Higor 19/08/2020
'Coleção Novíssimos': sobre problemas graves de continuidade
De todos os dez autores participantes da 'Coleção Novíssimos', os únicos que têm uma carreira consolidada são as justamente as mulheres, as Patrícias, esta Reis, e a Portela, no meio de tantos homens com seus livros de estreia. O que, em certo ponto, destoa da proposta da coleção, que é a de trazer novos novos da língua portuguesa, onde 'Por este mundo acima' é nada menos que seu vigésimo terceiro livro, parece servir para compensar o número desigual de homens e mulheres, onde elas são de renome para assegurar a qualidade do projeto.
'Por este mundo acima', livro mais recente da autora na ocasião da coleção, aborda um assunto até que bem desgastado tanto em livros, quanto em filmes ou seriados: um mundo pós-apocalíptico e a luta pela sobrevivência. Em 2011 o mundo estava no auge das distopias, dos mundos pós-apocalípticos, encharcados de romances adolescentes, e embora a própria tenha livros voltados para o público, seu livro mais se aproxima do ótimo 'A estrada', de Cormac McCarthy que de qualquer outro com meros fins de entretenimento juvenil.
Não se sabe exatamente o que aconteceu com Lisboa. Embora fale que a Natureza tenha se revoltado e brigado com o homem, causando desastres, tudo é resumido ao Mal. Um mal que acomete Eduardo, um editor de prestígio já em idade avançada, com um grupo seleto de amigos, aversão à tecnologia, sem família e que, com o que aconteceu se vê, de repente, sozinho no mundo, lutando pelo pão de cada dia, onde tenta sobreviver à loucura e resgatar, quem, sabe um pouco de cultura e humanidade.
Em um primeiro momento, 'Por este mundo acima' é um livro incrível, de encher os olhos e aquecer o coração. Embora não conte o que aconteceu, dá fragmentos tanto da vida antes do Mal, o mundo caótico em que vivemos hoje, com pessoas egocêntricas, instantâneas, sem tempo, sem sentimentos, e como Eduardo se comporta no mundo editorial. O livro trabalha bem com os gêneros literários ao trazer trechos de poesias ou até mesmo um conto que um personagem escreveu, assim como um capítulo apenas para várias cartas encontradas, utilizando o recurso da metalinguagem e mostrando que a literatura é ampla, e como a autora sabe trilhar por cada um desses caminhos.
O livro, porém, sofre a partir de dois eventos importantes: quando Eduardo encontra Pedro e quando recebe a visita de Sebastião, aspirante a escritor, a que dá o devido valor ao manuscrito somente depois do Mal, sem ter chance de publicá-lo antes. São eventos cruciais, mas que dividem o livro em duas partes totalmente distintas, uma boa e uma ruim. Ruim principalmente por apresentar uma Lisboa pós-apocalíptica que mais parece reestruturada.
A autora, em uma mesma folha, por exemplo, fala sobre a dificuldade em se adquirir comida, mas apresenta um jantar de lançamento de um livro, para depois falar como uma sequer folha de papel é preciosa e guardada com amor, cuidado e zelo. Mas como esse jantar foi feito com comida escassa? Como esse livro foi publicado, mesmo que em quantidade reduzida, se não há folhas de fácil acesso?
São problemas tão bobos, mas para uma história que se propõe a falar sobre devastação, luta pela sobrevivência e dificuldades com um possível cenário futuro, tais furos são gritantes, a ponto de apagar o brilho da história.
Uma homenagem a literatura e aos bastidores do mundo editorial, 'Por este mundo acima' falha nos pequenos detalhes, que se juntam e mostram o quão falha é uma história, mesmo que ela seja poética.
A 'Coleção Novíssimos' tem a intenção de, em 10 livros, reunir importantes nomes da nova Literatura Portuguesa. Para saber mais sobre os outros livros, acesse:
site: leiturasedesafios.blogspot.com