Henrique Fendrich 10/03/2020
“Mal levantara o machado para descê-lo sobre a cabeça da velha quando a história de Crime e Castigo lhe atravessou o espírito”.
Convenhamos, é uma excelente frase para se começar um livro. E partir dela somos arrastados por uma narrativa alucinante, essencialmente objetiva, e que prende a atenção do leitor do começo ao fim. Confesso que o motivo para escolher ler esse livro, e não algum outro do autor, foi a sua referência ao Dostoievski, mas o livro faz muito mais do que usar o escritor russo como chamariz. É uma história que se sustenta por si só e que acaba por relativizar algumas conclusões dostoievskianas.
Há, como em “Crime e castigo”, o crime contra uma velha, descrito logo no início. Só que o crime do livro de Rahimi é um crime sem sentido, não porque o seu autor não tivesse lá suas motivações, e sim porque ele está inserido num contexto onde a própria vida já perdeu o seu valor: o Afeganistão em guerra.
Num cenário onde mísseis caindo se tornam parte do cotidiano, numa cultura em que o assassinato encontra justificativa na necessidade de vingança, que sentido pode ter o crime cometido pelo pobre Rassul? Por acaso haverá alguém disposto a penalizá-lo pelo seu crime?
A única voz a sugerir a culpa do criminoso é justamente a consciência do personagem, uma consciência que está continuamente em conflito com tudo que o cerca, e que talvez o levasse ao suicídio, se também o suicídio fizesse algum sentido quando não se acredita no próprio valor da vida. O suicídio e o assassinato só se justificam quando se acredita que as suas vítimas mereciam viver – do contrário, que diferença faz?
O autor, portanto, traz a profundidade do romance dostoievskiano para um ambiente onde a vida perdeu o valor, e os resultados que emergem daí são dos mais interessantes.
Outra máxima confrontada no livro, essa de “Os Irmãos Karamazov”, é a bem conhecida de que, “se Deus não existe, tudo é permitido”. No cenário do Afeganistão em guerra, um Deus existia – Alá –, mas, então, como se explica que, mesmo assim, tudo era permitido? Se Deus existe e mesmo assim não há limites para a crueldade, então o que sobra da frase de Dostoievski? Não seria o caso, antes, de esse mesmo Deus ser usado para se justificar a falta de limites? Essa é uma inversão que é sugerida ao longo do livro e que representa o ponto alto de suas discussões filosóficas.
A vida, ao menos no ambiente apresentado no livro, para ter o seu valor, precisa estar associada a alguma causa. Se você é um filho de comunistas – e eles eram combatidos com fervor –, então o crime que você comete pode ser visto com outros olhos – foi o crime de um comunista, mesmo que você mesmo não seja. Se as joias que somem são a de um figurão, então também você merecerá ser julgado como um ladrão.
Mas de fato não há uma valorização da vida pelo que ela é intrinsecamente, apenas por valores a ela associados e que dependem das circunstâncias. É exasperante ler o personagem querendo se entregar, confessar o seu crime e nenhuma autoridade lhe dando a mínima! O enredo atinge níveis kafkianos de absurdo, e não seria improvável fazer associações com “O processo”.
Os absurdos expõem a banalização da vida e, ao mesmo tempo, como a noção de vingança está sempre bem presente, e não apenas no oriente, pois – e isso também é dito – mesmo um processo, teoricamente mais civilizado, é antes de tudo uma vingança. Como acabar esse ciclo de vingança? Só quando um dos lados decide se sacrificar. Como Rassul fez.