso, que está no coração de mitos, provérbios, clichês, epigramas e parábolas. Ao venerar o poder, você se sentirá fraco e amedrontado, e precisará de ainda mais poder sobre os outros para afastar o medo. Venerando o intelecto, sendo visto como inteligente, acabará se sentindo burro, um farsante na iminência de ser desmascarado. E assim por diante.

O insidioso dessas formas de veneração não está em serem pecaminosas - e sim em serem inconscientes. São o tipo de veneração em direção à qual você vai se acomodando quase que por gravidade, dia após dia. Você se torna mais seletivo em relação ao que quer ver, ao que valorizar, sem ter plena consciência de que está fazendo uma escolha.

O mundo jamais o desencorajará de operar na configuração padrão, porque o mundo dos homens, do dinheiro e do poder segue sua marcha alimentado pelo medo, pelo desprezo e pela veneração que cada um faz de si mesmo. A nossa cultura consegue canalizar essas forças de modo a produzir riqueza, conforto e liberdade pessoal. Ela nos dá a liberdade de sermos senhores de minúsculos reinados individuais, do tamanho de nossas caveiras, onde reinamos sozinhos.

Esse tipo de liberdade tem méritos. Mas existem outros tipos de liberdade. Sobre a liberdade mais preciosa, vocês pouco ouvirão no grande mundo adulto movido a sucesso e exibicionismo. A liberdade verdadeira envolve atenção, consciência, disciplina, esforço e capacidade de efetivamente se importar com os outros - no cotidiano, de forma trivial, talvez medíocre, e certamente pouco excitante. Essa é a liberdade real. A alternativa é a torturante sensação de ter tido e perdido alguma coisa infinita.

Pensem de tudo isso o que quiserem. Mas não descartem o que ouviram como um sermão cheio de certezas. Nada disso envolve moralidade, religião ou dogma. Nem questões grandiosas sobre a vida depois da morte. A verdade com V maiúsculo diz respeito à vida antes da morte. Diz respeito a chegar aos 30 anos, ou talvez aos 50, sem querer dar um tiro na própria cabeça. Diz respeito à consciência - consciência de que o real e o essencial estão escondidos na obviedade ao nosso redor - daquilo que devemos lembrar, repetindo sempre: "Isto é água, isto é água."

É extremamente difícil lembrar disso, e permanecer consciente e vivo, um dia depois do outro.
***
Agora tenho 33 anos de idade e sinto que muito tempo passou e vai passando mais rápido a cada dia. Dia após dia preciso fazer todo tipo de escolhas sobre aquilo que é bom, importante e divertido, e depois preciso conviver com o confisco de todas as outras opções que essas escolhas eliminam. E começo a perceber que à medida que o tempo ganhar ímpeto minhas escolhas vão se dar num campo mais estreito e as eliminações serão multiplicadas em ritmo exponencial até eu chegar a algum ponto de algum ramo qualquer dentre as suntuosas ramificações complexas da vida onde estarei completamente trancado e cravado num único caminho e o tempo passará voando por mim em fases de estase, atrofia e decadência até eu cair pela terceira vez, toda a luta em vão, afogado pelo tempo. É apavorante. Mas como serei trancado pelas minhas próprias escolhas, parece inevitável — se desejo ser adulto de algum jeito, preciso fazer escolhas e lamentar eliminações e tentar viver com isso.
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Gabriel Leite 28/04/2014

Possuí e Perdi Alguma Coisa Infinita
Dois mil e catorze e eu acabo de descobrir esse gênero chamado ensaio. Claro que já tinha lido alguns ensaios na minha vida, mas nunca tinha me dado conta de que o nome daquilo era ensaio. Enfim. Acabei viciando. Gastei dinheiro no Kindle, investi tempo e saúde e conheci David Foster Wallace, o autor de Ficando Longe do Fato de Já Estar Meio que Longe de Tudo.

Quando eu digo conheci, é conheci realmente. E isso é uma das coisas legais de se ler uma coletânea de ensaios (principalmente a coletânea de ensaios de um cara que tem a cabeça como a do David Foster Wallace). O mergulho na mente, na capacidade narrativa e descritiva do autor é tão profundo que, por vezes, você se pega pensando como um D. F. Wallace em plena praça de alimentação do Conjunto Nacional, o que torna a vida inviável. Por outro lado, você, de certa forma, faz um amigo (vomitem, ridículos). Você passa horas numa conversa sem volta com esse homem que te faz rir e te faz pensar e quase te faz dormir, antes de te assaltar com uma construção genial e te fazer acordar. É um pouco estranho, mas você se acostuma (e no final, até ama).

O livro reúne alguns ensaios sobre, por exemplo, cruzeiros de luxo, a problemática de se cozinhar lagostas ainda vivas e as razões pelas quais Federer é o melhor ser humano que já pisou neste planeta. Todos muito bem escritos. Cheios de detalhes precisos, jornalísticos e, ao mesmo tempo, completamente descompromissados com as coisas "naturalmente" primordiais. Uma das coisas mais legais do D. F. Wallace é essa capacidade de enxergar aquele detalhe que, à primeira vista, não parece muito digno de nota, mas que cresce com o texto e encontra correspondentes muito íntimos na nossa própria memória. Daí talvez a certeza de ter conhecido um ensaísta que se matou há seis anos. Seu texto tem a capacidade de nos ensinar algumas coisas fantásticas e, ao mesmo tempo, deixar a sensação de que, no fundo, nós sempre soubemos essas coisas.

Fiquei um pouco angustiado do meio pro final. Não pela qualidade do texto (até porque o texto é realmente impecável), mas porque Wallace tem uma visão muito pessimista, cíclica e perdida da existência humana. No meu ensaio preferido dessa coletânea (Isto É Água, que na verdade é um discurso de formatura que Wallace teve que fazer para alguma turma) ele descreve, com precisão, esse ciclo de fracassos e fala sobre a única alternativa possível. Só por esse trecho, o livro já valeria a pena.

"A única verdade com V maiúsculo é que quem decide como vai tentar ver as coisas são vocês mesmos. Essa, a meu ver, é a liberdade de uma educação autêntica, de aprender a ser bem ajustado: poder decidir conscientemente o que tem significado e o que não tem. Poder decidir o que venerar…

Pois aqui está uma outra verdade. Nas trincheiras cotidianas de uma vida adulta, não existe isso de ateísmo. Não existe isso de não venerar. Todo mundo venera. Nossa única escolha é "o que" venerar. E se existe uma ótima razão para talvez venerar algum tipo de deus ou coisa espiritual - seja Jesus Cristo ou Alá, yhwh ou uma deusa-mãe wiccan, as Quatro Verdades Nobres ou algum conjunto inviolável de princípios éticos - é que provavelmente todas as outras coisas vão devorar vocês vivos. Quem venerar o dinheiro e os bens materiais, quem buscar neles o sentido da vida, nunca terá o suficiente. Nunca terá a sensação de que tem o suficiente. É a verdade. Quem venerar o próprio corpo, beleza e encanto sexual sempre vai se achar feio, e quando o tempo e a idade começarem a deixar marcas morrerá um milhão de mortes antes de finalmente ser enterrado por alguém. (...) Quem venerar o poder vai se sentir fraco e amedrontado, e precisará de cada vez mais poder para conseguir afastar o medo. Quem venerar o intelecto, ser visto como inteligente, vai acabar se sentindo burro, uma fraude na iminência de ser desmascarada. E por aí vai.

Essas formas de venerar são traiçoeiras não por serem malignas ou pecaminosas, mas por serem inconscientes. São configurações padrão. É o tipo de veneração pelo qual nos deixamos levar gradualmente, dia após dia, e que nos torna cada vez seletivos em relação ao que vemos e a como atribuímos valor às coisas, sem jamais termos plena consciência do que é isso que estamos fazendo. E o suposto 'mundo real' nunca desencorajará vocês de operarem nas configurações padrão, porque o suposto 'mundo real' dos homens, do dinheiro e do poder avança tranquilamente movido pelo medo, pelo desprezo, pela frustração, pela ânsia e pela veneração do ego. Nossa cultura atual canalizou essas forças de modo a produzir doses extraordinárias de riqueza, conforto e liberdade pessoal. A liberdade de sermos senhores de reinos minúsculos, do tamanho dos nossos crânios, sozinhos dentro de toda a criação. Esse tipo de liberdade tem seus méritos. Mas é óbvio que há liberdades dos mais variados tipos, e no vasto mundo lá de fora, onde o que importa é vencer, conquistar e se exibir, vocês não ouvirão falar muito do tipo mais precioso de todos. O tipo realmente importante de liberdade requer atenção, consciência, disciplina, esforço e a capacidade de se importar genuinamente com os outros e de se sacrificar por eles inúmeras vezes, todos os dias, numa miríade de formas corriqueiras e pouco excitantes. Essa é a verdadeira liberdade. Isso é ter aprendido a pensar. A alternativa é a inconsciência, a configuração padrão, a 'corrida de ratos' - a sensação permanente e corrosiva de ter possuído e perdido alguma coisa infinita."

site: http://amortemecaibem.blogspot.com.br/2014/04/possui-e-perdi-alguma-coisa-infinita.html
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Gabriel 10/07/2020

Fenomenal e profundo
É muito difícil explicar os ensaios desse livro. Uma coletânea fenomenal de análises profundas das coisas mais simples em situações quase absurdas.

David Foster Wallace descreve tudo com perfeição. É absolutamente divertido de ler e seguir sua visão de mundo.

Simplesmente perfeito.
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Barulhista 24/06/2020

Ironia
Dfw é mesmo o mestre da ironia. Esse livro foi o primeiro dele que li e foi o que abriu as portas para um nível de escrita que há tempos não se ouvia falar. Ao ler percebo uma áurea de coragem e inteligência.
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ees_elisa 19/02/2023

Isto é água
Ainda não li os outros ensaios, mas o número 5, ?isto é água? é uma leitura indispensável.
é muito difícil ser consciente da água e dos esquimós ao meu redor.
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Emerson Souza 14/05/2021

Achei bem interessante, é a primeira que eu leio algo do David Foster Wallace.
Apesar de ser um livro de ensaios deu para ter uma ideia de como é a escrita do autor.
Sobre os textos eu achei mais interessante quando ele disserta sobre coisas que estão fora do mundo dele, por exemplo o cruzeiro e feira agropecuária, nesses textos eu tive a impressão de me conectar mais com ele e entender do que ele tava falando.
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Ronaldo 05/01/2014

Faltam tradutores
Quantos autores maravilhosos como esse não são trazidos para o Brasil? Um livro escrito em linguagem tão macia que ficasse triste quando acaba, e pior é saber que querendo ler mais do autor, tem de ler no original em inglês!
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Priscila.Gontijo 14/03/2015

ENSAIOS E AS MELHORES NOTAS DE RODAPÉ
O livro de ensaios de David Foster Wallace é tão intrigante quanto ácido. Uma das marcas do escritor são suas longas notas de rodapé - que devem ser lidas com atenção. O ensaio sobre Kafka é magistral e me ensinou muito sobre como dar aulas de literatura, o mundo contemporâneo e a superficialidade cotidiana que nos esmaga em hábitos aterradoramente mesquinhos e desesperadores, além de sua visão sobre o humor em Kafka. Crítico contundente da sociedade estadunidense, Wallace escreveu um ensaio chamado: "Isto é água" - discurso de paraninfo - que "viralizou" na internet. À partir desse ensaio escrevi uma peça breve intitulada: "Esse reino minúsculo" porque Wallace é um escritor inspirado e inspirador. Ler os seus textos nos faz olhar para o contemporâneo com um olhar mais arguto, sensível e crítico. Pena que a sua luta contra a depressão tenha levado esse artista genial tão cedo. Mas seu legado é grande e deve ser vivido com dedicação. Atenção para o ensaio: "Pense na lagosta".
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Coruja 02/04/2016

Fui atrás desse livro por indicação de um leitor do blog, que me fez a propaganda comparando-o ao Terry Pratchett. Não tinha como eu resistir a uma analogia como essa, não é verdade? Fora que o título estava sob medida para meu tema de abril no Desafio Corujesco.

Comecei a lê-lo de noite, num dia em que estourou o gerador do meu prédio e ficamos sem energia por quase o dia todo. Só não o terminei no ato porque, para meu azar, tinha esquecido de carregar a bateria do tablet e de repente, não mais que de repente tudo se desligou e eu fiquei no escuro.

A energia voltou pouco antes das onze, deixei tudo que tinha de carregar carregando e fui dormir. No dia seguinte, acordei antes das seis porque precisava continuar a ler esse livro.

Ficando Longe do Fato de Já Estar Meio que Longe de Tudo apresenta uma série de ensaios do David Wallace com temas dos mais variados - de viagens que ele cobriu como jornalista, a partidas de tênis, há um pouco de tudo. Alguns são extraordinariamente bem humorados, mesmo quando o autor se encontra em grandes apuros, outros chegam a ser poéticos em suas reflexões.

Foi muito fácil me identificar com o autor e me colocar nas situações pelas quais ele passa - Wallace não hesita em tirar sarro de si mesmo quando a ocasião é propícia, e tampouco se esquiva de temas espinhos ou de análise crítica. Talvez exatamente por isso eu tenha sentido tão compulsivamente a necessidade de continuar lendo a despeito das dificuldades que foram ocorrendo por causa da falta de energia: esse não é um livro que você possa deixar inacabado.

Eu agradeço muito a recomendação que recebi para buscar esse título. Agora, o que posso fazer é passar a febre adiante. Leiam também e venham depois me dizer o que acharam, ok?

site: http://owlsroof.blogspot.com.br/2016/04/desafio-corujesco-2016-um-livro-com.html
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